José A. Lindgren-Alves*
Em 20 de novembro de 2020, quando o Vice-Presidente da República declarou que no Brasil não havia racismo, a afirmação causou perplexidade. Não porque se imaginasse que o General Mourão fosse racista. Ele próprio é o primeiro a ressaltar sua origem indígena, fato que a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos alardeia nas Nações Unidas como demonstração de uma suposta igualdade interracial brasileira. A declaração negacionista soou particularmente canhestra naquele Dia da Consciência Negra, porque feita em resposta a indagação jornalística sobre a possível motivação racista do espancamento até a morte de um concidadão negro por dois agentes brancos de segurança privada, num supermercado de Porto Alegre, na véspera. Dissonante da massa de entrevistas, lançamentos de livros, filmes, exposições e outras manifestações não-oficiais para celebrar a maior data da identidade afro-brasileira, o negacionismo do Vice-Presidente gerou reações imediatas de repúdio, dentro e fora do país. Poderia, talvez, ter repercussão reduzida, se o assunto se tivesse limitado àquela declaração. Tal não ocorreu por obra presidencial desastrosa.
A reentrada não-triunfal do mito
Enquanto o assassinato brutal de João Alberto Freitas, o “Nego Beto”, era visto como repetição brasileira do estrangulamento do norte-americano George Floyd em Minneapolis, em maio, provocando no Brasil novas reações de protesto com o slogan “Vidas Pretas Importam”, o Presidente Bolsonaro decidiu utilizar a cúpula do G-20 para reiterar a negação do racismo. Ignorante de tudo que envolva o exterior e mal orientado pela cegueira ideológica de seu chanceler isolacionista, o Presidente optou por fazê-lo num evento eminentemente econômico, que congrega os Chefes de Governo das vinte maiores economias do mundo. Programado para dedicar-se aos efeitos devastadores da pandemia, o encontro deste ano, por videoconferência, tinha como coordenador o Príncipe Salman, da Arábia Saudita, líder de má reputação de um país islâmico arcaicamente misógino. Autor de gestos simpáticos, liberalizantes para suas compatriotas oprimidas, Salman é simultaneamente suspeito de ter sido mandante do assassinato de um jornalista saudita na Turquia. Nada indicava, portanto, que a cimeira dos dias 21 e 22 de novembro fosse tratar de racismo ou direitos humanos. E Bolsonaro o fez como de hábito, de maneira provocadora, com o escapismo costumeiro de suas responsabilidades funcionais, atribuindo dificuldades domésticas a conspirações externas: “tentativas de importar para o nosso território tensões alheias à nossa história”, com o objetivo de “dividir um povo soberano” para torná-lo “mais facilmente controlado e subjugado” (sic).
Essa acusação simplista, inoportuna, além de fora de contexto, vinha acrescida de asserções infantilizadas do “mito da democracia racial brasileira” que imperava no Brasil do Estado Novo e perdurou no velho regime militar:
“… Brancos, negros e índios edificaram o corpo e o espírito de um povo rico e maravilhoso. Em uma única família podemos contemplar uma diversidade maior do que países inteiros. (…) Como homem e como Presidente enxergo todos com as mesmas cores: verde e amarelo. (…) Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história”.[1]
Reminiscente daquilo que era patrioticamente ensinado nas escolas, tal palavreado ufanista resgata um mito propagandístico há muito denunciado como disfarce para a trágica situação de abandono social dos negros e pobres no Brasil. Repetindo versão romantizada de nosso passado escravista, procura transmitir a imagem de um povo unido de maneira natural em torno de valores sacrossantos. Tal interpretação, importante nos anos 1930 pelo reconhecimento do negro como elemento formador nacional, numa fase em que o país emergia da política de branqueamento pela imigração dirigida, é abominada pela maioria dos afro-brasileiros. Estes sentem na pele e na carne seus resultados fantasiosos, propulsores de estereótipos a servirem de acomodação autocomplacente à classe dominante.
