Beatriz Lupetti1
Mariana Boujikian2
Tito Lívio Barcellos Pereira3
3 de setembro de 2025

Memorial do genocídio armênio em Ierevan. (Acervo pessoal, Mariana Boujikian)
No dia 24 de abril de 2025, o governo da República da Armênia relembrou os 110 anos do genocídio sofrido pelo seu povo. As autoridades políticas do país, membros da sociedade civil e da diáspora armênia estiveram presentes no memorial do genocídio na capital nacional em Ierevan.
Para compreender melhor a importância dessa data é preciso voltar à Primeira Grande Guerra (1914-1918): Em 1915, o Império Otomano sofreu muitas derrotas militares para o Império Russo nas campanhas militares do Cáucaso e Anatólia, com as tropas russas avançando rapidamente sobre as províncias de Trebizonda, Erzurum, Van e Bayazid – todos localizados na denominada “Armênia Otomana” ou “Planaltos da Armênia” (compreende os territórios habitados por comunidades armênias na Anatólia Oriental – atualmente na Turquia). Apesar da presença e colaboração das guerrilhas armênias (chamados de Fetayi – do árabe Fedayeen – “combatente”, “mártir”) em apoio às forças russas, no desejo de unificar a nação étnico-confessional armênia; o governo otomano em Constantinopla (capital otomana, atual Istambul na Turquia), passou a acusar toda a comunidade armênia de cumplicidade com os invasores russos e os Fetayis iniciando uma política brutal de limpeza étnica de todos os armênios otomanos, empreendendo massacres, perseguições, violência sexual em larga escala, destruição de igrejas e propriedades, deportações em massa e assimilação forçada que teriam tirado a vida de aproximadamente 1,5 milhão de armênios de 1915 a 1923, segundo os levantamentos estatísticos mais recentes.

Os soldados russos observam os corpos em decomposição na depopulada aldeia armênia de Sheykhalan, na província otomana de Mush em 1915. (acervo museu do genocídio armênio)
O denominado genocídio armênio mudou drasticamente a demografia do leste da península da Anatólia, onde as comunidades armênias outrora majoritárias, foram removidas a força pelas autoridades otomanas e substituídas por colonos de origem turca e curda, forçando os armênios a migrarem para a região da atual República da Armênia (então súditos do Império Russo) mas também para as regiões da atual Síria e Líbano e outras partes do planeta (como a Rússia, França, EUA, Argentina, Uruguai e Brasil) onde são parte expressiva do tecido social desses países. Cerca de 90% dos armênios que habitavam o Império Otomano foram mortos ou deportados pelas autoridades otomanas. Populações gregas e assírias também foram afetadas pelas políticas de limpeza étnica otomanas.

Mapa do genocídio armênio dentro do Império Otomano em 1915. (acervo Instituto Nacional Armênio)
Atualmente os armênios ainda buscam reconhecimento internacional do genocídio armênio, ainda limitado: Aproximadamente 30 países reconhecem os eventos de 1915-1923 como um genocídio, entre eles a Alemanha, Argentina, Bolívia, Brasil, Bulgária, Chile, França, Grécia, Irã, Líbano, Líbia, Rússia, Síria, Venezuela e Uruguai. No âmbito acadêmico, contudo, há consenso de que os acontecimentos do início do século passado representaram um dos primeiros genocídios modernos. A International Association of Genocide Scholars, a American Historial Association, European Network of Genocide Scholars, entre outras instituições que reúnem especialistas na área de estudos de genocídio, reconhecem o caso armênio como um processo genocida e cobram o reconhecimento deste evento histórico pelo governo turco.
Recentemente os EUA, depois de uma secular moratória, passou a reconhecer o genocídio armênio, como consequência do esfriamento de relações com a Turquia, seu histórico aliado militar desde a Guerra Fria. A crescente importância econômica e militar da Turquia, a insere como um ator emergente no sistema internacional e esse fator impede que outros países reconheçam o genocídio armênio, o que acarretaria em cobrar responsabilidade de Ancara e consequentemente, afetaria negativamente suas relações diplomáticas com o Estado turco. Países como Austrália, Espanha, Brasil, México, Grã-Bretanha e Ucrânia, reconhecem o genocídio em nível regional.

