Hannah Maruci Aflalo[1]
Beatriz Besen[2]
02 de outubro de 2024
Marcando as eleições municipais de 2024, o Boletim Lua Nova convidou pesquisadoras e pesquisadores de diferentes capitais do Brasil para analisarem e comentarem sobre o pleito em suas cidades. Os textos desta série especial podem ser encontrados aqui.
Introdução
Quando falamos de eleições municipais, é inevitável que a atenção se volte para São Paulo. Isso se deve não apenas aos polêmicos episódios dos debates entre candidatos/as à prefeitura, mas, principalmente, à identificação da cidade enquanto um centro político e econômico do país. Com cerca de 11,5 milhões de habitantes, São Paulo abriga uma população diversa, fruto de uma série de fluxos migratórios, que conduziram migrantes e imigrantes para a região. Além disso, trata-se do município com o maior gasto em campanhas eleitorais, as quais têm alto grau de complexidade e visibilidade a nível nacional[3].
Frente a esse cenário, entendemos que, em tempos de eleições municipais, São Paulo pode ser considerada um termômetro da política eleitoral, inspirando debates e estratégias em outros municípios. Mas o que essa cidade tem efetivamente inspirado para o resto do país? Tamanha diversidade tem se convertido em representatividade eleitoral?
Para começar a responder tais perguntas, vamos trazer alguns dados. Em termos de representação política, São Paulo não tem sido um exemplo de diversidade e representatividade. Dentre os/as eleitos/as em 2020 para a Câmara de Vereadores, apenas 24% são mulheres – enquanto elas constituem 51,5% da população brasileira – e apenas 6,3% mulheres negras – embora elas sejam o maior grupo demográfico brasileiro, representando 28% da população. Em termos etários, a casa legislativa paulista lidera em percentual de jovens eleitos/as (aproximadamente 5,25%[4]), mas ainda está muito aquém do percentual populacional, segundo o qual jovens com idade entre 15 e 29 anos representam 22,31% da população. O que vemos, portanto, é uma inversão entre população e representação política, ou seja, os maiores grupos sociais da população brasileira são os mais sub-representados.
O tema da representatividade tem ganhado força nos últimos anos impulsionado por uma concepção de representação descritiva (Pitkin, 1967), segundo a qual os espaços de representação devem espelhar fielmente a composição da população. Sob essa ótica, a Câmara de Vereadores de São Paulo – assim como todas as outras câmaras municipais do país – refletiriam uma distorção da realidade, ao eleger historicamente uma maioria de homens, brancos e acima dos 30 anos.
Uma das graves consequências disso é a manutenção de um status quo excludente, no qual mulheres, negros, jovens e outros grupos não não se veem representados e, por isso, não se sentem pertencentes a esses espaços. Isso gera um ciclo vicioso: a falta de representatividade alimenta a sub-representação. O problema se agrava ainda mais ao reconhecer a relação entre a presença de indivíduos de grupos historicamente excluídos em espaços de poder e a defesa e promoção de seus direitos. A ideia de que a presença (Phillips, 1995) desses grupos nos espaços de representação política é fundamental para garantir seus direitos e interesses não resolve toda a questão, mas oferece uma importante pista sobre a relevância da representatividade.
É evidente que não podemos presumir interesses unificados em grupos sociais tão amplos e heterogêneos como as ‘mulheres’. Além disso, não há garantia de que mulheres sempre apoiarão os direitos das mulheres – muitas podem se opor a certos direitos reprodutivos, por razões religiosas ou outras motivações. Ainda assim, a presença de representantes desses grupos traz algo singular e intransferível, que não pode ser plenamente representado por um homem.
Trata-se da perspectiva social, conceito cunhado por Iris Young (2000), que se refere à vivência específica de cada indivíduo pertencente a um grupo social, que não pode ser representado apenas em termos de ideias. Ou seja, a experiência e interpretação do mundo acontece a partir da posição desses indivíduos na sociedade, e a presença de tais perspectivas é fundamental para a justiça democrática. Considerando as questões trazidas em termos de representatividade, propomos, neste breve texto, uma mirada mais profunda para as eleições municipais em São Paulo, focando nas candidaturas à vereança. Tal reflexão nos permite compreender que, mesmo a nível da cidade de São Paulo, há uma enorme distorção entre a composição da população e as candidaturas, privilegiando a manutenção do status quo.
