Juliana Inez Luiz de Souza[1]
Os números, infelizmente, são velhos conhecidos. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres (FBSP, 2022; IPG, 2016) e o que mais mata pessoas LGBT+[2], principalmente pessoas trans, no mundo (ACONTECE; ANTRA; ABGLT, 2022; BOHRER, 2022; PINHEIRO, 2022). Nestas eleições não podemos banalizar a influência dos discursos de violência, ódio e medo que também foram mobilizados como “arma política” nas disputas anteriores.
Como apontam os artigos anteriores desta série especial, uma eleição envolve diversos aspectos que podem influenciar a decisão eleitoral das pessoas. Mas aqui, quero destacar dois pontos já citados: a questão da chamada “ideologia de gênero” (abordada por Joyce Martins) e a influência do debate internacional (tratada por Bernardo Ricupero, Maria do Socorro Braga e Johnny Daniel Nogueira). Eles estão relacionados entre si e unem vários outros que têm por base o discurso – no sentido de tudo aquilo que pode ser “lido” (palavras, textos, imagens, áudios, vídeos, etc).
Desde as eleições de 2010, pautas e argumentos morais e conservadores têm assumido protagonismo nas campanhas presidenciais, com destaque para o papel da internet como palco de embates, ataques e de visibilidade dos debates envolvendo as questões de gênero e diversidade sexual (DIAS, 2013).
Nas eleições de 2018, uma das bandeiras de diversas candidaturas foi o combate à “ideologia de gênero”. Esse termo, que funciona como um significante vazio e adaptável (CORRÊA, 2017), tem servido como representação da união de diversas pautas conservadoras desde o início dos anos 2000 no Brasil. Nele cabem todas as propostas de retrocesso aos avanços conquistados por mulheres e pessoas LGBT+ e de novas legislações que tenham propostas de debate dos conceitos de sexo, gênero, sexualidade e cis-mono-heteronormatividade. A “ideologia de gênero” ganha mais visibilidade e força no país a partir de 2013 com os debates sobre o Plano Nacional de Educação, sendo uma das bandeiras do projeto e do movimento Escola Sem Partido.
Não foram raros também na última disputa os casos de discursos, vídeos e outras formas de fake news criadas sobre as temáticas de gênero, diversidade sexual e sobre as pessoas que reforçam a importância do debate destas questões. Tivemos menções desde o já exaustivamente explorado “kit gay”, assim como a associação das temáticas com a pedofilia, até a novidade da “mamadeira de piroca” (ESTADÃO, 2018).
O fator comum em todos estes discursos de combate a “ideologia de gênero” são a defesa da família, das crianças, da nação e de valores morais e cristãos que estariam sendo ameaçados pelas feministas, LGBT+ e demais pessoas e movimentos que apoiam pautas inclusivas e progressistas (com destaque para os partidos de esquerda). Nesse processo, estas pessoas e instituições são marcadas não como adversários políticos, mas como inimigos morais que precisam ser combatidos e eliminados.
Outras características de destaque são a mobilização do pânico moral e a espetacularização destes debates no que tem sido entendido como uma “guerra cultural”. Nela, o pânico moral é utilizado ao associar a “ideologia de gênero” a velhos monstros do imaginário da população, como o comunismo, além de criar novos que nem ao menos têm um significado real, caso do “marxismo cultural”. Ele também provoca e estimula o anticientificismo contra qualquer teoria que seja contrária a “natureza” das pessoas e da família entendida como universal, com base em valores morais cristãos, formada por um homem e uma mulher, cisgêneros, heterossexuais, monogâmicos e que cumprem seus papéis de gênero – ele responsável pelo sustento financeiro e ocupando o espaço público, e ela nas tarefas de cuidado, reprodução e no espaço privado.
