Jefferson Estevo [1]
Alina Ribeiro [2]
O Brasil assumiu a presidência do G20 Financeiro em primeiro de dezembro de 2023 com o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. Criado em 1999, o grupo é formado pelas dezenove maiores economias do mundo mais a União Europeia. Na Cúpula do Grupo, realizada em outubro de 2022 em Nova Déli (Índia), os 55 países da União Africana passaram a integrá-lo. O Brasil definiu como pilares da sua presidência três eixos: a luta contra a pobreza e a fome, o enfrentamento das mudanças climáticas e a reforma da governança global. Estão previstas cem reuniões oficiais, sendo vinte delas ministeriais e outras cinquenta de alto nível, além de eventos paralelos. Todo esse trabalho culminará na 19ª Cúpula de Chefes de Estado e governo do G20 (Brasil, 2023a), em novembro de 2024 no Rio de Janeiro.
Desigualdade, meio ambiente e governança global
O Brasil assume a presidência do G20 em um momento de recuperação de sua política externa, após os retrocessos vividos na agenda internacional durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). O governo Lula busca resgatar as diretrizes da política externa brasileira de seus primeiros mandatos (2003-2010), ao mesmo tempo em que precisa lidar com um reordenamento da agenda global que agora tem na crise climática, assim como os conflitos entre Rússia e Ucrânia e Israel e Hamas, seus principais desafios. É neste cenário de rápidas transformações que o país busca se reinserir internacionalmente, posicionando-se como um ator que visa contribuir nos processos de resolução de conflitos.
Nas Cúpulas anteriores do G20, a presença do ex-presidente Bolsonaro foi marcada pelo isolamento em relação aos demais líderes, à exceção de Donald Trump, com quem Bolsonaro buscava sempre alinhar-se de forma incondicional. Essas situações protagonizadas por Bolsonaro são simbólicas no sentido de elucidar o perfil de sua política externa, que representou um movimento contrário ao histórico da atuação internacional do Brasil desde a redemocratização (Bressan, Menezes e Ribeiro, 2021; Lopes, 2023; Soares de Lima, 2023). No seu governo, houve o abandono da tentativa de construção do país como um ator global. Em 2022, por exemplo, após perder as eleições brasileiras, Bolsonaro não participou da reunião do G20, sem apresentar justificativas (Chade, 2022).
Nesse contexto, a presidência brasileira no G20 representa uma grande oportunidade de exercício do protagonismo brasileiro aos olhos do mundo, sinalizando que o Brasil é um país atento às agendas globais e, além disso, que está disposto a construir cooperativamente um mundo menos desigual. Como cada presidente possui a liberdade de destacar temas a serem priorizados, o Brasil escolheu três áreas temáticas: (1) luta contra a pobreza e a fome, (2) enfrentamento das mudanças climáticas e (3) a reforma da governança global.
A agenda de combate à pobreza e à fome, parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), retoma a agenda do primeiro governo Lula (2003-2006). O projeto “Fome Zero” foi reconhecido internacionalmente e, na atual gestão, o programa “Brasil sem Fome” dá continuidade à centralidade e urgência do tema. Somam-se a esses programas o Bolsa Família, que combinado com outras políticas sociais foram cruciais na redução da pobreza no país. O presidente Lula busca destacar em suas declarações públicas a necessidade das nações trabalharem juntas para alcançar os 17 objetivos e as 169 metas dos ODS/ONU. Caso negligenciada essa necessidade, ele considera que “[…] estaremos diante do maior fracasso multilateral dos últimos anos” (Brasil, 2023b, online).
A crise climática, outro dos ODS, faz parte de um resgate das agendas anteriores ao processo de desmonte da política ambiental vivido no Brasil desde 2016, período em que houve uma ruptura do histórico da participação brasileira em temas ambientais (Estevo, Ferreira, 2022; Saraiva, Albuquerque, 2022). No que concerne ao enfrentamento das mudanças climáticas, o governo Lula tem reafirmado a necessidade de recursos e transferências de tecnologia, bem como vontade política e maior determinação dos governantes (Brasil, 2023b), seguindo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
Por fim, a reforma no sistema da governança global é uma agenda historicamente defendida pelo governo Lula, e é significativo que o Brasil tenha destacado este tema na sua presidência do Grupo. A reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CS/ONU), bem como de instituições financeiras como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) tendem a ocupar o centro dos debates. Entre os temas a serem discutidos estão os empréstimos feitos a países pobres que acabam se endividando para além de suas capacidades de pagamento, o que influencia diretamente na luta contra a desigualdade e a fome e no combate às mudanças climáticas.
