No dia de ontem, 26 de maio de 2022, nos deixou, em consequência da COVID-19, o grande José Augusto Lindgren Alves, membro histórico do CEDEC e do recém-criado Núcleo de Direito e Direitos Humanos, também do CEDEC. Lindgren, como costumava ser chamado, conciliou com maestria, ao longo de sua brilhante trajetória, comprometida atuação diplomática e sofisticada inserção intelectual. E em ambas cultivou o compromisso público com a construção, a consolidação e a aplicação das normas internacionais de direitos humanos e suas instâncias institucionais.
Como Embaixador, Lindgren foi um dos principais responsáveis por praticamente “salvar” a II Conferência Mundial para os Direitos Humanos da ONU, conhecida como Conferência de Viena, em 1993. Em um ambiente extremamente dissensual, o embaixador brasileiro se notabilizou, junto de alguns outros colegas valorosos, pela construção de pontes, pela forja de zonas de justaposição de interesses e pela elaboração de complexas fórmulas acomodatícias, típicas daqueles que possuem inarredável compromisso com o multilateralismo. O legado de Viena é precioso tanto em suas manifestações internacionais (observadas, por exemplo, no surgimento do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU) quanto nacionais (como na elaboração de Programas Nacionais de Direitos Humanos, caudatários da conferência da ONU). Esse legado tem as digitais do Embaixador Lindgren Alves.
Ainda tratando de Viena, Lindgren foi um dos principais responsáveis pela abertura à participação da sociedade civil brasileira. Lutou não somente para que tal abertura fosse realizada e mantida, se articulando aos Ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Parlamento e Presidência da República, como se tornou, no transcorrer da Conferência, o principal interlocutor diplomático com as organizações da sociedade civil brasileiras. A marca de abertura à participação da sociedade civil deixada por Viena também possui, portanto, as decisivas digitais de Lindgren.
Além da sua notável atuação nas outras conferências sociais da ONU ao longo da década de noventa, Lindgren sempre disponibilizou seu tempo para integrar postos (não remunerados) em Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU, notadamente no Comitê de Erradicação da Discriminação Racial. Atuando ali não na condição de representante brasileiro, mas de especialista, emprestou ao órgão toda sua expertise nos temas, acumuladas inclusive em razão da sua atuação diplomática em locais complexos como Bósnia/Herzegovina, Hungria e Bulgária.
Mas o legado diplomático e a natureza inovadora e inquieta de Lindgren Alves ainda vão muito além. O Embaixador brasileiro assumiu o tema dos direitos humanos como uma bandeira dentro do Ministério das Relações Exteriores. Não temendo a difícil relação que o ofício diplomático de defesa de seu país mantém com o potencial desvelador das normas internacionais em matéria de violações, Lindgren corajosamente inseriu esse tema na agenda do Ministério, criando e dirigindo, em 1995, o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Itamaraty.
A atuação de Lindgren, entretanto, não se limitava aos círculos diplomáticos. Ativo e sofisticado pensador, participava dos debates acadêmicos sobre o tema, produzindo frequentemente colunas, artigos e livros. Vários dos textos de Lindgren Alves se tornaram leituras obrigatórias para todos aqueles e aquelas que se aventuram a tentar navegar nas águas dos debates internacionais sobre direitos humanos. Entusiasta em relação à formação de novos quadros brasileiros que pensassem e mobilizassem as normas e instâncias internacionais de direitos humanos, Lindgren aceitava sempre convites para participar de seminários, simpósios e colóquios, contribuindo de modo ímpar com a síntese que realizava entre sua experiência diplomática e seu reluzente acúmulo intelectual. Ademais, algo nem sempre lembrado, Lindgren frequentemente aceitava de forma generosa ser entrevistado por pesquisadores e pesquisadoras de variados níveis, dos mais experientes aos jovens da iniciação científica, nutrindo-os com reflexões e inquietações de grande valia para as suas investigações sobre direitos humanos. As digitais de Lindgren também estão cravadas na disseminação do campo de estudos e pesquisas sobre direitos humanos internacionais no Brasil.
Muito recentemente, nós tivemos a honra de desfrutar da sua fraterna parceria intelectual no Núcleo de Direito e Direitos Humanos do CEDEC. De um lado, podíamos ver com clareza sua indignação com as posturas anti-direitos humanos e anti-multilateralismo do atual governo brasileiro, desconstruindo um edifício do qual ele havia sido um de seus habilidosos arquitetos. De outro lado, era contagiante observar seu entusiasmo intelectual com os debates e iniciativas que planejávamos, sem jamais reivindicar qualquer protagonismo ou visibilidade individual. Sem sua participação de bastidores, tanto na idealização quanto na ativação de contatos, teria sido muito mais difícil, por exemplo, no ano passado realizarmos, ao lado do GPDH do IEA/USP, um histórico seminário que reuniu pela primeira vez todos os ex-ministros, ex-ministras e ex-secretários de direitos humanos dos governos Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Com pesar, recebemos a notícia de seu falecimento. Trata-se de uma perda irreparável para a diplomacia e para a academia brasileira, especialmente para o CEDEC e seu Núcleo de Direito e Direitos Humanos. Somente o precioso legado de José Augusto Lindgren Alves é maior que a lacuna que sua triste partida nos deixa.
Assinam esta nota:
– Diretoria CEDEC
– Andrei Koerner (Núcleo de Direito e Direitos Humanos)
– Carla Vreche (Núcleo de Direito e Direitos Humanos)
– Matheus Hernandez (Núcleo de Direito e Direitos Humanos)
Fonte Imagética:< http://www.iea.usp.br/midiateca/foto/eventos-2018/direitos-humanos-no-brasil-e-no-mundo-06-de-marco-de-2018/jose-augusto-lindgren-alves-1/image_view_fullscreen>. Acesso em: 27 de mai. 2022.