Vagner Gomes de Souza1
16 de outubro de 2024
As eleições municipais de 2024 são a primeira de âmbito local na terceira década deste século e a primeira realizada após o anúncio do fim da pandemia da Covid-19. Em 2020, a abstenção eleitoral chegou a números elevados, o que pode ter impactado em muitos resultados eleitorais majoritários, com certeza, isso ocorreu nas eleições legislativas em que o sistema é proporcional. A redução do coeficiente eleitoral por conta do crescimento do não voto (abstenção, brancos e nulos) beneficia ou prejudica as candidaturas mais “ideológicas” ou consolidadas em grandes máquinas eleitorais?
Buscaremos responder a essa pergunta observando as eleições municipais ao legislativo do Rio de Janeiro. A segunda capital do Brasil tem 51 vereadores eleitos, alguns que assumiram a vaga na condição de suplentes porque parte dos nomes eleitos em 2020 ascendeu ao legislativo federal e estadual. Quem já atua como vereador tende a começar uma campanha eleitoral com mais recursos do fundo eleitoral, sobretudo por ter com um trabalho consolidado em algumas áreas temáticas e/ou bairros, em comparação a outros candidatos. Partem com vantagem aqueles que têm maior trabalho junto aos eleitores. Recordemos, então, do alerta de que “nos países democráticos, os membros das assembleias políticas pensam mais em seus eleitores que em seu partido, ao passo que, nas aristocracias, se ocupam mais com o partido que com seus eleitores.” (Tocqueville, 1977, p. 379).
Nossa análise partirá da observação das três eleições anteriores à atual (2012, 2016 e 2020), que apresentaram contextos históricos e políticos distintos. Nas eleições de 2012 tivemos a reeleição de Eduardo Paes pelo então PMDB em aliança com o PT. Vitória no primeiro turno para o então mandatário municipal. Nas eleições de 2016, vivemos a ascensão da “antipolítica” diante da Operação Lava Jato e o desgaste da candidatura da situação por inúmeros fatores, levando à eleição do bispo neopetencostal Marcello Crivella. Nas eleições de 2020, além da mencionada Covid19, Paes novamente se elegeu na primeira eleição proporcional sem as coligações proporcionais.
Reconhecemos nesse passado recente que há três cenários eleitorais distintos que podem induzir a incertezas em relação ao próximo pleito ao legislativo municipal carioca. A melhor certeza é não se basear em números eleitorais anteriores como se fosse uma eleição legislativa com “recall”, pois há uma sedimentação pela continuidade, mas ela está “contaminada” pelos vícios anunciados por Tocqueville: os atores políticos estariam distantes da mobilização e formação de uma cultura cívica política. Assim, os representantes do legislativo carioca mudam de partido constantemente, na busca de um melhor alinhamento ao prefeito e/ou deputado federal-estadual ao qual estejam vinculados. A garantia de recursos para a sua candidatura é uma condição primeira para a filiação partidária, assim, a ausência de fidelidade partidária/ideológica expõe um “ponto fraco” nas argumentações sobre a polarização afetiva no sistema eleitoral brasileiro, uma vez que um vereador filiado ao PSB pode perder a reeleição filiado ao PP e buscar uma nova eleição filiado ao PL.
Diante disso, vejamos panoramicamente os cenários mencionados. As eleições de 2012 foram a segunda em que um prefeito se reelegeu2 e, uma característica que tende a ser uma marca carioca, já com vitória no primeiro turno. Na reeleição de Paes 64,6% dos votos válidos, enquanto o segundo colocado chegava a 28,15%, observamos uma abstenção de 20,45% dos eleitores. A tendência de se definir as eleições de reeleição no primeiro turno fez as outras candidaturas não ultrapassarem 8% do total dos votos válidos.
Em relação ao legislativo carioca, o partido majoritário foi o do prefeito reeleito, ou seja, 13 cadeiras com inúmeros nomes entre os dez mais votados. Nas eleições proporcionais, em comparação à majoritária, há um relativo aumento do número de “não voto” (abstenção, brancos e nulos). Foram 42,45% e 31,2% respectivamente. Assim, antes das manifestações de 2013, aproximadamente quatro em cada dez eleitores cariocas inscritos para votar não votaram em nenhum vereador. Esse fenômeno não é isolado, mas indica uma percepção da participação aquém na política em um município com duas fortes universidades públicas federais e uma estadual.
