Sebastião Velasco e Cruz[1] e Andrei Koerner[2]
Era sabido e foi, no tempo devido, muitas vezes declarado: o móvel da mobilização extraordinária que pôs em transe a política brasileira alguns anos atrás não era o afastamento da presidenta recém-eleita para o seu segundo mandato, mas a criação das condições requeridas para uma inflexão drástica nos rumos do país. A qual – por sua abrangência e profundidade – conformaria uma nova matriz socioeconômica, com um regime político a ela ajustado.
Nem todos à época concordavam com esse diagnóstico. Para alguns, a crise decorria dos desacertos da política econômica e do manejo desastroso das relações entre o Executivo e o Congresso. O impeachment de Dilma Rousseff era legítimo, porque observava a formalidade da lei e apoiava-se em amplo reclamo da sociedade. Removido o estorvo, as condições estariam dadas para o retorno mais ou menos rápido à normalidade.
O artigo publicado há poucos dias por Brasilio Sallum Jr. no Estado de S. Paulo (“Em meio à crise nasce um novo regime”[3]) sugere que a marcha dos acontecimentos ensejou uma sensível reavaliação entre os partidários dessa tese.
“Sim, aos poucos, quase sem nos darmos conta, em meio ao caos aparente e à polarização política, que parece não ter fim, estamos construindo um novo regime político.” A frase na abertura do artigo poderia dar a entender que, agora, a aludida divergência estava sensivelmente reduzida, senão superada.
Redondo engano. Ela persiste e se torna infranqueável.
A diferença se manifesta já em seu complemento – “E, na minha opinião, poderá ser melhor do que o regime vigente antes da crise. ” Discordamos frontalmente desse juízo, mas não vamos discuti-lo. O futuro é por definição incerto, e cada um é dono de suas apostas.
O que importa não são as expectativas do autor, mas a maneira como ele caracteriza a mudança que observa. Ou devemos dizer, o que não observa?
Com efeito, sua análise concentra-se em três dimensões da alegada “construção de padrões diferentes de exercício democrático do poder”: o financiamento da representação política; as relações entre os três Poderes, e a ação do Estado na esfera econômica … “que se mundializa”. Combinados, esses três elementos estariam a desenhar os contornos do tal regime, não apenas diferente, mas potencialmente melhor.
Já nesse primeiro movimento, esbarramos em um problema grave. Não é possível falar sobre a política brasileira após 2014 sem considerar a sucessão de violações aos direitos da presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment; o lawfare contra o ex-presidente Lula, e a supressão do direito do povo brasileiro de sufragar o seu nome em 2018 — até mesmo de ouvir sua voz durante o período eleitoral. Não bastasse o déficit de legitimidade provocado por esse expurgo, a eleição presidencial foi ainda fraudada pelo uso ilegal de mensagens disparadas automaticamente para grupos de aplicativo telefônico e redes sociais, sem que as denúncias recebessem qualquer investigação e acusação efetiva ao candidato eleito presidente, responsável pela conduta criminosa. O silêncio de Brasilio sobre esses fatos pode ser lido de várias formas, mas ele compromete seu argumento pela base.
Apoiado em fundamentos tão rasos, o artigo aborda inicialmente a questão da mudança no financiamento da política partidária. Naturalmente, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) vedando o financiamento empresarial de campanhas eleitorais é mencionada, mas o destaque fica para o Congresso, com o incremento no valor do fundo partidário e alterações não especificadas na lei de licitações públicas. Respostas ao clamor popular contra as práticas da “velha política”, com essas inovações “falta pouco para o Legislativo secar duas das fontes institucionais que estigmatizaram como corrupta a democracia de 1988.”
Agora, o protagonismo nesse processo cabe à Lava Jato. Ela desnudou os meios escusos que mediavam a relação entre empresas e políticos (para financiamento de suas campanhas e enriquecimento próprio), e teria, ainda que parcialmente, penalizado seus responsáveis. Não só isso. Com apoio de parte importante da mídia e do Judiciário, logrou estigmatizar como corrupta a “política tradicional”.
