Helcimara Telles1
Bruno Bicalho2
21 de outubro de 2024
Marcando as eleições municipais de 2024, o Boletim Lua Nova convidou pesquisadores e pesquisadoras de diferentes capitais do Brasil para analisarem e comentarem sobre o pleito em suas cidades. Os textos desta série especial podem ser encontrados aqui.
Introdução
As eleições municipais no Brasil vem apresentando mudanças significativas, com um gradual desmantelamento da antiga polarização, na contramão da tendência política em âmbito nacional. Esse ensaio abarca uma análise a partir de uma nova perspectiva sobre a polarização nas eleições municipais em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, e em José da Penha, uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte. Diferentemente do cenário presidencial, onde a polarização se intensificou nos últimos anos entre esquerda e direita, a política municipal reflete um sistema proporcional que permite a diversificação de legendas. O Brasil não é bipartidário, pois, existem 29 partidos políticos legalizados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e isso se torna evidente nas eleições municipais, onde as legendas muitas vezes se articulam em torno de lideranças políticas, focadas em interesses locais mais do que em um programa nacional coeso.
Um dos fenômenos mais marcantes nesse novo cenário é o crescimento de candidatos religiosos, especialmente aqueles vinculados à extrema-direita e orientados por pautas morais. As religiões neopentecostais, por exemplo, têm desempenhado um papel cada vez mais influente nos legislativos municipais, com debates que envolvem temas como aborto, união homoafetiva e a ideologia por trás do movimento “Escola sem Partido”.
Um aspecto na legislação eleitoral brasileira é a distribuição de tempo na propaganda eleitoral de rádio e TV (HGPE), proporcional ao tamanho dos partidos. Esse mecanismo favorece as maiores legendas e gera um desequilíbrio na visibilidade dos candidatos, impactando a competitividade eleitoral. Por outro lado, a internet se tornou importante para amplificar a presença de candidatos de partidos menores, e para disseminar desinformação, o que influencia a decisão do eleitor.
A eleição em BH: famílias, ideologia, cor e gênero na CMBH
Em Belo Horizonte foram derrotadas duas hipóteses. A primeira é a de que a polarização das disputas presidenciais se repetiria no plano local. A segunda, a de que o presidente Lula e o ex-presidente Bolsonaro determinariam os resultados das eleições municipais. Mais do que isso, as famílias de políticos de prestígio influenciaram a eleição dos vereadores de esquerda em Belo Horizonte; os padrinhos dos candidatos a prefeito na capital mineira não obtiveram o mesmo sucesso e os clãs familiares foram fundamentais para a eleição de um prefeito em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte, aqui analisada.
Na tetralogia organizada por Lavareda e Telles sobre as eleições municipais, o primeiro volume (2014) analisou as campanhas e o voto nas localidades. Desde então, foi observado que ainda em 2008, um dos principais equívocos dos analistas foi o de explicar as eleições municipais com teorias para o plano das presidenciais que desconsideravam as conjunturas específicas de cada uma das cidades. Para além dos temas nacionais, incidem nos debates eleitorais, na articulação política e no voto, questões que nem sempre são orientadas a partir da avaliação da política federal, tais como o poder das famílias dos políticos, o personalismo e mesmo as obras realizadas na cidade.
A fragmentação e a ideologia no legislativo municipal de BH
Uma mera visita aos dados eleitorais nos mostra que poucos municípios repetem os padrões dos resultados das presidenciais e que num sistema multipartidário, proporcional e de listas abertas, como o brasileiro, dificilmente se pode aplicar a tese da “polarização”, própria dos sistemas bipartidários como os dos EUA. Em Belo Horizonte a dispersão, e não a concentração, dos votos nas legendas para a Câmara Municipal (CMBH) pode ser observada por meio do número de cadeiras dos vereadores eleitos por cada partido (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Número de cadeiras dos vereadores eleitos por partido (CMBH)
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados do TSE (2024).