Candidaturas e grupos historicamente marginalizados
A sub-representação feminina na política brasileira é resultado de uma combinação de fatores sociais e institucionais. O machismo enraizado na sociedade impacta a forma como homens e mulheres são percebidos e quais características são consideradas “adequadas” para a política. A mulher, frequentemente associada a papéis domésticos e de cuidado, é vista como inadequada para a arena política. Além disso, a estrutura partidária brasileira, historicamente dominada por homens brancos, cria obstáculos para a participação das mulheres, principalmente negras. A reivindicação por mais mulheres na política, especialmente mulheres negras, desafia o status quo que beneficia aqueles que já ocupam cargos de poder. A resistência à mudança se deve, em parte, à percepção de que mais mulheres e negros significam menos homens e brancos, e que essa mudança ameaça uma hegemonia historicamente predominante.
Quando olhamos para os perfis das candidaturas às Eleições Municipais de 2024, não observamos uma grande mudança sobre a representatividade em relação às eleições anteriores. Ao compararmos esses dados à população do país, fica também evidente que São Paulo não está dando um bom exemplo para o restante do país.
Gênero e raça
Em termos de gênero, 65% das candidaturas para o cargo de vereança foram de homens e apenas 35% de mulheres (segundo o Divulgacand, do TSE), enquanto a população brasileira é composta por 52% de mulheres. Já em termos de raça/cor, o Censo 2022 revelou que cerca de 43,5% (88,2 milhões de pessoas) se declararam brancas, 45,3% (92,1 milhões) pardas, 10,2% (20,6 milhões) pretas, 0,6% (1,2 milhão) indígenas e 0,4% (850,1 mil) amarelas.
Portanto, quando observamos os dados raciais, a desigualdade presente nas candidaturas à vereança pelo município de São Paulo (Gráfico 2) se dá tanto em relação à porcentagem da população negra (preta e parda) brasileira quanto quando comparada à média de candidaturas negras a nível nacional (Gráfico 1). Enquanto a média nacional de candidaturas negras à vereança foi de 52,64%, no município de São Paulo, essa porcentagem foi de apenas 41,36%.
Gráfico 1. Distribuição das candidaturas à vereança por raça/cor no Brasil
Fonte: elaboração própria (2024).
Gráfico 2. Distribuição das candidaturas à vereança por raça/cor no município de São Paulo
Fonte: elaboração própria (2024).
Constatamos, portanto, que há uma grande disparidade entre a composição da população e as candidaturas, ainda que seja uma discrepância menor do que a em relação à proporção de eleitos. Outro dado que chama a atenção diz respeito à porcentagem de candidatos/as à reeleição (que possuem, comprovadamente, mais chance de eleição do que os/as novatos/as). Entre os/as candidatos/as à reeleição no município de São Paulo, 70% se declararam brancos/as e 28,5% negros/as. Em termos de gênero, se destacam também os dados sobre estado civil, que são muito distintos entre homens e mulheres. Enquanto 76,46% dos homens candidatos são casados, apenas 23,54% – mais de três vezes menos – das mulheres candidatas são casadas, sugerindo um importante impacto da divisão sexual do trabalho na composição das candidaturas.
Juventude e sub-representação eleitoral
Apesar da escassez de pesquisas específicas sobre a participação eleitoral da juventude, as análises existentes indicam uma baixa representatividade (Moura, 2021; Santos e Schmidt, 2023). No que tange às candidaturas jovens em eleições parlamentares e majoritárias, Santos e Schmidt (2023) destacam que a sub-representação se reflete tanto nas candidaturas quanto entre os/as eleitos/as e empossados/as. Nesse contexto, os autores apresentam alguns diagnósticos: a desigualdade de condições para candidaturas jovens, agravada pela ausência de incentivos – perpetuando uma lógica adultocêntrica nos espaços políticos formais; a influência da conjuntura política, com um aumento da eleição de jovens de esquerda durante os governos petistas, seguido por um crescimento das candidaturas jovens de direita e extrema-direita a partir de 2018; e, por fim, a manutenção do capital familiar como um dos principais fatores de sucesso eleitoral para os jovens (Miguel, Marques e Machado, 2015).