A restauração do mito e a reação internacional
Enquanto a noção de uma “democracia racial” espontânea, decorrente da miscigenação entre senhores e escravas, é agora restaurada, o reconhecimento do racismo hoje é considerado uma imposição alienígena de esquerda, antinacional e subversiva. Não por acaso, na semana de celebração da Consciência Negra, chamada de “escória maldita” pelo atual Presidente da Fundação Cultural Palmares[2], o mesmo Sérgio Camargo, titular dessa entidade criada para valorizar a participação do negro na formação da cultura brasileira, anunciava que retiraria da lista de homenageados Milton Nascimento, Gilberto Gil, Elza Soares e todas as pessoas vivas, que ele antes já havia rotulado de “esquerdistas”. Mas a restauração do mito da “democracia racial” pelo Presidente e seus ministros não se restringe à área da cultura. A par de múltiplos sinais de desapareço pelos quilombolas e povos indígenas, do desencorajamento a demarcações de reservas, da rejeição a símbolos das religiões afro-brasileiras – como a retirada do quadro “Orixás”, de Dejanira, do Palácio do Planalto –, ressalta a desativação da antiga SEPPIR, Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, de nível ministerial, que coordenou o trabalho governamental em tais políticas, impulsionou ações afirmativas por cotas em universidades e no serviço público, organizou eventos antirracistas nacionais e internacionais, hoje relegada à insignificância dentro do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Para a maioria dos participantes da reunião do G-20, desconhecedores da situação brasileira, o acréscimo de Bolsonaro sobre o racismo no Brasil, como preâmbulo ao que diria sobre assuntos em pauta, terá soado ininteligível. Serviu, por outro lado, para despertar uma curiosidade que pode atrair novas críticas de fora como aquelas que agora assolam o país na esfera do meio ambiente. Segundo aqui noticiado logo após o discurso presidencial, delegados estrangeiros atônitos se perguntavam sobre o significado dessa fala, tendo organizações e diplomatas cientes do assunto expressado indignação. Menos espanto teriam tido os latino-americanos em Genebra que, em junho, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, haviam testemunhado as resistências da delegação brasileira à proposta de investigação das ações policiais norte-americanas, na sessão especial convocada por ocasião da morte de George Floyd.[3]
À luz desses desenvolvimentos, não causa surpresa que a Alta Comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, tenha emitido, em Genebra, um expressivo comunicado de imprensa sobre o racismo no Brasil. Bem-informado sobre a situação, o comunicado demonstra conhecimento das investigações sobre o incidente de Porto Alegre, não mais que um entre vários de igual violência, recomendando que o inquérito respectivo fosse “abrangente, independente, imparcial e transparente, examinando se um viés racial poderia haver ocorrido”. Preventivamente, o comunicado apela às autoridades para que investiguem “quaisquer alegações de uso desnecessário e desproporcional de força” contra manifestantes pacíficos, ressaltando o ultraje que o caso provocou como evidência da necessidade de que se trate do racismo “em coordenação com todos os grupos da sociedade, especialmente os mais afetados”. Significativos como resposta ao Presidente e ao Vice-Presidente são os parágrafos que destacam o caráter estrutural do fenômeno:
“Autoridades do governo têm a responsabilidade especial de reconhecer o problema subjacente da persistência do racismo no país como primeiro passo essencial para sua solução. O racismo estrutural, a discriminação e a violência contra pessoas afrodescendentes no Brasil são fatos documentados por dados oficiais, que indicam como o número de afro-brasileiros vítimas de homicídio é desproporcionalmente superior ao de outros grupos. Os dados também demonstram que os afro-brasileiros, inclusive mulheres, são super-representados na população carcerária do país.
(…)
O legado do passado ainda está presente na sociedade brasileira, como em outros países. Os negros suportam racismo estrutural e institucional, exclusão, marginalização e violência, em muitos casos com consequências letais. Os afro-brasileiros se acham excluídos e quase invisíveis nas estruturas e instituições com poder decisório.