A Câmara Municipal saída das eleições ficou bastante fragmentada, com a presença de 19 partidos. Longe de ser concentrado em duas forças polarizadas, o legislativo municipal contou com lideranças distintas, representando quase duas dezenas de legendas. O Partido Liberal (PL) fez a maior bancada, elegendo 6 vereadores, seguido pelo PT (4). PSOL, NOVO, Republicanos, Podemos e PSD obtiveram 3 cadeiras cada um deles. O campeão de votos na cidade foi Pablo Almeida (PL), assessor do deputado federal Nikolas Ferreira (PL), que ultrapassou o recorde de Duda Salabert (PDT) e foi o mais votado para vereador da história de Belo Horizonte com 39.960 votos. Foi a primeira vez que se testou a transferência de votos de Nikolas para outros candidatos. Pablo Almeida tem ensino médio completo e, em suas redes sociais, se define como cristão:
“Hoje, graças a Deus, a gente pode falar que o vereador mais votado da história de Belo Horizonte é cristão, é conservador e é de direita”. (Entrevista de Pablo Almeida ao G1, 6 de outubro de 2024)
O PT dobrou a sua bancada na CMBH e conquistou quatro cadeiras, contra duas na eleição anterior. Contudo, chama a atenção o fato de que três dos eleitos disputaram usando o capital dos sobrenomes de famílias de políticos tradicionais do PT: Patrus, Dulci e Rousseff. O primeiro sobrenome foi reeleito vereador e é filho do ex-prefeito de BH e ex-ministro do governo federal petista; a segunda eleita para um primeiro mandato é uma mulher branca, cuja família também é ligada a parlamentar e ministro dos governos petistas. Finalmente, o terceiro eleito foi o sobrinho-neto da ex-Presidente Dilma. Ele não possuía vínculos com movimentos sociais e/ou políticos e se tornou conhecido pelo parentesco com a ex-Presidente, o que contribuiu para o número elevado de seguidores dele nas mídias sociais. Rousseff foi o candidato à CMBH mais votado do PT e sexto na classificação geral, com 17.595 votos. O quarto vereador foi reeleito, é médico e ativista dos movimentos sociais pela saúde pública e pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Gráfico 2 – Vereadores eleitos por bloco ideológico em Belo Horizonte(%) 3
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados do TSE (2024).
Quando agrupados por blocos ideológicos, é clara que a movimentação dos grupos de direita conseguiu enraizamento na capital mineira, liderados pelo PL. Dos 41 assentos, 61% foram ocupadas pela direita (25), a esquerda obteve 24,39% (10 cadeiras), o centro apenas 7,32% e os partidos indefinidos – PRD e Mobiliza – conquistaram 7,32% das vagas na CMBH (3 cadeiras). A hegemonia do bloco de direita não demonstra uma polarização com a esquerda, que segue reduzida na capital mineira, apesar de ter crescido um pouco em relação ao último pleito.
Cor e gênero no legislativo da capital mineira
No Brasil, 456 mil pessoas se inscreveram para a disputa à prefeito, vice-prefeito e vereador; desses 155 mil eram mulheres, o que correspondia a quase 33% do total. Entre os candidatos, 53% declararam ser negros ou 240 mil pessoas, no conceito mais amplo de negritude, que inclui tanto pretos quanto pardos. O PCdoB foi o partido com maior número de pessoas negras, somando 73% dos homens que concorreram a um cargo pela legenda e 70% das mulheres. O PL e o NOVO tiveram o maior percentual, respectivamente, de homens e de mulheres brancos.
Daqueles 41 eleitos na capital mineira para o legislativo, 24 se autodeclaram brancos, 11 pardos e seis pessoas pretas. Esse número representa 41% da CMBH, o que supera os 24% de 2020. Apesar de lançar candidatos negros em 2024, que contam com financiamento pela legislação, nenhuma pessoa dessa etnia conseguiu uma vaga pelo PT para a CMBH. Dos quatro eleitos pelo PT, os três sobrenomes, brancos e herdeiros do prestígio de famílias políticas, foram abraçados pela máquina municipal do partido, o que reduziu a chance de obtenção de cadeiras por parte dos “militantes históricos”, que participam ativamente das atividades do partido e dos movimentos sociais.
Entre os eleitos para a CMBH, 11 são mulheres — o que representa 26,8% do total. O resultado foi um pouco acima do pleito de 2020 para a bancada feminina, quando 10 mulheres e uma mulher-trans foram eleitas. Das vereadoras que conquistaram cadeiras em 2024, 7 mulheres são de partidos de direita (PP, NOVO, DC, União, PL, PRD), 3 de esquerda (PT e PSOL) e uma de centro (MDB). O PT elegeu somente uma mulher, branca, e o PSOL duas, sendo uma delas negra. Além disso, o PSOL foi o único partido a eleger uma pessoa trans. Assim, até mesmo quando se trata da questão de gênero, a direita superou a esquerda.