No caso das eleições municipais na cidade de São Paulo, confirma-se tal sub-representação. Considerando a faixa etária entre 18 anos – idade mínima para lançar candidaturas – e 29 anos – limite estabelecido pelo IBGE e pelo Estatuto da Juventude – foram identificadas 41 candidaturas jovens à vereança. Esse número representa cerca de 4,05% do total de 1012 candidaturas.
Em termos de representatividade, considera-se esse percentual extremamente baixo. A partir dos dados do TSE, identifica-se que entre as pessoas eleitoras aptas a votar na cidade de São Paulo em 17 de setembro de 2024, há um total de 1.880.194 jovens (16-29 anos). Elas representam um percentual de 20,17% do eleitorado. Isso significa que, em termos percentuais, temos uma diferença de 16,12% entre a participação de jovens no eleitorado e nas candidaturas. Já em comparação com a distribuição etária brasileira, sabemos que, de acordo com o último censo, jovens (15-29 anos) representam aproximadamente 22,31% do total de habitantes do Brasil. Isso significa que, em termos da proporção de habitantes e eleitoras jovens, encontra-se uma equivalência. Já em termos da proporção de habitantes e das candidaturas jovens, a defasagem é reiterada. Trata-se do grupo etário com maior defasagem entre a composição da população e as candidaturas.
A distribuição de gênero entre as 41 candidaturas jovens segue próxima ao padrão geral, com 25 (61%) declarando ser do gênero masculino, enquanto 16 (39%) do gênero feminino. O número está acima da cota mínima de gênero de 30% definida pelo TSE, mas evidencia uma discrepância enorme em termos do eleitorado de São Paulo. Segundo o TSE, 54,05% do eleitorado de São Paulo é feminino. Já em termos da população brasileira entre 15 a 29 anos, há uma leve predominância de mulheres em relação aos homens. Essa tendência reflete o padrão geral da população brasileira, onde 51,5% são mulheres e 48,5% são homens . Em termos da declaração de raça/cor entre os/as candidatos/as, também há grandes disparidades com a distribuição da cidade, na qual 53,4% das pessoas se declararam brancas, enquanto 43,5% enquanto pretas ou pardas.
Gráfico 3. Distribuição das candidaturas à vereança de jovens por raça/cor no município de São Paulo
Fonte: elaboração própria (2024).
Embora São Paulo seja um município de grande importância para o cenário nacional, as candidaturas à vereança nas eleições de 2024 continuam refletindo desigualdades estruturais. Ainda que tais disparidades estejam presentes em todos os municípios do país, o fato da cidade ser um importante centro econômico e político gerava alguma expectativa de que a composição das candidaturas apontasse para um futuro mais democrático. No entanto, as análises apresentadas indicam que esse futuro não apenas está distante, mas também que São Paulo se encontra abaixo da média nacional no que se refere à representatividade racial nas candidaturas.
Além disso, constatamos que os marcadores aqui selecionados (gênero, raça e juventude) se interseccionam de maneira a produzir distorções ainda maiores na representação. Ou seja, as desigualdades de gênero e raça são refletidas nas já sub-representadas candidaturas da juventude no município de São Paulo. Se os jovens brancos e do gênero masculino possuem pouca representatividade em relação ao total de candidaturas, as jovens mulheres negras possuem ainda menos representatividade entre as candidaturas jovens.