Esses discursos são visibilizados e espetacularizados pelos meios de comunicação marcados pelos embates entre quem é contrário e quem é favorável aos debates das temáticas de gênero e diversidade sexual. Nestes acontecimentos são comuns performances de ambos os posicionamentos. De um lado, orações, cruzes e até um boneco de Judith Butler já foi queimado aos gritos de “queimem a bruxa” (FSP, 2017). Do outro, carros de som, músicas, cartazes e beijaços.
Tais embates são especialmente explorados pelas mídias cristãs, nos inúmeros sites e programas religiosos de rádio e TV, principalmente nos propagados por celebridades religiosas conservadoras católicas e evangélicas (CUNHA, 2014). Este segundo grupo tem habilidadereconhecida na apropriação da mídia em que a “ideologia de gênero” tem sido a principal arma nas guerras verbais contra as questões de gênero e diversidade sexual. Por meio destes espaços, e nos discursos nas grandes igrejas neopentecostais, esta pauta ganha visibilidade social e rendimento político e eleitoral (CARRANZA, 2020). A mídia se torna um dos campos de batalha em que este ‘inimigo poderoso’, que expressa o ‘interesse oculto’ de feministas, LGBT+ e da ‘esquerda’ precisa ser combatido (CUNHA, 2017; SOUZA, 2014).
Essa realidade alcança outro nível graças as recorrentes notícias no mundo de retrocessos nos países com base no discurso de combate à “ideologia de gênero”, principalmente do Leste Europeu e da América Latina (KUHAR; PATERNOTTE, 2017; CORRÊA, 2021). Estas ofensivas classificadas como antigênero ou antidireitos têm estado presentes em legislações, políticas públicas, propostas e programas de governo caracterizando as ações e movimentos com esta pauta como uma organização transnacional. Na última década, vimos a aprovação na Rússia da lei contra a “propaganda” LGBT+, a Polônia criar zonas livres de LGBT+, vários países não ratificarem a Convenção de Istambul de combate à violência contra as mulheres, entre diversos outros exemplos.
O histórico da pauta do combate à “ideologia de gênero” mostra que ela tem sido fortemente utilizada como instrumento político, em especial nos processos eleitorais e nas temáticas ligadas à educação (SOUZA, 2020). É comum entre as pessoas e movimentos que defendem este posicionamento usarem exemplos de outros países em seus argumentos que, junto com o pânico moral, servem para justificar e dar um tom de “justiça” para seus discursos antidireitos, para o ódio e a violência (ZAMFIR, 2018; KUHAR, 2015). Neste cenário, lamentavelmente, o Brasil se tornou nos últimos anos uma espécie de vitrine do conservadorismo mundial, onde o combate à “ideologia de gênero” tem servido de modelo para outros países.
As ações e campanhas antidireitos no mundo são associadas também à ascensão política do populismo de extrema-direita, de pessoas fundamentalistas, de processos de desdemocratização e de ataques às instituições democráticas. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido um dos alvos constantes por ser responsável nos últimos anos por alguns avanços como a criminalização da LGBTfobia, o casamento homoafetivo, a mudança de sexo no registro civil sem autorização judicial e sem necessidade de cirurgia, por considerar as propostas do projeto Escola Sem Partido e similares inconstitucionais, etc. O argumento é de que o Judiciário não teria autonomia para estas decisões, as quais seriam de competência do Congresso que representa “a maioria” (que no país é cristã) que não aceita “artificialidades” e que, assim como a Constituição, reconhece a família como formada por um homem e uma mulher.
Tendo este panorama em mente, não podemos menosprezar os discursos de ódio que são munição para as ações de violência cotidianas e que nestas eleições sairão mais uma vez fortalecidas de seus armários. Os discursos contra a “ideologia de gênero” se juntam, alimentam, justificam e autorizam expressões de ódio às mulheres, LGBT+, pessoas não brancas, à “esquerda”, religiões de matriz africana e outros grupos minoritários no poder. A mobilização do medo à diferença e às medidas inclusivas e progressistas através do discurso tem efeitos reais. Vide os exemplos das mortes de pessoas LGBT+ em 2018 assassinadas por bolsonaristas (CATRACA LIVRE, 2018; REVISTA LADO A, 2018).