Para superar essa situação, são necessárias reformas urgentes de leis, instituições e políticas. Estereótipos raciais arraigados, inclusive entre agentes de polícia e funcionários do judiciário precisam ser abordados. As autoridades devem também intensificar a educação em direitos humanos, a fim de promover um melhor entendimento das causas profundas do racismo, e realizar maiores esforços para estimular respeito pela diversidade e multiculturalismo, assim como promover maior conhecimento da cultura e da história afro-brasileiras e de sua contribuição para a sociedade brasileira (tradução do autor).”[4]
A propósito do espancamento mortífero do cidadão conhecido como “Nego Beto”, vale notar que os responsáveis diretos pela investigação nunca descartaram a possibilidade de um agravante racista. A Delegada Nadine Alfor, chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, antes de tomar conhecimento do comunicado da Alta Comissária, reconhecia para a imprensa: “Racismo existe, discriminação existe, preconceito existe. Existe o racismo estrutural e o racismo no momento da ação. (…) Não descartamos nenhuma hipótese”.[5] Corriqueiras em sua atualidade, as afirmações reiterativas da delegada gaúcha evidenciam o quão distanciado da consciência média nacional reside o discurso negacionista. Na verdade, ele vai contra aquilo que o próprio governo tem assinalado junto ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, assim como perante órgãos de tratado, como o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial – CERD, que monitora a implementação da Convenção Internacional Sobre Todas as Formas de Discriminação Racial. A propósito do CERD, abro aqui um parêntesis para destacar, por uma questão de justiça, que, em cumprimento de promessa feita duas vezes em plenário pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no Conselho de Direitos Humanos, o Brasil acaba de enviar o relatório oficial devido, atrasado muitos anos, sobre as medidas legislativas e de outra ordem adotadas no país depois de 2004, para dar cumprimento às disposições da Convenção e às recomendações do Comitê.[6]
Levando em consideração a forma educada com que o Vice-Presidente Hamilton Mourão fez a declaração controvertida, explicando que a convicção negativa decorria de seus estudos sobre a formação da nacionalidade brasileira, bom como de comparação com o racismo norte-americano que ele próprio observou quando morava nos Estados Unidos, na década de 1960, acredito caber, de minha parte, algumas considerações. Faço-as com base na experiência pessoal de dezesseis anos como membro do CERD, tendo examinado relatórios de mais de 160 países, e em comparações que eu também fiz com o fenômeno norte-americano, tendo vivido um total de oito anos, em diferentes períodos, naquele mesmo país. Assinalo em primeiro lugar minha total concordância com a observação do Vice-Presidente de que é possível discordar sem ofender.[7] Assinalo igualmente que o reconhecimento do racismo brasileiro, com características evidentemente distintas do racismo norte-americano, não significa endosso a todas as posturas da militância. Por mais que ela procure, com justos motivos, apresentar-se unida, há diferentes correntes antirracistas, assim como existe, acima de tudo, no sistema democrático, a liberdade de consciência e expressão, prevista junto com a liberdade de religião, no Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O CERD e a discriminação planetária
Uma das bases consensuais no trabalho do CERD, confirmados pela consideração das situações mais díspares ao longo de seus cinquenta anos, consiste na percepção de que existe racismo em todas as sociedades.