Frente a um pleito eleitoral com tamanha sub-representação em todos os aspectos analisados, entendemos que as cotas de candidaturas mostram-se necessárias, mesmo que insuficientes. No caso das mulheres, ainda que 35% seja uma porcentagem muito baixa de candidaturas, tal índice só foi conquistado depois de intensa luta por parte das próprias mulheres e da sociedade civil organizada pelo cumprimento das cotas de candidaturas de gênero (Lei nº 9.504/1997). Nesse sentido, soma-se atualmente a luta pela aprovação do Projeto de Lei nº 7292/2006, o qual visa reservar 10% das vagas de candidaturas para o legislativo em todas as esferas, exceto Senado Federal, para jovens com até 35 anos incompletos.
No conjunto, tais medidas buscam evitar que as candidaturas à vereança no município de São Paulo se mantenham o avesso do avesso, ou seja, que garantam a manutenção do status quo, refletindo continuamente as relações de poder e opressão que atravessam tantos outros âmbitos da vida nesta capital. A defesa e promoção dos direitos dos grupos em questão também dependem da representação eleitoral e enquanto esta permanecer tão distorcida em relação à composição da população brasileira, o potencial da democracia para atender de maneira justa às minorias estará comprometido.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
ABRAMO, Helena W.; BRANCO, Pedro Paulo M. (Orgs.). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo
GROPPO, Luis Antonio; SILVEIRA, Isabella Batista. Juventude, classe social e política: reflexões teóricas inspiradas pelo movimento das ocupações estudantis no Brasil. Argumentum, v. 12, n. 1, p. 7-21, 2020.
MIGUEL, L. F.; MARQUES, D.; MACHADO, C. Capital familiar e carreira política no Brasil: gênero, partido e região nas trajetórias para a Câmara dos Deputados. Dados, Rio de Janeiro, v. 58, n. 3, p. 721-747, 2015.
MOURA, Eric S.. A Representação Política de Jovens na Câmara dos Deputados entre 2003 e 2019. 2021. 96 f. Dissertação (Mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas) – Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), Sede Brasil, São Paulo, 2021.
PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Clarendon Press, 1995.
PITKIN, Hanna. The concept of representation. Londres: University of California Press, 1967.
SANTOS, Cristiano Lange; SCHMIDT, João Pedro. JUVENTUDES, ELEIÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS:: SUB-REPRESENTAÇÃO DE JOVENS NAS ELEIÇÕES DE 2010, 2014 E 2018. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas, v. 11, n. 1, p. 128-151, 2023.
YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[1] Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Co-fundadora da A Tenda das Candidatas Instituto, ONG dedicada à combater a sub-representação de mulheres e negros na política. Foi pesquisadora visitante no Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Gênero da Universidade de Humboldt-Berlim, na Alemanha.
[2] Pós-Doutoranda no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). Psicóloga, doutora pelo Programa de Mudança Social e Participação Política da USP, com mestrados pela USP e FLACSO. Foi pesquisadora visitante na Universidade Goethe de Frankfurt e Humboldt de Berlim na Alemanha, estudando juventudes e discursos nas Direitas Radicais.
[3] Dados relativos às eleições de 2024 até o presente momento (dia 25/09/2024), consultado no site https://72horas.org/.
[4] Entre os 55 vereadores eleitos nas últimas eleições, identifica-se três jovens: Fernando Holiday (PL), Luana Alves (PSOL) e Luna Zarattini (PT). As duas últimas tentam a reeleição, porém Luna já completou 30 anos e, por isso, não consta na lista das candidaturas jovens. Luana Alves consta como candidatura deferida, porém não está registrada nas listas do TSE geradas a partir da busca de sua faixa etária nas “estatísticas de candidaturas”. Ressalta-se, portanto, que na lista gerada em 19 de setembro havia um total de 42 candidaturas jovens, entre elas 2 indeferidas. Para as análises do presente texto, retiramos essas candidaturas e adicionamos as informações sobre Luana, chegando a um total de 41 candidaturas jovens. Os gráficos das seções referentes à juventude foram gerados, portanto, a partir de dados coletados pelas autoras e processados por meio do Software R.
Referência imagética: Câmara São Paulo (Flickr). Palácio Anchieta, Câmara Municipal de São Paulo. 11 jan. 2017. Fotografia de André Bueno/CMSP. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/131078419@N07/32253200075/in/album-72157675261611744>. Acesso em: 30 set. 2024.