Mapa do reconhecimento internacional do genocídio armênio em 2019. (Fonte: Rádio Europa Livre)
Washington e o “aliado necessário”
Após a Segunda Grande Guerra, os EUA passaram a apoiar a Turquia, a fim de evitar um alinhamento turco-soviético. Desde então, mesmo com o fim da Guerra Fria, essa relação continuou sendo valorizada por ambas as partes: os EUA enxergam a Turquia como um Estado estrategicamente relevante do ponto de vista militar e geográfico, o que, por sua vez, garantiu ao país investimentos e respaldo da potência hegemônica da época. No entanto, com a assunção de Joe Biden à presidência, com uma política externa comprometida com a defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos, em oposição ao governo anterior de Donald Trump, esse relacionamento foi vítima de um esfriamento bilateral.
Desde o início do mandato democrata, as relações entre EUA e Turquia mantiveram-se mínimas, porém marcadas por diversas tensões, como as cobranças por respeito aos direitos humanos na Turquia e a proximidade de Erdogan a Putin. Os retrocessos democráticos e as violações de direitos humanos figuram entre os motivos que levaram Biden a adotar uma postura crítica em relação ao governo de Erdogan.
Somam-se a isso o crescimento das relações entre Turquia e outros Estados, como China e Rússia, que geraram um desconforto e uma desconfiança em Washington. Além disso, a percepção de que Erdogan poderia estar seguindo os passos autocráticos do líder russo despertou preocupação por parte dos democratas, historicamente mais críticos em relação à Rússia do que os republicanos. Por outro lado, as boas relações entre a Grécia – país que possui disputas históricas com Ancara no Mediterrâneo Oriental – não contribuem para aliviar o desconforto da Turquia com os EUA.
O conflito no Artsakh e o fantasma do genocídio.
Desde sua independência da União Soviética em dezembro de 1991, a “jovem” República da Armênia busca reafirmar sua identidade pós-soviética no sistema internacional. E em boa parte isso passa pelo ressurgimento e valorização do nacionalismo armênio, assim como o resgate da memória do genocídio de 1915-1917.
Entretanto, as fronteiras soviéticas construídas para um projeto federativo transnacional acabaram inserindo comunidades armênias nos limites políticos de novos Estados, como é o caso da República do Artsakh (nome que os armênios dão ao território do “Alto Karabakh” ou “Nagorno Karabakh”) dentro do território da também independente República do Azerbaijão. E a recusa de Baku (capital do Azerbaijão) em reconhecer a autonomia política das comunidades armênias do Artsakh, em favor de um etno-estado azeri, desencadeou duas guerras entre armênios – apoiados por Ierevan – e azeris: em 1988-1994, e 2020 e 2023, esta última resultando na anexação total do enclave pelo governo de Baku .

Mapa da região do Alto-Karabakh (Artsakh) e os territórios ocupados pela Armênia dentro do Azerbaijão. (Fonte: BBC)
Os azeris, por serem um povo de origem túrquica, acabaram sendo personificados pelos armênios como o “inimigo turco”, percepção reforçada após o Azerbaijão ganhar apoio militar, financeiro e material da Turquia (sucessora do Império Otomano) em todos os enfrentamentos armados com os armênios. Inclusive com ameaças de Ancara de intervir militarmente em caso de escalada do conflito. Fatos que trouxeram de volta a memória do genocídio do século passado.
Neste último conflito em 2023, ocorreu uma ofensiva e bloqueio azeri do território, que ficou isolado e sem acesso a mantimentos básicos: o fornecimento de água, energia, medicamentos, alimentos, etc foi cortado por 9 meses. Dando continuidade à vitória militar de 2020, as tropas de Baku ocuparam por completo todo o território do Artsakh, e como consequência, levaram à fuga de 100 mil armênios, residentes do enclave. Algo que pode ser qualificado como uma “limpeza étnica” e “genocídio” pela Organização de Nações Unidas e foi denunciado repetidamente por Organizações Não-Governamentais, como a Anistia Internacional e o Human Rights Watch.