Desde o início de seu funcionamento, em 1970, ao examinar relatórios de Estados-partes da Convenção de 1965, quando qualquer deles alega que, não contando com legislação discriminatória – como a do apartheid na África do Sul ou as leis Jim Crow dos Estados Unidos -, não há discriminação racial no respectivo país, o CERD rejeita tal afirmação. Relembra que, ainda que os atos de discriminação ocorram à revelia dos governos, é obrigação dos Estados adotar as medidas necessárias para erradicá-los. Tal procedimento, ocorrido no exame de relatórios do Brasil com argumentação desse tipo, nos anos 70, repete-se até hoje, quando necessário, para qualquer país. Todos os membros do Comitê sabem que o primeiro passo para enfrentar um problema é reconhecê-lo. Por mais raros que sejam os Estados que ainda negam a existência de racismo em sua jurisdição, geralmente com argumentação religiosa – de que, por exemplo, o Islã impede discriminações entre os fiéis -, o CERD não omite sua advertência a eles.[8] As declarações do Vice-Presidente e do Presidente da República seriam, portanto, recusadas por esse órgão de controle internacional legítimo, criado pelo Artigo 9° da Convenção, de caráter obrigatório para os Estados que a assinaram e ratificaram em decisão soberana, tendo o Brasil sido dos primeiros.[9]
A percepção pelo CERD da discriminação racial omnipresente não se refere ao racismo somente com base em cor ou outros fenótipos. Sem definir o termo “raça”, a Convenção dispõe sobre a eliminação da discriminação racial, fato objetivo, diferente do racismo, fenômeno subjetivo, definindo esse tipo de discriminação no Artigo 1° como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica”. Para as chamadas “ações afirmativas”, que a Convenção recomenda, o parágrafo 4° do mesmo dispositivo faz a ressalva de que não são consideradas discriminatórias as medidas especiais adotadas temporariamente para grupos que delas necessitem para alcançar condições reais de igualdade com o restante da sociedade. Embora ações racialmente discriminatórias estejam presentes em todos os países, a discriminação pela origem nacional ou étnica é que se mostra mais comum, inclusive na África, entre nações e tribos diferentes, ou entre povos indígenas de qualquer continente. Mas etnicidade não é sinônimo de raça, no sentido classificatório europeu adotado “cientificamente” no Século XIX. Na Europa contemporânea, a discriminação racial é voltada em primeiro lugar contra muçulmanos de qualquer cor ou nacionalidade, como no passado o foi contra os judeus de origem variada, sendo a religião encarada como componente, muitas vezes marcador, da respectiva etnia. Nos Estados Unidos a discriminação é contra os não descendentes de europeus, no Japão contra os não-japoneses, na China contra os uigures de religião muçulmana e outros grupos distintos da maioria Han, e assim por diante. O CERD dá importância igual a todas.
A questão do racismo estrutural também é reconhecida e discutida no Comitê. Segundo a interpretação predominante, o fenômeno é característico de sociedades onde o sistema escravocrata foi empregado intensivamente para a produção de commodities e para a extração mineral, enquanto nos demais países o racismo pode decorrer de outras causas, como preconceitos, temores e rivalidades históricas. Típico do Brasil, do sul dos Estados Unidos, da África do Sul, da América Espanhola que utilizava compulsoriamente a mão de obra indígena, a manifestação atual do racismo estrutural se dá pela continuidade da estratificação populacional em categorias binárias, superior e inferior, com base em cor ou etnia, após a abolição do escravismo. Essa desigualdade racial provinda do passado se eterniza no presente, de maneira consciente nos sistemas segregacionistas, como o apartheid, ou de maneira quase inconsciente, na “naturalização” da desigualdade social, como ocorre no Brasil e demais países da América Latina. Ela discrimina grupos populacionais pela cor onde há presença expressiva de afrodescendentes, como no Brasil, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Cuba e Caribe, e pela etnia nos demais países, especialmente contra indígenas. Em todos esses casos, o racismo europeu original, que deu respaldo ideológico à escravidão, é absorvido e transmitido de maneira automática pelas instituições pós-coloniais, que abarcam os órgãos dos três poderes do Estado, as escolas, a polícia, as forças armadas, o empresariado e até mesmo as famílias, na criação dos filhos. Por aí se explica a vitimização “preferencial” dos negros em ações realizadas por policiais também negros, tão frequente no Brasil. Essa capilaridade discriminadora, arraigada e abrangente, difícil de ser percebida, é denominada “racismo institucional”. Diferente do racismo ostensivo, decorrente de preconceitos coletivos manifestados por pessoas assumidamente racistas, passíveis de punição legal por seus atos preconceituosos, o racismo estrutural, inclusive na vertente institucional, somente pode ser extirpado por ações de longo prazo e com reformas profundas. Sua sutileza insidiosa, que o torna imperceptível em abordagens superficiais, foi o que propiciou a ideia de uma “democracia racial brasileira”, diferente do segregacionismo norte-americano. Na medida em que, no Brasil católico, pessoas brancas e negra sempre se misturaram sem equidade, em vias públicas, em feiras, até em dependências das Casas Grandes, ao contrário do que o fundamentalismo protestante permitia, e se miscigenaram sexualmente muito mais do que na América inglesa, em função da escassez ou ausência total de mulheres vindas da metrópole, tampouco houve no Brasil uma cultura do ódio racial à americana. Não se engendraram aqui, com a força que tiveram e ainda têm nos Estados Unidos, sociedades “secretas” de iniciados como a Ku-Klux-Klan, milícias raciais supremacistas ou movimentos revolucionários como o dos Panteras Negras.