Todo este quadro demonstra a urgência da não banalização do ódio nos discursos, mesmo que muitas pessoas acreditem que estes debates já foram “superados”, principalmente quando levamos em conta outros fatores. O primeiro deles são os 20% de apoiadores fiéis do governo que permanecem sendo mobilizados por Bolsonaro por meio das chamadas pautas morais e de costumes (incluídas aí suas falas machistas, LGBTfóbicas, racistas e outras expressões discriminatórias). Outro ponto é que as fake news serão novamente disseminadas pela internet e nas redes sociais para reforçar o pânico moral relacionado às pautas de gênero e diversidade sexual (MATSUKI, 2021).
Em um país com mais de 80% de pessoas cristãs, com 30% de eleitorado evangélico e que no último governo triplicou o porte de armas, o discurso de ódio não pode ser ignorado. Assim como há necessidade de que as candidaturas progressistas assumam as questões de gênero e diversidade sexual como estruturais e estruturantes em suas propostas de defesa da democracia. Ou seja, entendendo a democracia enquanto regime que prevê conflito dentro das regras da política e da civilidade, na qual a maioria não pode perseguir e nem excluir as minorias.
Esta defesa não pode, como em disputas anteriores, ser utilizada como “moeda de troca”, que em nome de uma governabilidade ou do cálculo para um maior número de votos seja descartada. Nestas eleições, é preciso que haja a efetiva compreensão e o compromisso com a defesa irrestrita da vida, em que o discurso de ódio seja combatido e não amenizado. Também é preciso que nós, pessoas sujeitas e impactadas por estes discursos, não nos deixemos paralisar pelo medo que ele causa às nossas vidas.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ACONTECE, Acontece Arte e Política LGBTI+; ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais; ABGLT, Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos. Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil: Dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, ANTRA, ABGLT, 2022. Disponível em https://bit.ly/3bO0UPe. Acesso em 04 ago. 2022.
BOHRER, Larissa. Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo pelo quarto ano consecutivo. Rede Brasil Atual, São Paulo, 12 maio 2022. Disponível em https://bit.ly/3p7yHFV. Acesso em 04 ago. 2022.
CARRANZA, Brenda. Presentación – Erosión de las democracias latinoamericanas: el ascenso político de los cristianos. Ciências Sociais e Religião, Campinas, v. 22, n. 0, p. e020013, 2020.
CATRACA LIVRE. Aos gritos de ‘Bolsonaro’, travesti é assassinada no centro de SP. Catraca Livre, São Paulo, 16 out. 2018. Disponível em https://bit.ly/3zLZhJM. Acesso em 04 ago. 2022.
CORRÊA, Sonia. Ideologia de gênero: rastros e significados. Folha de S.Paulo, São Paulo, 05 nov. 2017. Disponível em https://bit.ly/3tfdieh. Acesso em 04 ago. 2022.
CORRÊA, Sonia (Ed.). Políticas antigênero na América Latina: resumos dos estudos de casos nacionais. Rio de Janeiro: Observatório de Sexualidade e Política (SPW), Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids (ABIA), 2021.
CUNHA, Magali do Nascimento. Construções Imaginárias sobre a Categoria “Gênero” no Contexto do Conservadorismo Político Religioso no Brasil dos Anos 2010. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 253-276, maio/ago. 2017.
CUNHA, Magali do Nascimento. Gênero, religião e cultura: um olhar sobre a investida neoconservadora dos evangélicos nas mídias no Brasil. In: SOUZA, Sandra Duarte; SANTOS, Naira Pinheiro. Estudos feministas e religião: tendências e debates. Curitiba: Prismas/Metodista, 2014. p. 101-126.