Nas eleições de 2016, houve uma análise precipitada quanto à sua natureza “disruptiva”. Muitos analistas se anteciparam em prever o fim de “ciclos” de determinados grupos políticos cariocas. Todavia, se a “velha política” estava morrendo nas eleições municipais, ela foi capaz de se manter viva sob o uso de mecanismos tradicionais enquanto os níveis de abstenção eleitoral se elevaram significativamente nos primeiro e segundo turnos (24,28% e 26,85% respectivamente).
Nas eleições legislativas, – o partido do prefeito vitorioso no segundo turno, o PRB, – elegeu apenas três vereadores, vinculados a uma mesma filiação religiosa. Esse ponto de partida no legislativo carioca provavelmente explica em muito o desgaste do mesmo na sua tentativa à reeleição em 2020. Os partidos do chamado campo democrático popular (PDT/PT/PCdoB/PV/PSOL/REDE/PSB)3 tiveram uma redução de 13 para dez vereadores em 2016. Os partidos “centristas” ainda mantiveram uma presença marcante no legislativo municipal associado a candidaturas “clientelistas”. O clientelismo político nunca cedeu espaço significativo entre os eleitores cariocas numa perspectiva de que pensar a “bipolaridade” política é um exercício estranho ao eleitor carioca pelo menos. O mandatário do legislativo local atua como um “moderador” no processo eleitoral supostamente polarizado.
As eleições de 2020 foram marcadas pelo elevado índice de abstenção dos eleitores durante pandemia ainda sem vacina. A data do primeiro turno foi adiada para 15 de novembro, e muitas atividades de campanha foram adaptadas às restrições sanitárias. O prefeito Paes foi eleito em segundo turno com uma abstenção de 35,45% dos eleitores. Portanto, o atual prefeito foi sufragado por 1.629.319 eleitores enquanto, 1.720.145 eleitores não compareceram às urnas. Logo, o legislativo carioca terá a distorção de um empate triplo entre Republicanos (partido de situação até então), DEM (partido que ascendia ao executivo) e PSOL (partido que lançou uma candidatura própria e alcançou o quarto lugar com 3,24%). Esses três partidos tiveram sete cadeiras cada um. Na lógica da candidatura majoritária “puxadora de legenda” o PT elegeria mais, porém foram eleições legislativas em que o fato de ser mais conhecido foi uma vantagem. A nominata do PSOL tinha vantagem por ter Tarcísio Motta, um candidato a reeleição que já tinha sido candidato a Governador, e Chico Alencar, um veterano da esquerda carioca dos anos 80 que desejava retornar ao parlamento federal, e Monica Benício, a viúva da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. Todavia, a variável do não voto ao legislativo municipal foi marcante, pois o “não voto” atingiu o histórico índice de 45,6%.
A falácia do “voto de opinião” não se aplica diante dessa cultura cívica pouco participativa, o que faz as instituições religiosas ganharem cada vez mais força política nas eleições legislativas cariocas tanto para os evangélicos quanto também com apelos aos eleitores católicos e às candidaturas que postam imagens de suas visitas aos terreiros de matriz africana. Sumiram os sindicatos dos professores, urbanitários, bancários, etc. nos currículos de muitas candidaturas ao legislativo carioca. Acrescentemos que as lideranças comunitárias não têm mais um apelo como tinham nas eleições legislativas dos anos 80/90 do século passado.
As “eleições da incerteza” podem criar um perfil de legislativo mais refém de seus “patrocinadores”, enquanto os partidos políticos nas eleições cariocas servem de incubação para os projetos individuais de muitos que têm como real meta a ascensão ao parlamento federal e estadual. Não é ilegítimo desejar ascender politicamente, mas o individualismo na política brasileira apresenta grande força nas eleições cariocas. Assim, observamos um “mosaico de horrores” numa cidade em que o uso da prática da coação e/ou violência política como cultura eleitoral nos acompanha desde o século XIX, como nos ensinam os estudos da História Local sobre o uso de capoeiras em tempos de eleições (Líbano Soares, 1999).