Padrinhos dos candidatos em BH
Se o “apadrinhamento” dos candidatos a vereador com sobrenomes das famílias de políticos petistas conseguiu o feito de eleger 3 dos seus 4 vereadores, o “apadrinhamento” de nomes de prestígio não foi suficiente para levar Tramonte (Republicanos), candidato a prefeito, para o 2º turno. Os principais garantidores de sua candidatura foram Zema (Governador, NOVO) e Kalil (ex-prefeito, PSD). Este último, reeleito em Belo Horizonte no 1º turno de 2020 com 63,36% de votos, deixou o cargo bem avaliado para ser candidato a governador, em 2022. Tanto ele quanto o governador Zema abraçaram o jornalista Tramonte (Republicanos) como candidato a prefeito da capital mineira. Apresentador e deputado estadual, Tramonte já havia sido eleito em 2022, foi deputado estadual de Minas Gerais em 2018, tendo sido o segundo mais votado para o cargo no Brasil. Mas o capital político de ambos os padrinhos não foi suficiente para levá-lo para o 2º turno. Os seus principais avalistas, o governador do estado de Minas e o ex-prefeito de Belo Horizonte, saíram dessas eleições derrotados na capital mineira no 1o. turno.
Bruno Engler, deputado estadual pelo PL e Fuad Noman, atual prefeito filiado ao PSD, disputam o segundo turno nas eleições. Candidato pelo partido de Jair Bolsonaro, Engler finalizou o primeiro turno à frente, com 34,38% dos votos contra 26,48% de Fuad. Engler foi um dos líderes do Movimento Direita Minas, de orientação conservadora. Em 2020 perdeu para Kalil (PSD), que foi reeleito prefeito. À época, apesar de seu nome nunca ser bem colocado nas pesquisas, ficou em 2º lugar, com 9,95% dos votos válidos.
Engler foi apadrinhado pelo ex-presidente Bolsonaro, que ganhou as eleições em BH em 2022. Como em sua primeira tentativa para prefeito, Engler fez uma campanha silenciosa nos grupos de WhatsApp e reuniu os evangélicos em torno de si, por meio das organizações das Igrejas, que funcionam como agentes eleitorais. Engler contou também com parte dos votos das periferias,abandonadas pelas esquerdas e pelas direitas tradicionais. Onde falta o pão, sobra fé como um fermento para lutar diariamente pela sobrevivência. As Igrejas e suas lideranças suprem a ausência do Estado e oferecem conforto espiritual, empregos, assistência social, lazer e disseminam a ideia que seus fieis são responsáveis pela preparação do terreno para o retorno de Jesus, como pregado pela Teologia do Domínio4. Votar junto com as lideranças religiosas confirma a gratidão dos fieis pelos serviços materiais e imateriais prestados pelas Igrejas.
Gráfico 3 – Evolução nas pesquisas para prefeito em Belo Horizonte
Fonte: Infográfico da pesquisa Datafolha sobre a disputa pela Prefeitura de Belo Horizonte, G1/Datafolha, 2024.
Engler e Tramonte apoiam políticas de benefícios para o mercado privado, em detrimento de políticas para as populações mais vulneráveis. Diferente do que indicava a maioria das pesquisas que colocavam Tramonte no 2º turno, ele derreteu na reta final, apesar do apoio de importantes padrinhos, e obteve um terceiro lugar na disputa, longe do previsto pelas pesquisas de intenção de voto. Também o candidato do presidente Lula, Rogério Corrêa (PT), chegou a pouco mais de 4% dos votos. O eleitor de Belo Horizonte foi bastante volátil, alterando seu voto à medida em que a campanha eleitoral se desenvolvia e mudou sua decisão a poucos dias do 1º turno, como pode ser visto no gráfico 3
Destaca-se a emergência de um novo personagem no cenário político mineiro. Nikolas Ferreira, deputado federal mais votado em MG e no Brasil com mais de 1 milhão de votos, participou ativamente da eleição de Engler, pois pretende ser candidato a governador do Estado em 2026 e usar a prefeitura como palanque para a sua campanha e para apoiar um candidato a presidente da direita. Nikolas já vem fazendo um significativo trabalho nas igrejas e escreveu um livro que circula entre os “crentes” sobre como deve ser o comportamento dos cristãos na política, que aborda teorias que sustentam a relevância da família e de Deus como o centro da política.