Dinâmicas e funcionamento do G20
Hoje, o Grupo dos 20 é composto por dezenove países (Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e África do Sul) e dois organismos regionais (União Europeia e União Africana), totalizando em cem países.
A criação do Grupo em 1999 foi uma reação à crise asiática de 1997, recessão econômica que atingiu grande parte dos países da Ásia e que demonstrou que os efeitos de flutuações econômicas internacionais agora poderiam transportar-se da periferia aos países centrais (Cozendey, 2011). Diante desse fenômeno, o G20 foi criado, portanto, como um fórum de discussão sobre a governança econômica internacional.
Nos primeiros anos do grupo, as reuniões eram realizadas entre os Ministros das Finanças e Presidentes dos Bancos Centrais dos países-membros. Contudo, a partir da crise financeira de 2008, o fórum passou por uma reforma e foram incluídos os chefes de Estado e governo. A primeira reunião nesse novo formato ocorreu em 2008, em Washington (G-20,2023a).
Os países-membros do G20 são divididos em cinco grupos de no máximo quatro países e a rotatividade da presidência ocorre entre eles. A maioria dos grupos segue uma base regional como o Grupo 3 (Argentina, Brasil e México), Grupo 4 (Alemanha, França, Itália e Reino Unido) e Grupo 5 (China, Coreia do Sul, Indonésia e Japão). Os Grupos 1 (Arábia Saudita, Austrália, Canadá e Estados Unidos) e 2 (África do Sul, Índia, Rússia e Turquia), no entanto, não seguem essa classificação (G-20, 2023a). União Europeia e União Africana não fazem parte dos grupos.
As reuniões anuais do G20, chamadas de “Cúpulas”, são organizadas a partir de uma divisão de trabalho em dois grupos: o primeiro, chamado de Trilha de Sherpas, abriga temas como agricultura, anticorrupção, comércio e investimento, cultura, desenvolvimento, economia digital, educação, emprego, meio ambiente e mudanças climáticas, saúde, resiliência e riscos de desastres, transição energética e turismo (G-20, 2023b). No exercício da presidência brasileira, o órgão encarregado de coordenar essa trilha é a Secretaria de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores (Brasil, 2023c)
O segundo grupo, denominado Trilha de Finanças, é responsável por trabalhar em temas financeiros e econômicos e é liderado por Ministros da Economia e presidentes dos Bancos Centrais dos países-membros. Eles trabalham com seis temas: arquitetura financeira internacional, infraestrutura, finanças sustentáveis, inclusão financeira, tributação internacional, finanças e saúde (G-20, 2023b). O órgão brasileiro que coordenará essa trilha é a Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda (Brasil, 2023c).
Além desses dois grupos de negociações, o G20 conta também com outros grupos denominados “Grupos de Engajamento” (G-20,2023b). Embora a maioria das deliberações dentro do Grupo ocorram nos dois grupos supracitados, os grupos de engajamento possuem a capacidade de organizar discussões e formular recomendações buscando influir na tomada de decisões. São liderados por organizações do país anfitrião, mas incluem participantes de todos os países-membros (CIPÓ, 2023). É nesse espaço que o Brasil pode fomentar e apoiar uma maior participação da sociedade civil.
As Cúpulas ocorrem nos países que assumem a presidência pro-tempore por um ano. Por não possuir um secretariado permanente ou um grupo fixo de funcionários como as organizações internacionais, o país que preside é auxiliado pela denominada troika, junção dos três países que ocupam a presidência anterior, atual e futura. Garante-se, dessa forma, maior cooperação e alinhamento nas organizações e discussões (Daric, 2016; G-20,2023a), bem como uma continuidade das agendas ao longo dos anos. Durante a atual presidência brasileira, a troika é composta pela Índia (2023), Brasil (presidência atual) e África do Sul (2025). Vale destacar que a troika atual e a troika anterior, formada por Indonésia, Índia e Brasil, foram compostas por países do Sul Global (CIPÓ, 2023).
É notável a ampliação da agenda no histórico das Cúpulas. A partir de 2008, ela esteve centrada em questões econômicas com foco no enfrentamento da crise financeira iniciada nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, outros temas tornaram-se centrais, como o desemprego dos jovens (Cúpula no México em 2012) e a imigração e a crise dos refugiados (Cúpula de 2015 na Turquia).