No Datafolha de 3 de outubro de 2024 surgia a aferição de que 50% dos eleitores cariocas ainda não tinha definido em quem votar no legislativo municipal faltando 72 horas para as eleições. As últimas horas de campanha para a vereança acabam sendo as mais decisivas para as candidaturas novatas – e mais ainda para as que têm grande visibilidade, uma vez que grande visibilidade gera um sentimento de “já ganhou” entre a equipe e simpatizantes. Há três níveis de eleitor: o militante, que tem seu voto decidido na construção ou simpatia de uma candidatura; o mobilizado, que é aquele que o “eleitor militante” trouxe para votar e às vezes o transforma em divulgador ao longo das semanas de campanha eleitoral; e, nas últimas horas, temos o eleitor ônibus, que sobe naquele que apresenta as condições de o levar a algum ponto.
Esse terceiro tipo de eleitor cresceu muito nos últimos anos pela individualização da sociedade. Segundo Tocqueville,
Individualismo é uma expressão recente, que nasceu por causa de uma ideia nova. Nossos pais apenas conheciam o egoísmo. O egoísmo é um amor apaixonado e exagerado por si mesmo, que leva o homem a nada relacionar senão a ele apenas e a preferir-se a tudo. O individualismo é um sentimento refletido e pacífico, que dispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família e seus amigos, de tal sorte que, após ter criado para si, dessa forma, uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a própria grande sociedade. (1977, p. 386).
O alerta do pensador francês indica que o individualismo seria um juízo depravado que teria origem democrática e seria maior ao fim de uma revolução democrática. As manifestações de 2013 poderiam ter contribuído ainda mais para essa perspectiva que reduz a qualidade participativa do “eleitor militante” e mobiliza um “eleitor ônibus” que foi educado num discurso que seu voto como indivíduo teria um valor. O “mercado do voto” substituiu a vida partidária e o associativismo no mundo político carioca. O programa político cede espaço para o espelhamento dos desejos e o envelhecimento demográfico do carioca não está sendo acompanhado por novas lideranças do campo democrático. Portanto, “aparentemente, a democracia é um tantinho incerta. Em todo caso, suas chances também dependem do que fazemos” (Dahl, 2001, p. 35).
Sugerimos que haja uma sedimentação pela continuidade, mas ela está “contaminada” pelos vícios anunciados por Tocqueville em que os atores políticos estariam distantes da mobilização e formação de uma cultura cívica política. Por outro lado, “a criação de assembleias locais, em que homens livres pudessem participar do governo, pelo menos até certo ponto.” (Dahl, 2001, p. 32) seria uma percepção de Robert A. Dahl a explicar uma diversidade de candidaturas como se fossem mercadorias numa “feira eleitoral” em que indivíduos estranhamente bizarros e alheios aos valores democráticos emergem como se fossem “tribunos da plebe”.
Referências bibliográficas
Dahl, Robert A. – Sobre a democracia. Brasília: Editora UnB, 2001.
Líbano Soares, Carlos Eugênio. – A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999.
Tocqueville, Alexis de. – Democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.
- Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na UNIRIO. ↩︎
- Serve como registro aos analistas políticos que César Maia derrotou Luiz Paulo Conde em sua tentativa de reeleição em 2000. Em 2004, ele foi o primeiro Prefeito Carioca a se reeleger no primeiro turno com 50,11% dos votos válidos aonde a abstenção foi de 15,88%. ↩︎
- Entretanto, esse número é menor em 2012 se considerarmos que seria Elton Babu (PT), Edson Zanata (PT), Paulo Messina (PV) e Marcelino De Almeida (PSB). Os dois últimos nomes estão concorrendo uma nova eleição em 2024 pelo PL. ↩︎
Referência imagética: Sede do Legislativo Municipal, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Abriga o Plenário e a Presidência, enquanto os gabinetes dos Vereadores localizam-se no prédio anexo ao fundo. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=legislativo+rio+de+janeiro&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image