Jacob Carlos Lima[1]
A informalidade, vista por muito tempo como sinônimo de atraso econômico e pobreza urbana, volta à tona, agora com chancela presidencial, menos como sinônimo da modernidade do capitalismo flexível, mais como opção (ou falta de) entre empregos e direitos. Nada a se espantar com declarações desse tipo num quadro em que a barbárie é vista como solução; assistimos diariamente sua implementação com o beneplácito da sociedade de “bem”, representada por nossas instituições que, cada vez mais, representam menos.
Mas o que é esse informal declarado agora como modelo a ser seguido pelo mercado de trabalho?
Num artigo publicado há duas décadas, Luis Machado da Silva (2002) questionava o uso do termo “informal” para se referir a empregos não regulamentados, pois esse teria perdido seu caráter explicativo. Num quadro de expansão neoliberal, o termo “empregabilidade” poderia substituí-lo, assim como, acrescentamos, o de empreendedor individual poderia substituir também o de trabalhador autônomo que estava sendo reconfigurado.
O conceito de informalidade tem sido utilizado desde os anos 1970, tendo como ponto de partida estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizado no Quênia em 1972. No Brasil, substituiu o conceito de marginalidade social, empregado anteriormente para explicar aqueles que sobreviviam de expedientes na cidade, fora de qualquer regulamentação oficial, e eram marcados pela vulnerabilidade representada pela exclusão de qualquer benefício social. Machado da Silva, de certa forma, antecipou o conceito em sua dissertação de mestrado defendida em 1971, na qual discutia mercados de trabalho metropolitanos.
Desde o início de sua utilização, o conceito de informalidade e trabalho informal foi objeto de críticas e questionamentos, como aliás acontece com grande parte dos conceitos sociológicos. O contexto do surgimento da utilização do termo se deu num momento de crescente regulação das relações capital e trabalho, após a Segunda Guerra Mundial e ao momento do debate sobre desenvolvimento-subdesenvolvimento dos países periféricos capitalistas, tendo como pressuposto a industrialização como sinônimo de modernização.
A insuficiência da industrialização levaria à formação de grandes massas excedentes ou marginais, excluídas do mercado de trabalho regulado, em ocupações de baixa produtividade e renda, na ocupação caótica da cidade e sem qualquer organização política. A dualidade da análise, progressivamente, foi substituída pela discussão do desenvolvimento desigual e combinado, no qual o capitalismo subordina outras formas de produção e de trabalho às necessidades de acumulação. A massa marginal, constituiria a imprecisa informalidade resultante de uma superpopulação excluída do mercado de trabalho regulada, o que explicaria também o baixo custo da força de trabalho na região, dada a abundância da oferta. O “atraso” como parte integrante do moderno, a população excedente refletindo a superposição de formas de acumulação distintas. Até a década de 1980, a informalidade era a representação do subdesenvolvimento, do atraso econômico, da precariedade e vulnerabilidade dos trabalhadores.
A partir daí houve a guinada neoliberal. Um conjunto de situações políticas, econômicas e culturais podem ser elencadas para discutirmos a crise de acumulação da década de 1970 e o início do que vai ser conhecido como capitalismo flexível. O trabalho regulado e com direitos sociais começa a ser visto como custo que encarece a produção e compromete a competitividade das empresas. Aberturas de mercado, desterritorialização da produção, migração em massa, vão se constituir na nova realidade da nova fase da acumulação capitalista, também sinônimo de globalização. O capitalismo flexível pressupõe a redução da intervenção do Estado na regulação econômica e na reprodução social, vistas como inibidora do livre mercado, e das novas necessidades da acumulação capitalista.
Na América Latina, autores como Hernando De Soto (1987), analisando a informalidade no Peru, descartaram a negatividade do conceito como atividade de pobre e para pobre e passaram a discutir o caráter empreendedor presente na economia informal, Assim, o problema não estaria na ausência do Estado, mas na sua presença excessiva. O trabalhador informal latino-americano, por suas estratégias de sobrevivência seria um empreendedor nato, e o Estado deveria eliminar os entraves regulatórios nessa atividade, inibidora da capacidade de iniciativa e criatividade dos indivíduos. A informalidade torna-se sinônimo de empreendedorismo e trabalho flexível.
Outro elemento nessa “reconfiguração” da informalidade resulta do seu aparecimento como problema também em países avançados, nos quais as condições laborais até então vigentes proporcionavam aos trabalhadores segurança, perspectivas de promoção e ascensão social (Sennet, 1999). Alejandro Portes, Manuel Castells, Lauren Benton (1989); Edna Bonacich (1989;1990) e Saskia Sassen (1988) referem-se aos mercados e às sweatshops nos centros das grandes cidades norte-americanas e europeias onde podem ser encontradas grande número de trabalhadores, sem nenhum tipo de vínculo formal no mercado de trabalho. Podem ser trabalhadores por conta própria ou pessoas que produzem bens ou serviços para algum “empreendedor”, em geral mediador entre os trabalhadores e grandes empresas industriais e/ou intermediários em redes de comercialização. É notório o recorte étnico desses segmentos da força de trabalho, que vão sendo substituídos de acordo com a sucessão dos movimentos migratórios, originados em países estrangeiros ou no interior dos próprios países. As indústrias da confecção, do vestuário e de calçados são ramos produtivos em que a constatação de sweatshops e de oficinas com condições precárias de trabalho tem sido recorrente, com predomínio de situações análogas à de trabalho escravo em várias partes do mundo. Em 2002 a OIT incluiu entre os trabalhadores informais aqueles dispensados em função da reestruturação econômica levada a efeito na década anterior e que não mais conseguiram retornar ao mercado de trabalho formal, redefinindo estratégias de sobrevivência agora na informalidade.