DIAS, Marcia Ribeiro. Nas brumas do HGPE: a imagem partidária nas campanhas presidenciais brasileiras (1989 a 2010). Opinião Pública, v. 19, n. 1, p. 198-219, 2013.
ESTADÃO. ‘Mamadeiras eróticas’ não foram distribuídas em creches pelo PT. Política, Estadão Verifica. Estadão, São Paulo, 28 set. 2018. Disponível em https://bit.ly/3QDEXRH. Acesso em 04 ago. 2022.
FBSP, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência contra as mulheres em 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em https://bit.ly/3djYKHk. Acesso em 04 ago. 2022.
FSP, Folha de S.Paulo. Manifestantes pró e contra Judith Butler protestam no Sesc Pompeia. Folha de S.Paulo, São Paulo, 07 nov. 2017. Disponível em https://bit.ly/3aap2aK. Acesso em 04 ago. 2022.
IPG, Instituto Patrícia Galvão. Dossiê Feminicídio. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2016. Disponível em https://bit.ly/3zLZ0qb. Acesso em 04 ago. 2022.
KUHAR, Roman. Playing with science: Sexual citizenship and the Roman Catholic Church counter-narratives in Slovenia and Croatia. Women’s Studies International Forum, 49, p. 84-92, 2015.
KUHAR, Roman; PATERNOTTE, David (Eds.). Anti-Gender Campaigns in Europe: Mobilizing against Equality. London/New York: Rowman & Littlefiield International, 2017.
MATSUKI, Edgard. “Kit gay”, “boneca trans” e “mamadeira de piroca”: por que as fake news sobre sexualidade arrebatam e enganam tantas pessoas?. Boatos.org, 24 out. 2021. Disponível em https://bit.ly/3Am5Iox. Acesso em 04 ago. 2022.
PINHEIRO, Ester. Há 13 anos no topo da lista, Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo. Brasil de Fato, São Paulo, 23 jan. 2022. Disponível em https://bit.ly/3dlYs2P. Acesso em 04 ago. 2022.
REVISTA LADO A. Um gay morto no armário e um assassino obcecado por Bolsonaro. Revista Lado A, Curitiba, out. 2018. Disponível em https://bit.ly/3dqlh5y. Acesso em 04 ago. 2022.
SOUZA, Juliana Inez Luiz de. “Ideologia de Gênero” na Cobertura Jornalística do Brasil e de Portugal: Comparando Disputas Políticas Discursivas. In: BAPTISTA, Maria Manuel; ALMEIDA, Alexandre R. A. Género e Poder: Performatividades Contra-hegemónicas. Coimbra: Grácio Editor, 2020.
SOUZA, Sandra Duarte de. “Não à ideologia de gênero!” A produção religiosa da violência de gênero na política brasileira. São Bernardo do Campo: Estudos de Religião, vol. 28, n. 2, p. 188-204, julho/dezembro 2014.
ZAMFIR, Korinna. Returning Women to Their Place? Religious Fundamentalism, Gender Bias and Violence Against Women. Journal for the Study of Religions and Ideologies, n. 51, v. 17, p. 3-19, 2018.
[1] Doutora e Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharela em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Integrante do grupo de pesquisa Midiaculturas, poder e sociedade da UFPR. Mulher, cis, bissexual, branca e militante dos movimentos feministas e LGBT+. ResearchGate: https://www.researchgate.net/profile/Juliana-Souza-18; OrcId: https://orcid.org/0000-0003-1361-3159.
[2] Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, não binárias e demais dissidências sexuais e de gênero.
Fonte Imagética: Imagem de capa do “Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT”, Presidência da República, Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Brasília, 2009. Disponível em: <https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/39/LGBTI/Plano%20Nacional%20de%20Promo%C3%A7%C3%A3o%20da%20Cidadania%20e%20Direitos%20Humanos%20LGBTI.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2022.