Igor Novaes Lins[1]
O diagnóstico sobre letalidade policial e seu viés racial é apontado por inúmeras pesquisas. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, registrou que 79,1% das pessoas mortas em intervenções policiais eram pretas e pardas em 2020 – o maior número da série histórica. Número superior aos 74,4% de vítimas de homicídios policial que eram pretos e pardos do ano anterior, ainda que a circulação de pessoas tenha diminuído em decorrência da pandemia de Covid-19 e a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha restringido as operações policiais no Rio de Janeiro. De acordo com os dados, a vítima padrão continua sendo o jovem negro da periferia.
Durante a atual legislatura, foram nulas as respostas, tanto em termos de políticas públicas quanto de alterações da legislação penal. A pauta de ampliação de direitos raciais no Congresso Nacional permanece intocada em todos os âmbitos. Por outro lado, foi aprovada a Lei Anticrime, o que, conforme apontaram entidades do movimento negro e de direitos humanos, configurou um enorme retrocesso para a população carcerária e para o direito penal como um todo. Sintomático não só de um governo antinegro, mas de um parlamento onde o recrudescimento penal encontra apoio na direita e na esquerda: a proposta teve somente 9 votos contrários, sendo que 421 foram a favor.
Os atos antirracistas nos Estados Unidos em 2020, tiveram alguma reverberação no Brasil e em outros países. A morte de George Floyd, homem negro estadunidense assassinado por policiais brancos, gerou um intenso movimento de apoio nas mídias sociais. Lá fora, o Black Lives Matter (BLM) ocupou as ruas de todo o país, sensibilizando celebridades, políticos e intelectuais. A tag #blackoutthursday, seguida de imagens com a cor preta, tomou o Instagram em resposta ao assassinato de Floyd, Ahmaud Arbery e Breonna Taylor.
No Brasil, até mesmo empresas “ecoaram” o movimento em seus perfis nas mídias sociais. O sentimento de revolta dos internautas evidenciou os casos de racismo policial também por aqui. Presenciamos manifestações contra o racismo e o fascismo levantadas por torcidas organizadas em junho de 2020. Elas foram motivadas pelo movimento antifascista e antirracista do exterior e pela má gestão do governo Bolsonaro na pandemia de Covid-19.
Cinco meses depois de Floyd, o assassinato de João Alberto Freitas numa loja do Carrefour, em Porto Alegre (RS), tomou os noticiários do país. Manifestações aconteceram em vários estados. Um dos assassinos era um policial militar que fazia segurança privada para empresa terceirizada pelo Carrefour — prática ilegal em vários estados, mas não regulamentada no Rio Grande do Sul.
Em resposta, a Câmara dos Deputados, sob a figura do ex-presidente Rodrigo Maia (RJ), criou a “Comissão de Juristas Combate ao Racismo No Brasil”, com o intuito de atualizar a legislação brasileira sobre o racismo. A ideia era ser um primeiro passo para lidar com a violência policial e todas as injustiças sócio-raciais do sistema de justiça criminal, no entanto, a comissão restringiu-se às audiências públicas, sem qualquer final de avanço na atual conjuntura política. Adicionalmente, foi criada uma comissão para acompanhar as investigações sobre a morte de João Alberto Freitas no Carrefour, mas sem qualquer poder decisório.
Dado o intenso debate nas mídias sociais sobre o tema e os notórios casos de racismo envolvendo violência policial no Brasil, me preocupei em entender se os parlamentares se posicionaram sobre o tema e se tinha ocorrido debates sobre o caso. Assim, busquei investigar o enquadramento e as disputas de narrativas em torno das polícias militar e civil e dos casos notórios de racismo. Qual a posição dos parlamentares de direita sobre os casos de violência policial? Os parlamentares de direita relacionam o sistema de justiça criminal ao racismo estrutural ou repudiam casos específicos de racismo?