A precariedade das condições nesses empreendimentos, tanto na ausência das garantias laborais definidas pelo assalariamento, quanto às condições ambientais, de inserção e permanência do mercado de trabalho. revelam que os valores veiculados pela ideologia do empreendedorismo são uma falácia. A insegurança e vulnerabilidade dos trabalhadores tornam-se a perspectiva a curto, médio e longo prazo.
No Brasil, houve uma redução da informalidade a partir do final da década de 1990 com a estabilização econômica do governo FHC e continuou a se reduzir até 2013, resultante de uma situação econômica favorável, das políticas de formalização do emprego, valorização do salário mínimo e políticas sociais compensatórias dos governos petistas. Mesmo com a maior formalização, a ideologia empreendedora permaneceu como perspectiva de inserção no mercado de trabalho, na manutenção de uma racionalidade neoliberal tal como discutida por Pierre Dardot e Christian Laval (2016). O trabalho por conta própria é uma oportunidade de ocupação, de crescimento individual, aproveitando a capacidade de iniciativa dos indivíduos. O programa Microempreendedor Individual (MEI), criado em 2008, teve o objetivo de formalizar o trabalho informal a partir de uma redução da carga tributária para essa atividade e de uma constatação que este não é provisório como antes era pensado, mas definitivo.
Mesmo no trabalho regular e formalizado, o potencial empreendedor do trabalhador torna-se uma das qualidades valorizadas pelas empresas que buscam trabalhadores jovens, flexíveis e móveis para atender às demandas da produção. O trabalhador empreendedor é flexível e aberto à inovação. Nessa categoria se incluem tantos profissionais altamente qualificados, que prestam serviços na elaboração de projetos, para grandes empresas, quanto trabalhadores de pouca “empregabilidade”. Nestes últimos, podem ser incluídos vendedoras de artigos de beleza, nomeadas como consultoras de grandes empresas produtoras de cosméticos, camelôs e sacoleiros que comercializam produtos variados, dos mais simples aos mais sofisticados, de bugigangas a produtos eletrônicos e de informática.
A comercialização desses produtos intensifica a mobilidade nacional e internacional de trabalhadores, ligando os polos de venda aos polos de consumo de mercadorias explicando a circulação de trabalhadores em mercados de fronteiras, em feiras da madrugada e mercados populares (Pinheiro Machado, 2011; Lima e Rangel, 2019; Lima e Soares, 2002; Veras de Oliveira, 2013).
A informalidade representada por sacoleiros e camelôs, seus representantes mais visíveis, embora ilegal, termina sendo tolerada e em grande parte legitimada com a necessidade da população “se virar”. Aliás, com esse argumento, atribui-se a uma declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 que desemprego era coisa de país rico e que no Brasil seu índice era baixo, exatamente porque todo mundo “se virava”. Polos de produção informal por todo país, ao lado de mercados e feiras informais nas grandes cidades tornam-se objeto de repressão e estímulo. Repressão nos processos de fiscalização e regulação do espaço urbano e contra a pirataria. E estímulos com a constituição de shoppings populares e à regulamentação dessas atividades, como forma de aumentar a arrecadação de impostos, além de serem considerados modelos de flexibilidade na produção e do trabalho.
A esse contingente de trabalhadores, ilegais, mas legitimados, soma-se o contrabando em pequena escala (mas não só) que abastece pequenas lojas, formais e informais, e também a comercialização de produtos ilícitos como drogas, produtos roubados, além de serviços variados de suporte que os viabilizam. Esses trabalhadores não reconhecidos como tal, entre eles crianças e jovens, constitui-se num número crescente não mensurável pelas estatísticas oficiais. A rede que a mantém resulta, sem dúvida, da capacidade de seus organizadores de “empreender”, movimentando enormes quantias, que alimentam uma economia subterrânea considerada criminosa, que se espraiam pelas cidades formais e informais com a participação ostensiva de agentes privados e estatais.
A nova onda desregulatória do atual governo retorna ao discurso oficial, mesmo com todos os fracassos anteriores presentes na implementação de políticas neoliberais e suas nefastas consequências sociais. Mais uma vez estamos diante de um “discurso único” no qual as dissonâncias estão fragilizadas e sem saber como reagir. Empregos e direitos tornam-se antônimos. A informalidade surge como desejada, num mar de declarações absurdas.
Informais, precários e vulneráveis, o contingente de trabalhadores nessa situação só cresce. As novas tecnologias informacionais contribuem para sua disseminação inserindo uma nova variável – as plataformas digitais –, informalizando mais e mais ocupações.
Reformas são propostas e redigidas “imparcialmente” por empresários pensando nos seus interesses, e eliminando formas de solidariedade social, propondo capitalizações que, mais uma vez, inviabilizam o presente e o futuro. O informal, o ilegal e o ilícito, cada vez mais se confundem e as fronteiras com o institucionalizado se apagam.
Não tem mais atraso, ou subdesenvolvimento, como fase a ser superada. Com o fim do império da regulação, a barbárie assume seu protagonismo.
[1] Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (2017-2019).
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Referência imagética:
https://asmetro.org.br/portalsn/2017/04/03/informalidade-a-cara-da-crise-no-brasil/ (Acesso em 19 de maio de 2019)