Acréscimos expletivos do racismo estrutural
Fora do âmbito do CERD, alguns estudiosos consideram o racismo um aspecto indissociável do desenvolvimento do capitalismo, justificador ideológico da expansão colonial da Europa. Tendo o homem europeu, em sua divisão da espécie humana, auto classificado como branco e civilizado, logo dominador “natural” dos “selvagens”, aí incluídos os povos insulares do Índico e do Pacífico, os nativos da América, os mouros e negros da África, o racismo como ideologia transformava a conquista em “missão civilizadora”, religiosa e redentora. Com relação a esses aspectos não conheço grandes divergências. Mas há outras variantes com as quais não posso concordar. São teorias com força meramente propagandística, sem nada propor de concreto.
Muitos militantes e alguns estudiosos dizem que o racismo por cor é uma criação portuguesa, dos séculos XV e XVI, instituída para legitimar a escravização dos negros e sua utilização na agricultura em terras recém descobertas. Por mais apelo político que tal interpretação possa ter num país como o Brasil, onde os próprios lusodescendentes achavam que estariam melhor se os colonizadores fossem ingleses ou holandeses – uma falácia de quem desconhece a história e não nota países como a Guiana, o Suriname, a África do Sul ou a Índia -, ela não explica um fato pouco recordado: a escravização de africanos negros pelos árabes, muito anterior à chegada dos portugueses. Estendendo-se por treze séculos – do Século VII ao Século XX -, com características tão desumanas quanto as do sistema europeu, essa escravização incluía o escaldante tráfego trans saariano das vítimas, a pé e acorrentadas, guiadas por beduínos (autóctones norte-africanos) e “mouros” (muçulmanos morenos), montados em camelos e cavalos. À travessia sul-norte do Saara, tão desumana e mortífera quanto o transporte transatlântico, seguia-se o envio dos sobreviventes em navios negreiros, de portos no Mediterrâneo, ou no Índico, para a Arábia e o Golfo Pérsico. Envolvia, também, ademais da separação das famílias como ocorria na América, a castração dos meninos e rapazes destinados ao serviço doméstico e palaciano como eunucos.[10] Quanto à afirmação hoje disseminada de que a escravização de negros e índios em invasões de captura foi uma invenção dos mercadores lusos na África e de bandeirantes paulistas nas terras brasileiras, ela tampouco resiste, como exclusividade, a provas históricas. A escravidão de prisioneiros etnicamente diferentes remonta a tempos bíblicos, bastando recordar os escravos de Jó, ou Job, ou aqueles decorrentes de conflitos greco-romanos de conquista. Foram eles que formaram a classe dos escravos justificada por Aristóteles, e a casta de gladiadores, heroicamente liderados por Spartacus. Muitas das guerras da antiguidade, em todos os continentes, e da Baixa Idade Média na Europa e no Oriente Próximo, além de envolverem disputas de poder e território, eram motivadas pelo butim e pela obtenção de prisioneiros para submetê-los à condição servil. A maioria dos africanos escravizados destinados às colônias americanas era comprada de lideranças negras na África. A culpa principal dos traficantes portugueses, franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e árabes, nesse aspecto, terá sido o estímulo às guerras intertribais, de que, às vezes, também participavam. Quanto à utilização maciça de escravos em empreendimentos de grande escala, as pirâmides do Egito, dos Astecas, dos Maias, e todas as obras ditas “faraônicas” recorreram a eles. A diferença do escravismo europeu nas Américas terá sido quantitativa e macroeconômica: os grandes números transacionados, a duração adentrando a modernidade “iluminista” e a destinação mercadológica. A intensidade do fenômeno e seu emprego principal na produção de açúcar, cacau, café, algodão e metais preciosos para o mercado europeu são os aspectos que lhe conferiram natureza capitalista, regulamentada como sistema essencial à economia.