Já Fuad, que apoiou Lula nas presidenciais, conta na chapa com um vice da direita bolsonarista filiado ao partido União. Há centenas de escritos sobre as maiores chances de reeleição de prefeitos frente às dificuldades de entrada de novos atores no mercado eleitoral, sobretudo se a economia cresce e o prefeito consegue mostrar “obras”, já que o fundo entregue aos municípios cresce quando a economia vai bem. Com administração avaliada apenas como regular pela população, Fuad conseguiu se reposicionar durante a campanha e chegou ao 2º turno por duas razões: no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) no rádio e na TV, nos spots e nas mídias sociais reverteu a sua avaliação. A outra vantagem foi o voto útil nele, em função da crença dos eleitores de esquerda de que aqueles candidatos que se apresentavam por esse campo, Duda (PDT) e Rogério Corrêa (PT), não eram competitivos. Ademais, muitas lideranças e parlamentares do PT Estadual apoiaram Fuad nos bastidores e abandonaram Correa. É o clássico fenômeno da “cristianização”.
Ganhe Engler (PL) ou Fuad (PSD), ambos filiados a partidos classificados pela literatura como de direita, os resultados do legislativo municipal mostraram a vitória de uma direita, mesmo a radical, e a derrota das esquerdas na CMBH, cujas lideranças imediatamente passaram a apoiar a reeleição do prefeito Fuad no 2º turno em função de ocupação de cargos na administração pública. Mostra, também, que se Minas Gerais foi fundamental para a eleição de Lula em 2022, os resultados na capital acendem um sinal vermelho no estado para o PT em 2026.
Nos grotões do Brasil: as eleições para prefeito desafiam a polarização nacional
As eleições municipais revelam a face de um país muito mais complexo do que nos mostram os assépticos números das pesquisas de intenção de voto. A resiliente e prevalecente “polarização familialista” pode ser observada em José da Penha. Essa pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte, descortina um cenário político que foge às dinâmicas polarizadas que caracterizam a disputa nacional entre Lula e Bolsonaro. É um recorte de uma tradição política fortemente marcada pela dualidade entre Bicudos e Bacuraus, correspondendo a duas famílias históricas do estado — os Maia e os Alves.
O resultado da eleição nesta cidade, que apesar de ter cerca de apenas 6000 habitantes e comparecimento de 4642 eleitores, chama a atenção por sua complexidade e por questionar a lógica simplista dos alinhamentos políticos tradicionais. O vencedor, Jairo Mafaldo (PT), foi eleito com 57,61% dos votos, sendo apoiado pelo então prefeito, Dr. Raimundinho, do PSDB, representando os “Bicudos”. Seu adversário, Dr. Vertinho (PL), obteve 42,39% e representava os “Bacuraus”.
Curiosamente, os rótulos partidários que sugeririam uma clara divisão ideológica entre esquerda e direita não se aplicavam ao contexto local. Jairo Mafaldo (PT), tradicionalmente ligado à esquerda, foi candidato pela família Maia, um clã conservador e historicamente de direita. Já o Dr. Vertinho, apesar de sair pelo PL, partido da extrema-direita bolsonarista no plano federal, adotou algumas posições que destoavam dessa ideologia.
Essa inversão de papeis revela uma realidade na qual a política municipal em José da Penha se constroi em torno de alianças tradicionais de grupos políticos do Rio Grande do Norte, mais do que ao redor dos grandes temas nacionais. As siglas, que no plano federal têm significados definidos, parecem ser apenas etiquetas vazias no cenário político local. A disputa entre Jairo Mafaldo e Dr. Vertinho foi menos ideológica e mais uma expressão da rivalidade entre Bicudos e Bacuraus, que há décadas dominam a política de José da Penha e de outras pequenas cidades potiguares.