Opiniões no Twitter
A maioria esmagadora dos parlamentares se manteve totalmente imune a qualquer discussão sobre o tema. Ao fazer uma análise do Twitter das lideranças, percebi que a maior parte delas não tocou em nenhum assunto relacionado ao antirracismo e à violência policial no período entre janeiro de 2019 e maio 2021. O líder do ‘Bloco PSL, PL, PP, PSD, MDB, PSDB, REPUBLICANOS, DEM, PODE, AVANTE, PATRIOTA’, Hugo Motta (Republicanos/PB), até fala de outras violências, como casos de crimes interpessoais e contra as mulheres, mas sequer menciona a palavra “racismo” desde sua entrada na plataforma, em 2010.
O deputado Vinicius Poit (SP), líder do Partido Novo, tem um único tweet relacionado ao tema da violência, em que critica a manifestação da reforma da Previdência na Assembleia Legislativa de São Paulo. Para ter certeza de que não teria viés, já que o parlamentar pode não incluir a violência em suas agendas prioritárias, pesquisei apenas palavras sobre racismo em sua rede. Nenhum tweet sobre o tema foi encontrado. Igualmente, os líderes Aluisio Mendes (PSC/MA), do ‘Bloco PROS, PSC, PTB’, e Lucas Vergilio (GO), do Solidariedade, se abstiveram do tema.
No campo mais à esquerda, Danilo Cabral (PE), líder do PSB, e Wolney Queiroz (PE), líder do PDT, também não se manifestaram sobre o tema no Twitter. Em um partido liberal, o deputado Alex Manente (SP), líder do Cidadania, também não tocou no assunto. Suas mensagens na rede se resumiram ao apoio da lei Anticrime, com claro viés racista, conforme apontam os posicionamentos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e a Coalisão Negra por Direitos.
No âmbito das mídias sociais, os tweets partiram de três líderes de esquerda, duas delas mulheres não-brancas: Joenia Wapichana (RR), líder da Rede e mulher indígena com notória atuação na causa dos povos originários; e a Taliria Petrone, mulher negra e líder do PSOL, que teve a pauta racial como bandeira de campanha e a tem como prioridade no mandato. Ademais, o deputado Bohn Gass (RS), líder do PT, se posicionou reiteradamente sobre o tema nos últimos dois anos, além de críticas anteriores à violência policial.
Discursos no Plenário da Câmara dos Deputados
Por outro lado, ao levantar discursos em Plenário de todos os deputados no interstício de temporal entre 2019 e 2021, a conjuntura piora significativamente. A estratégia adotada pelos parlamentares é de negar a relação entre racismo e violência policial. O caminho perpassa justificar a ação violenta da polícia militar e civil pela necessidade do uso da força em momentos de alta periculosidade. Isso se acentua nas operações policiais em favelas e periferias.
A primeira observação que tive é a de que nos casos de violência policial contra pessoas não taxadas enquanto “criminosas”, os parlamentares fizeram discursos de pesar, sempre advertindo para a culpa do crime organizado em colocar inocentes no meio da guerra. Em nenhum caso as instituições policiais foram condenadas por assassinatos. Sequer é mencionada a possibilidade de erros ou excessos por parte dos policiais. De modo específico, ser vítima da violência policial não é possibilidade na visão dos parlamentares de direita.
Quando Ágatha Félix, menina de 8 anos, foi morta pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) enquanto andava de carro com a mãe no Complexo do Alemão, a culpa foi totalmente atribuída a uma resposta às atividades do crime organizado na favela. O deputado Daniel Silveira (PSL/RJ), por exemplo, deslocou a atenção do processo sistemático de violência contra pessoas negras ao atribuir responsabilidade às “narcofacções”. Ele ainda tentou eufemizar a ação policial ao reescrever a morte da menina como um emprego necessário e bem-sucedido da força de parte da corporação.
Nos casos em que a violência policial envolvia um suposto “criminoso”, a regra foi a comemoração das operações e do resultado que culminou na morte de pessoas negras. Através de estereótipos de “meliantes”, “criminosos”, “bandidos” e “marginais”, remonta-se aos padrões de racismo de uma forma supostamente neutro em termos raciais. O tratamento racial desigual é ainda ditado por meio das fantasias e estereótipos do sistema de justiça criminal.