Esse fato tem muito a ver com o fracasso de lideranças importantes do “regime democrático de 1988” e com a vitória de Bolsonaro, qualificado não como apologista da tortura, direitista extremado, ou fascistoide, mas como inofensivo “ousider”. Mas não há muito a lamentar nesse resultado. É preciso quebrar ovos para fazer omeletes. “As eleições de 2018 já se realizaram sob as novas regras, demonstrando que se está no bom caminho para enfrentar a corrupção”.
É uma lástima que pensamentos tão edificantes tenham vindo à luz depois das revelações feitas pelo site The Intercept. A rigor, elas confirmaram o que os críticos da Lava Jato vinham proclamando há muito, com aceitação crescente, mas até então limitada. Hoje, quando a aura dos santos guerreiros derrete como manteiga na chapa, pressupor o caráter virtuoso dessa Operação, cujos protagonistas chegaram a ser qualificados por um juiz do STF como dirigentes de uma organização criminosa, é atribuir ao leitor uma dose exagerada de credulidade.
E tem mais. O silêncio sepulcral sobre as práticas “heterodoxas” da Lava Jato contamina irremediavelmente a segunda parte do artigo, que trata das relações entre os três Poderes — isso mesmo, nenhuma palavra sobre o quarto, o Ministério Público, que teve papel crucial na crise e está no centro das tensões políticas internas ao bloco que se formou em torno de Bolsonaro. Menos ainda sobre o papel perturbador assumido nos últimos estágios dela pelas Forças Armadas.
O argumento, ao fim e ao cabo bastante simples, de Sallum pode ser resumido assim: o voluntarismo de Bolsonaro, ao romper com as regras não escritas do presidencialismo de coalizão, suscitou uma resposta defensiva do Legislativo, que veio sob a forma de uma mudança já efetuada – a adoção do orçamento impositivo – e algumas propostas, ora em graus distintos de maturidade, sobre a tramitação das Medidas Provisórias (MPs) e sobre a forma de funcionamento do STF.
Curiosamente, ao falar do STF, o autor menciona um desenvolvimento que tem como objeto sua forma de funcionamento interno, nem sequer mencionando a tensão entre o órgão supremo do Judiciário e os demais poderes da República tantas vezes manifestadas. Citamos apenas três desses momentos críticos, por economia de espaço: o mandato de prisão contra o senador Delcídio Amaral, sem autorização do Senado; a liminar de Gilmar Mendes que impediu a entrada em função de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, e a nota ameaçadora do comandante do Exército, general Villas Boas, um dia antes da sessão em que o pedido de habeas corpus apresentada pela defesa do ex-presidente Lula seria julgado pelo STF. E assinalamos que os efeitos desse último ato se fazem sentir até hoje, na procrastinação por tempo indefinido da decisão final do órgão sobre a constitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado.
Muito tem se falado no Brasil – antes e depois da crise – em judicialização da política; comparativamente, pouca atenção foi dada às alianças políticas dos juízes e sua imersão dos juízes nas táticas e movimentos da política facciosa. Esse é um dos aspectos mais preocupantes do processo desencadeado pela decisão coletiva das classes dirigentes do País de depor a Presidente eleita e expelir seu partido da condução dos assuntos de Estado. Mas nada disso mercê registro no artigo criticado.
Tratamento igualmente seletivo é dado nele ao tema das políticas econômicas. Referidas aprovativamente duas medidas do governo Temer – o “teto de gastos” e a adoção de novas regras de gestão de empresas públicas – Sallum anota corretamente a radicalização do programa econômico do golpe com as promessas de Paulo Guedes. Antecipando embora dificuldades na área fiscal, dado o baixo dinamismo da economia, ele conclui o apanhado com uma nota de otimismo. “De toda forma, a política de concessões na infraestrutura e a de venda maciça de participações em subsidiárias das empresas estatais indicam uma reestruturação decisiva, em prol de uma sintonia maior das relações do Estado com a economia capitalista, que se mundializa. ”
É o caso de indagar o que o autor entende por economia capitalista – aparentemente uma totalidade unívoca, desprovida de contradições internas, onde as expectativas de bem viver inexistem, ou têm validade restrita a grupos particulares na sociedade – e por mundialização: abracadabra invocado há décadas para explicar/justificar escolhas políticas e cursos de ação essencialmente contestáveis, dispensando o usuário do conceito do cuidado de analisar em profundidade os processos implicitamente aludidos por ela. Nesse sentido, é sintomático que Sallum Jr. fale de “economia que se mundializa” no exato momento que as tensões internacionais escalam e se traduzem em guerra comercial e tecnológica aberta, com óbvias implicações geopolíticas.