A dualidade que define a política local: os clãs familiares
A eleição em José da Penha seguiu a divisão entre Bicudos e Bacuraus, com os primeiros ligados à família Maia e os últimos aos Alves. Clivagem histórica, que remonta à rivalidade política no Estado, e não reflete necessariamente as tendências ideológicas que associamos à esfera federal. Diferente disso, o que se nota é um jogo de poder entre famílias, em que as siglas partidárias servem mais como ferramenta de conveniência e de alguns acordos com as legendas, do que como retrato de uma ideologia sólida.
Jairo Mafaldo, embora candidato pelo PT, adotou uma campanha que em nada lembra as pautas progressistas ou moderadas de conciliação do partido no nível nacional. O jingle e os slogans de sua campanha flertavam com a agenda conservadora, apostando em temas e discursos que ressoavam com o eleitorado mais tradicionalista. A escolha desse tom não é casual, já que ele simbolizava um clã que tem um histórico de governança conservadora no Estado. Essa contradição somente reforça como, em cidades pequenas, o alinhamento com as dinâmicas tradicionais é mais relevante do que qualquer plataforma política nacional.
Do outro lado, Dr. Vertinho, candidato pelo PL, destoou de sua sigla ao ter uma postura moderada em questões morais mais polêmicas, adotando pautas como saúde e educação. Fora da sua campanha eleitoral, como médico, ele apoiou medidas sanitárias como o uso de máscaras e a vacinação durante a pandemia do COVID-19, além de defender a ampliação de direitos para mulheres nas redes sociais — uma postura que colide com a narrativa ultraconservadora adotada pelo PL e pelos bolsonaristas nas eleições nacionais. Assim, o Dr. Vertinho esteve representando a política da família Alves, um grupo que se posiciona mais ao centro no Estado e que buscava reconquistar a prefeitura.
Essa rivalidade política em José da Penha se assemelha aos clássicos futebolísticos, não apenas nas cores, mas na intensidade com que os eleitores defendem seus lados. A escolha entre o vermelho dos Bicudos e o verde dos Bacuraus ultrapassa uma simples opção eleitoral, carregando décadas de história, alianças e disputas locais que moldam a identidade do potiguar. Para muitos, apoiar um candidato é quase como escolher um time de coração, e a eleição se transforma em um verdadeiro campeonato, onde a vitória significa não apenas um mandato político, mas a afirmação de uma identidade.
As campanhas refletem esse espírito. Durante o período eleitoral, ruas, casas e comércios se cobriram das cores das facções políticas, e os jingles que ecoaram nos carros de som nas carreatas que pareciam showmícios, misturavam slogans com melodias que embalaram essas torcidas. Foi uma disputa que mobilizou não só a política, mas a cultura local, reforçando a ideia de pertencimento ou troca de lado antes das urnas.
A desconexão com a polarização federal em José da Penha
O que torna a eleição de José da Penha ainda mais peculiar é a ausência de uma ligação clara com os grandes líderes nacionais. Enquanto em muitas capitais e cidades grandes a imagem de Lula ou Bolsonaro se impunha sobre os candidatos locais, aqui essa associação foi propositalmente evitada. Tanto Jairo Mafaldo quanto Dr. Vertinho mantiveram distância dos ícones de seus partidos, focando suas campanhas nas dinâmicas locais e nas alianças com suas respectivas famílias de apoio.
Esse fenômeno desafia a ideia de que a política brasileira está completamente polarizada entre esquerda e direita. Em cidades pequenas, como José da Penha, o que realmente conta são as redes locais de poder, os acordos históricos e a capacidade de mobilização de clãs familiares. A política federal parece ser um eco distante, sem grande impacto sobre a decisão local.
As eleições em José da Penha são um exemplo de como as dinâmicas políticas nas cidades pequenas do interior do Brasil podem ser complexas e, muitas vezes, indecifráveis por quem observa o país a partir dos grandes centros urbanos. A tradicional disputa entre Bicudos e Bacuraus, entre as famílias Maia e Alves, persiste como o principal eixo organizador da política local, mesmo quando as siglas partidárias adotadas por seus candidatos indicam, à primeira vista, outra realidade e ideologia.
Conclusões
A vitória de Jairo Mafaldo em José da Penha, pela sigla petista, mas apoiada por um clã conservador, sobre Dr. Vertinho, da sigla da extrema-direita, mas com uma postura moderada, se não progressista, nos mostra que a política brasileira nem sempre pode ser reduzida a uma dicotomia entre os partidos ideológicos de esquerda e direita. Em lugares como José da Penha, o que está em jogo é algo muito mais antigo, enraizado e profundo: a luta pelo controle político local entre clãs que, há gerações, definem os rumos das cidades potiguares.