Esse não é um evento propriamente novo ou original do Brasil. Michelle Alexandre (2018) narra algo parecido nos Estados Unidos com o fim do Jim Crow, conjunto jurídico que impunha uma segregação racial. Desde então, por uma suposta neutralidade do Estado, não é mais permissível o uso da raça como fator discriminatório. O sistema de justiça criminal é usado, portanto, para dar uma representação “neutra” aos não-brancos: o “rótulo de criminoso”. Assim, as mesmas práticas seguem, mas com nomes diferentes.
No campo da Análise Crítica de Discurso, referencial teórico-metodológico utilizado na pesquisa, o “expurgo do outro” foi a forma mais usadas de demarcação de diferença racial e legitimação da violência policial. John Thompson (1995) classifica como “expurgo do outro” uma das principais técnicas de dominação através do discurso, a qual consiste em construir o inimigo, o bandido, que é representado como mal e perigoso e deve ser excluído (“expurgado”) do convívio social.
Por mais que não use de uma ideologia explicitamente racista, os congressistas usam o discurso para reforçar os padrões raciais, a partir do momento que sabemos quem será considerado bandido ou não pelos critérios das instituições. As vítimas dessa guerra têm cor, classe social e território.
Um dos exemplos nítidos dessa postura racista foi durante a chacina do Jacarezinho. Durante minha coleta de dados, aconteceu a operação da Polícia Civil do RJ no Jacarezinho, na Zona Norte. Considerada a operação mais letal da história, 27 pessoas foram mortas pelo Estado e uma delas pelo crime, um policial civil. Essa ação aconteceu claramente em contradição com ADPF nº 635, em que o Supremo Tribunal Federal determinou que as operações policiais no estado deveriam acontecer somente em caso de excepcionalidade e informadas ao Ministério Público do estado.
Impulsionados pela ocasião dois parlamentares proferiram em defesa da atuação policial por dois parlamentares. Neles, foram parabenizados a corporação e o governador do Estado. O deputado Otoni de Paula (PSC/RJ), pastor evangélico e integrante da Bancada da Bala, comemorou o não cumprimento da ordem do STF em seu discurso. Além da retórica de “expurgo do outro”, como foi identificado em outras falas, chama a atenção o desprezo pela vida. No dia 6 de maio, a PCRJ ainda não tinha divulgado o nome, perfil e mandatos contra os assassinatos. Não era possível indicar se eram pessoas indiciadas de fato por associação ao crime organizado, mas o deputado Otoni de Paula (PSC/RJ) os caracterizou como “vagabundos” e “marginais”.
Na situação, o discursos reproduzem, subjetivamente, a concepção de territórios e classes perigosas. A ilustre antropóloga Alba Zaluar (1991) atribui a esse fenômeno a mudança semântica, em processo, de pobreza relacionada à violência nos discursos que justificam a representação social da violência ligada às classes populares. Se trata de uma estratégia discursiva para justificar uma suposta ameaça de violência merece ação estatal dura nesses territórios.
Considerações Finais
Fica nítido, nos discursos coletados, que a noção de cidadania é uma via de mão única de cobrança de deveres no caso de territórios racializados, para não dizer inexistente na maior parte das vezes. Ela se manifesta na cobrança autoritária por deveres e não através dos direitos, conforme aponta Alba Zaluar. Nesses lugares, os “cidadãos” são àqueles os que pagam impostos e cumprem seus deveres com a manutenção da ordem Estado.
Essas conclusões são resultadas de uma pesquisa mais ampla ainda em processo de revisão por partes. De início, era esperado que o parlamento estivesse minimamente conectado com as discussões das mídias sociais e que parlamentares da centro-direita e da centro-esquerda encapassem uma disputa discursiva para se apropriar da pauta antirracista. Mas, pelo contrário, a pauta só encontrou apoio nos poucos deputados já comprometidos com a causa.
Referências Bibliográficas
ALEXANDRE, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
ZALUAR, Alba. Brasil na transição: cidadãos não vão ao paraíso. São Paulo em Perspectiva, v. 5, n. 1, p. 19–25, 1991.
Referência imagética:
https://www.brasildefato.com.br/2021/05/12/movimento-negro-promove-jornada-de-combate-ao-racismo-veja-programacao (Acesso em 19 set. 2021)
[1] Mestrando em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador do Núcleo de Pesquisa Flora Tristán: representações, conflitos e direitos.
Contato: igornovaeslins@gmail.com