Por fim, uma palavra sobre o voluntarismo de Bolsonaro. Como vimos, ele desempenha um papel decisivo no argumento de Sallum, como princípio ativo que desencadeia reações virtuosas do sistema político. Mas – como mundialização – voluntarismo aqui é um eufemismo, um passe-partout, a cartola do qual o mágico pode tirar o que lhe aprouver. A conduta de Bolsonaro não se distingue por seu pendor voluntarista, mas pela afronta e o debilitamento da Constituição de 1988, como eixo de ação governamental.
Não se trata de exagero. O que caracteriza a política de Bolsonaro não é a busca de fórmulas viáveis para substituir o caduco presidencialismo de coalizão, o suceder de discursos e ações aparentemente tresloucados, que visam aprofundar uma situação de permanente incerteza. A mentira, a distorção e a difusão de informações disparatadas combina-se, aqui, com a desqualificação à argumentação racional. O governo promove políticas de caráter preconceituoso e excludente, apoia ações que atacam os adversários e os mais fracos, e faz repetida apologia da violência. Ele procura continuamente ridicularizar as atitudes marcadas pelo respeito, a tolerância e a promoção dos direitos humanos e a igualdade social. O que está sob ataque no Brasil de hoje é mais que a institucionalidade, são as condições sociais, as percepções e os valores de uma ordem constitucional democráticas.
Mas o governo tem ido além: depois de enfrentamentos internos entre seus apoiadores, parece que o grupo familiar e a extrema-direita tomaram as rédeas. O presidente desvia-se dos princípios constitucionais ao defender a discriminação de governos estaduais que se opõem ao seu governo, mesmo que se trate de transferências de recursos constitucionalmente obrigatórias. Demite ou transfere servidores que divulgam informações incômodas. Faz uso do nepotismo ao nomear seu filho e proteger seus parentes e agregados de investigação policial. Não satisfeito com isso, descumpre normas e práticas de indicação de dirigentes da polícia e da receita federal para nomear fiéis aliados que aparelharão essas instituições.
O regime de 1988 foi violentado em passado recente, e continua sendo atacado, agora frontalmente, pelo governo Bolsonaro. E não por acaso. O processo que culminou no golpe parlamentar de 2016 e a série de violações ora em curso inscrevem-se em um projeto intencionalmente voltado para suprimir a Constituição de 1988 e produzir uma ordem social excludente, uma política oligárquica e autoritária, com precárias para a efetiva garantia dos direitos constitucionais.
No filme de Polanski, depois de lutar desesperadamente para se livrar do ser que germinava em seu ventre, a protagonista, interpretada magistralmente por Mia Farrow, termina por abrir-se em um sorriso e estende os braços para acolher o filho do Demo em seu regaço.
Na realidade política brasileira, nada nos condena a desfecho análogo. Pelo contrário. Estamos convencidos de que o regime em gestação violenta os mais profundos anseios da maioria da população brasileira, e tem poucas chances de se consolidar.
Mas, para quem partilhou com ele projetos e amizades, é triste constatar que um intelectual sério, dono de obra respeitável, como Brasílio Sallum Jr., venha a público celebrar por antecipação o advento duvidoso de uma ordem como tal.
[1] Professor de Ciência Política da UNICAMP e Coordenador do INCT-INEU (para Estudos sobre os Estados Unidos).
[2] Presidente do Cedec, é professor de Ciência Política da UNICAMP e pesquisador do INCT-INEU.
[3] Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,em-meio-a-crise-nasce-um-novo-regime,70002977261
Referência imagética:
https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/bolsonaro-anuncia-que-filho-eduardo-ira-aos-eua-se-reunir-com-trump (Acesso em 30 de ago. 2019)