Enquanto é possível ter reservas a certas interpretações militantes, assim como a tentativas de imposições comportamentais e linguísticas ditas “politicamente corretas”, isso não implica negar o racismo no Brasil. Seu caráter estrutural, transmitido através de gerações, pode dificultar a visualização completa do fenômeno, mas não oculta seus efeitos perniciosos, passados e presentes. Menos ainda obvia as incidências traumáticas sobre as vítimas, que as enfrentam no dia a dia de sua condição marginalizada numa sociedade desigual. Nesta, a expressão de preconceitos, que o Vice-Presidente considera casos isolados, embora reconheça as “brutais desigualdades existentes por diversos motivos”[11], vem-se agravando assustadoramente, com a utilização das redes sociais. Da mesma forma, essas mesmas redes propiciam reações arrogantes de hipersensibilidade, agressivas em sentido contrário, tornando-se nossa situação parecida com a dos Estados Unidos. Até porque, tanto lá como aqui, em níveis diferentes, a falta de ações governamentais consistentes para solucionar problemas sociais leva os miseráveis, negros e hispânicos, de um lado, pretos e mestiços de diversas etnias, de outro, a recorrerem ao crime e ao tráfico de drogas como meio de sobrevivência e autoafirmação. E tanto lá como aqui a facilidade para obtenção de armas é fator de expansão da violência em níveis alarmantes, violência que envolve e sacrifica em primeiro lugar a população negra.
Patriotismo e defesa da igualdade Racial
Ninguém que não seja vítima direta da discriminação gosta de reconhecer, muito menos de ouvir de terceiros, que seu país é racista. Assim como ninguém que não seja vítima de abusos e medidas arbitrárias gosta de reconhecer que seu país é violador de direitos humanos. Tanto discriminações raciais como outras agressões a direitos e liberdades fundamentais são geralmente encarados como problemas alheios, de terceiros, o que nos permite guardar a consciência limpa. É esse aspecto auto compassivo que o CERD procura combater ao assinalar a abrangência planetária do racismo.
Quem se interessa pelo tema encontrará na internet um fascículo do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos com o texto integral da Lei 12.288, de 2010, nosso Estatuto da Igualdade Racial. Dessa atraente publicação, em que se relacionam o Presidente Jair Messias Bolsonaro, a Ministra Damares Alves, e a atual Secretária Nacional da SEPPIR, Sandra Terena, como patrocinadores do panfleto de 2019, consta inclusive, na quarta capa, o lema “Pátria Amada BRASIL”. Na apresentação, assinada por Sandra Terena, é dito:
“… Nossa história mostra um processo de relações conflituosas entre diferentes povos a partir da colonização. Povos indígenas exterminados, negros africanos escravizados, ciganos condenados. Com a chegada de outros povos, tais como os imigrantes europeus, japoneses e árabes, outras formas de racismo se multiplicaram, estabelecendo uma sociedade desigual em oportunidades e direitos”.[12]
É para ajudar a superar tais desigualdades que o Estatuto foi adotado, constituindo, segundo a apresentação, “um importante instrumento para que as desigualdades raciais sejam reconhecidas e abordadas em diferentes esferas do governo…”. Em sintonia com a ideia de racismo estrutural, que se prolonga pelas instituições, a apresentação ressalta a necessidade de “ações comprometidas com a igualdade racial”, uma vez que “não se revertem estigmas de longa duração por mera formalização de direitos.”