Mapa da ofensiva azeri de 2020-2023 e o colapso da República do Artsakh. (Fonte: BBC)
Apesar do evidente cenário de violação de direitos humanos, não houve postura condenatória dos EUA ou de seus aliados estratégicos (como os membros da OTAN), bloco em que a Turquia é membro. O reconhecimento do genocídio armênio por Washington, no governo Joe Biden (2021-2025) não refletiu em uma mudança de postura estadunidense em relação aos armênios de Artsakh, tampouco na responsabilização de Baku pelos massacres. O peso geopolítico turco e seu apoio ao Azerbaijão podem ser apontados como as principais razões para a omissão da Casa Branca. Acrescenta-se também que as relações diplomáticas, estratégicas e comerciais de Ierevan com rivais geopolíticos de Washington como a Rússia, Irã e Síria (na época governada por Bashar Al-Assad) pode ser um fator complicador para uma postura estadunidense mais alinhada aos interesses armênios.

refugiados armênios do Artsakh buscando refúgio numa base das tropas de pacificação russa. (Fonte: Ministério da Defesa da Federação Russa)
Conclusão
Atualmente, com o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, a palavra “genocídio” deixou de constar no vocabulário oficial estadunidense ao se referir ao caso armênio. Essa mudança – longe de ser impensada – decorre não apenas da proximidade entre Trump e Erdogan, mas também de interesses nacionais estratégicos e duradouros, já que Washington continua ocupando a posição de hegemonia no sistema internacional vigente, enquanto Ancara passou a desempenhar um papel de “centro da diplomacia de paz”.
Ainda assim, o abandono do reconhecimento representa um retrocesso na política externa dos Estados Unidos, ao reduzir ainda mais as chances de uma cobrança efetiva sobre as posturas – passadas e mais recentes – adotadas por Turquia e Azerbaijão. A comunidade armênia vê-se, mais uma vez, privada de justiça histórica e de garantias mínimas contra a continuidade da limpeza étnica.
É importante notar que em agosto deste ano, Trump mediou um encontro entre Azerbaijão e Armênia que resultou em um anúncio de “paz” para a região. A conciliação, contudo, não prevê algumas reivindicações caras para os armênios para solucionar o conflito de forma permanente: o direito de retorno dos refugiados de Artsakh a seu território ancestral, a libertação de prisioneiros de guerra armênios mantidos até hoje em Baku, e a preservação do patrimônio cultural armênio na região. Desse modo, o suposto acordo de paz propagandeado por Washington não resolve diversos impasses, e reitera a influência da Turquia e seus aliados no Cáucaso.
A alternância entre democratas e republicanos revela-se, portanto, menos relevante do que a manutenção de uma diretriz estratégica bipartidária: a de preservar, acima de tudo, a relação com a Turquia. Mesmo quando Biden reconheceu o genocídio armênio, sua decisão esteve mais ligada ao antagonismo político com Erdogan do que a um real compromisso com os direitos humanos. O recuo atual, por sua vez, aponta para uma tentativa de restabelecer relações turco-estadunidenses que permanecem, apesar de todas as tensões, reciprocamente relevantes – ainda que em detrimento da justiça para com o povo armênio.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI). Interessada em áreas de estudo que envolvem o Leste Europeu e os Balcãs. contato: beatrizmariall7@gmail.com
↩︎ - Cientista social e mestre em Antropologia Social pela USP. É especialista em Memória e Direitos Humanos pela CLACSO e em Genocídio e Direitos Humanos pelo Zoryan Institute. Autora do livro “Memórias de um genocídio” (Tirant Lo Blanch, 2023). contato: mari.boujikian@gmail.com
↩︎ - Geógrafo pela USP, mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança pela UFF e doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (PUC-SP/Unicamp/Unesp). Especialista em Geopolítica da Rússia e Espaço pós-soviético. Pesquisador afiliado ao Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço pós-soviético (CIRE). contato tito.livio@unesp.br ↩︎