E, em Belo Horizonte, a eleição para a Câmara Municipal nos leva a refletir sobre o peso do prestígio dos sobrenomes das famílias de políticos nas eleições para vereadores do PT e a não eleição de seus militantes históricos. E, também nos mostra que mais do que uma polarização entre direita e esquerda para a prefeitura, os concorrentes no segundo turno não representam a polarização nacional. Ao contrário dessa hipótese, o que existe na cidade é a hegemonia da direita nas eleições para a prefeitura, seja a direita democrática seja a radical.
O que os resultados destes municípios a partir do primeiro turno demonstram, em diferentes graus, é a falta de alinhamento automático às tendências eleitorais nacionais no âmbito de eleições municipais. Se em José da Penha, a desconexão entre candidatos e partidos a nível federal expressa a importância de alianças mais próximas, apoiadas em questões regionais, em Belo Horizonte revela-se forte influência de um dos pólos políticos nacionais, porém não se traduzindo em resultado ao outro polo. A baixa expressividade do PT nas eleições municipais sugere que o eleitorado, ainda que engajado na polarização presidencial, não necessariamente transfere esse alinhamento para os cargos executivos locais.
Estes são contextos que evidenciam a flexibilidade com que os eleitores abordam suas escolhas políticas, filtrando às narrativas nacionais por meio de realidades locais específicas.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
Lavareda, A; Telles, H. Como o eleitor escolhe seu prefeito: campanha e voto nas eleições municipais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
Lavareda, A; Telles, H. Eleições municipais na pandemia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2022.
Telles, H; Oliveira, H. Democracia e religião: a “guerra cultural” nos projetos tramitados na Câmara dos Deputados. Democracia e Direitos Fundamentais. 04 set. 2024. https://direitosfundamentais.org.br/democracia-e-religiao-a-guerra-cultural-nos-projetos-tramitados-na-camara-dos-deputados%c2%b9/
Telles, H. Uma nova perspectiva sobre a polarização: diversificação partidária e o fim das disputas binárias. Entrevista no Jornal Belvedere. 01 de outubro de 2024
Telles, H. BH: a derrota dos padrinhos, da polarização e das esquerdas. Jornal O Globo. 06 Out 2024. https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2024/10/artigo-em-bh-a-derrota-dos-padrinhos-da-polarizacao-e-das-esquerdas.ghtml
Telles, H; Bicalho, B. Nos grotões do Brasil, eleições municipais desafiam a polarização nacional. Jornal O Globo. 10 de outubro de 2024. https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2024/10/artigo-nos-grotoes-do-brasil-eleicoes-municipais-desafiam-a-polarizacao-nacional.ghtml
1 Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais – ABRAPEL (www.abrapel.org.br), cientista política e professora da UFMG. E-mail: mara-telles@uol.com.br Instagram: @maratellesreal Twitter: @MaraTellesReal
2 Técnico Administrativo e pesquisador do Grupo de Pesquisa Opinião Pública da UFMG. E-mail: bruno.kimbrasil@gmail.com
3 Partidos de direita: PL, NOVO, Republicanos, Podemos, PSD, Solidariedade, PP, DC, AVANTE, União Brasil. Partidos de centro: MDB, Cidadania. Partidos de esquerda: PT, Psol, PC do B, PDT, PV. Indefinidos: PRD, MOBILIZA.
4 Telles, H; Oliveira, H. (2024) Democracia e religião: a “guerra cultural” nos projetos tramitados na Câmara dos Deputados
Fonte: Montagem com fotografias das prefeituras de Belo Horizonte (MG) e José da Penha (RN), respectivamente.
Wikimedia Commons. Prefeitura de Belo Horizonte. 16 nov. 2007. Fotografia de Bernardo Gouvêa. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:PrefeituraBH.jpg>. Acesso em: 13 out. 2024.
Wikimedia Commons. Prefeitura Municipal de José da Penha. 14 jul. 2018. Fotografia de Marcos Elias Jr. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Prefeitura_Municipal_de_Jos%C3%A9_da_Penha_(RN).jpg>. Acesso em: 13 out. 2024.