Foi a partir de 2016, com a Cúpula realizada na China, que questões globais passaram a ocupar espaço central nos debates e nas negociações, sobretudo pelo Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Desde então, temas como transição energética, mitigação de emissões e financiamento para países mais vulneráveis receberam maior atenção. Em 2020, sob a presidência da Arábia Saudita, a Cúpula foi realizada virtualmente e o principal tema, evidentemente, foi a crise desencadeada pela pandemia do coronavírus.
Já em 2022, sob presidência da Indonésia, um dos principais temas que formaram parte da agenda foi a necessidade latente de uma transição energética global. Somaram-se, portanto, debates sobre financiamento para o enfrentamento das mudanças climáticas, cumprimento dos ODS, investimentos em infraestrutura e segurança alimentar. O conflito entre Rússia e Ucrânia acabou incluído na agenda da Cúpula dada a sua gravidade para a segurança regional e internacional. O presidente russo Vladimir Putin não compareceu à reunião e na declaração final “a maioria dos membros condenou veementemente a guerra na Ucrânia e destacou que está causando um imenso sofrimento humano e exacerbando as fragilidades existentes na economia global” (G-20, 2022, p. 1, tradução nossa).
Já na última Cúpula realizada em setembro de 2023 na Índia, a ênfase foi dada à agenda ambiental, reforçando essa temática que dominou a Cúpula anterior na Indonésia (G-20, 2023c). Dessa vez, a reunião ocorreu com a ausência de Putin e do presidente chinês, Xi Jinping. Embora a guerra Rússia-Ucrânia tenha sido pautada, os líderes reiteraram que embora conflitos geopolíticos e de segurança possam ter consequências que afetam a economia global, o G20 não seria uma plataforma para a resolução dessas questões (G-20, 2023c).
Podemos considerar que uma das principais marcas da Cúpula na Índia foi a entrada da União Africana que agrupa 55 países (African Union, 2023). Essa adesão representa uma presença maior de países do Sul Global no G20.
Considerações finais
A realização da Cúpula do G20 Financeiro no Brasil pode ser mais uma oportunidade para o governo Lula reafirmar o protagonismo do país na política internacional a fim de reposicioná-lo como ator central. Para isso, é crucial a escolha de questões globalmente importantes como são os temas da pobreza e do combate à fome, das mudanças climáticas e da busca de reforma da governança global a fim de tornar os organismos internacionais mais plurais, inclusivos e que contemplem as necessidades do Sul global.
O Grupo, responsável por coordenar posições no campo das finanças e da economia, também abarca temas da geopolítica global (embora esses debates não sejam inseridos nas declarações finais), constitui-se como um importante fórum no qual o Brasil pode – e deve – exercer liderança.
Destaca-se também o comprometimento brasileiro com as demandas e necessidades dos países do Sul Global, postura que certamente ecoará no G20. Isso pode ser observado no forte apoio brasileiro à integração da União Africana ao Grupo. Como resultado, o Brasil sediará a primeira Cúpula ampliada do G20, agora com a inédita presença da União Africana como membro. Em adição, prospecta-se também maior atenção à participação da sociedade civil por meio dos grupos de engajamento, algo que vem sendo defendido pelo Brasil.
Nesse contexto de reconstrução da política externa e exercício da liderança brasileira, destaca-se também a realização da 30ª Conferência das Partes (COP30) na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC na sigla em inglês) em solo brasileiro no ano de 2025. Parece haver, portanto, possibilidades de reordenamento da política externa brasileira e recuperação de suas agendas históricas, voltando a ser um país integrado às questões que movimentam o mundo. Faz-se presente, também, um Brasil alinhado com as demandas do Sul Global e não mais subserviente ao Norte Global.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
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[1] Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador de Pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista do CNPQ e FAPEG. Membro do Grupo de Reflexão G-20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Email: jeffersonestevo@ufg.br
[2] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NEL-UnB) e membra do Grupo de Reflexão G-20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Email: alinasilvaribeiro@gmail.com
Referência imagética: Agência Brasil. Urgência de ações para o combate à fome é consenso entre países do G20. 11 dez. 2023. Fotografia de Márcio Batista/MRE. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-12/urgencia-de-acoes-para-o-combate-fome-e-consenso-entre-paises-do-g20>. Acesso em: 12 dez. 2023.