Tanto o Vice-Presidente, como o Presidente da República, evidenciaram, nas respectivas declarações, desconhecer o conceito de “racismo estrutural”, confirmado pelo próprio governo. O General Mourão, pegado de surpresa, negou-o pelo que a expressão parece denotar de ofensivo. Explicou sua negativa do racismo brasileiro pela comparação com a separação racial nos Estados Unidos, observada quando lá morou, poucos anos depois da adoção do Civil Rights Act, pelo Presidente Lyndon Johnson, em 1964. Já o Presidente da República não tinha motivo plausível para levantar o assunto no G-20. Exceto, talvez, a intenção de relançar, para o Brasil e para o exterior, a propaganda da democracia racial brasileira na semana da Consciência Negra.
Se a origem da negação atual do racismo for a velha doutrina da democracia racial, é preciso que o Brasil se prepare para mais iniciativas destrutivas dos avanços. O risco é preocupante com relação às cotas universitárias, responsáveis pela ascensão social de uma já respeitável classe média negra, pois a Lei 12.711, de 2012, determina reexame do sistema em 2022. Acima de tudo, porém, é preciso que se convençam, urgentemente, as pessoas de boa-fé, manipuladas por cultivadores de teorias de conspiração paranoicas, de que patriotismo não é monopólio de um único estamento ou segmento da população. Como estipula o Artigo 3° da Lei 12.288, vigente e difundida pelo governo, “o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira” (grifo do autor).
Brasília, 5 de dezembro de 2020
* Membro do Comitê Assessor do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e Ex-Membro do CERD – Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (ONU, Genebra, 2002-2018)
[1] https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/discursos-artigos-e-entrevistas/presidente-da-republica/presidente-da-republica-federativa-do-brasil-discursos/
[2] https://oglobo.globo.com/cultura/leia-integra-das-declaracoes-em-que-sergio-camargo-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de-escoria-maldita-24462253
[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/11/21/bolsonaro-deixa-participantes-do-g-20-em-choque-ao-falar-de-racismo.htm
[4] https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26535&LangID=E
[5] https://oglobo.globo.com/sociedade/policia-apura-envolvimento-de-sete-pessoas-na-morte-de-nego-beto-24762089
[6] Eighteenth to twentieth periodic reports submitted by Brazil under article 9 of the Convention, due in 2008, Doc.CERD/C/BRA, 18-20, 15/09/2020, ainda sem data para apresentação oral e defesa.
[7] https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/mourao-apos-fala-sobre-racismo-podem-discordar-mas-nao-precisam-ofender
[8] Explico com atenção o funcionamento do CERD em meu livro É Preciso Salvar os Direitos Humanos, S. Paulo, Perspectiva, 2018, especialmente no capitulo 3: “Cinquenta anos da Convenção Sobre a Eliminação da Discriminação Racial”.
[9] O Brasil assinou a Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação Racial em 7 de março de 1966, primeiro dia em que ela foi aberta a assinaturas, na sede da ONU, e a ratificou em 27 de março de 1968.
[10] Antes que se pense que digo isso por preconceito anti-muçulmano, recomendo a todos o excelente texto do Professor Kabengele Munanga “Algumas consideração sobre ‘raça’, ações afirmativas e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos’, Revista USP, 68, S. Paulo, 2006. Sobre os aspectos desse tráfico, v. Tidiane N’Diaye, Le génocide, voilé, enquete historique, Paris, Gallimard, 2009.
[11]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/11/20/nao-existe-racismo-no-brasil-diz-mourao-apos-morte-de-homem-no-carrefour.
[12] https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-racial/Estatuto_Igualdade_Racial_DIGITAL.pdf
Referência imagética:
Diário do Centro do Mundo (DCM), 20 de novembro de 2020.
VÍDEO – Mourão sobre assassinato no Carrefour: “No Brasil não existe racismo”