Tiago Duque[1]
Em uma pesquisa finalizada recentemente (DUQUE, 2020), estudei gênero, sexualidade e diferenças na fronteira Brasil-Bolívia, mais precisamente no Pantanal de Mato Grosso do Sul. Lá, há quase duas décadas, há o “Amistoso da Diversidade”, uma partida de futebol anual composta por dois times, o das “Poderosas” e o das “Imbatíveis”, formados exclusivamente tanto por gays como por travestis, sendo, respectivamente, um da cidade de Ladário e o outro de Corumbá. O estudo envolveu entrevistas semiestruturadas e etnografia on-line e off-line. A análise se deu a partir de uma perspectiva teórica pós-crítica (PARAÍSO, 2014).
O “Amistoso da Diversidade” é apenas um dos vários eventos em que gays e travestis brasileiros/as conquistam protagonismo na região. Há festas religiosas, desfiles carnavalescos e diferentes apresentações escolares em que esse público também é valorizado por diferentes moradores locais. Escutei em campo que esses eventos são feitos “por gays”, mas não “para gays”. Há, portanto, certo regime de visibilidade (MISKOLCI, 2014; PASSAMANI, 2018) que se constitui devido a relações de poder que não implicam em proibições diretas, ainda que sanções possam existir. Antes, aprende-se culturalmente, de maneiras indiretas e sofisticadas, sobre o aceitável em termos de gênero e sexualidade na vida cotidiana.
Esse aprendizado de gênero e sexualidade tem relação direta com o espaço geográfico. A região brasileira das duas cidades onde desenvolvi este estudo é caracterizada pela marca fronteiriça, muitas vezes associada ao ilício, à miscigenação, à violência e à ameaça nacional (OLIVEIRA, CAMPOS, 2012). Ao mesmo tempo, considerando Corumbá e Ladário como parte do Pantanal, essa região se torna, em termos turísticos e midiáticos, muito valorizada (RIBEIRO, 2015). Mesmo assim, a marca fronteiriça negativa ganha força em comparação à espetacularização do Pantanal, ainda historicamente recente e sazonal.
Nesse contexto de significações, tem sido comum escutar, quando o assunto é diferenças – inclusive de gênero e sexualidade –, que a região brasileira não é preconceituosa. No entanto, atribui-se à Bolívia um preconceito contra gênero e sexualidade que não existiria do lado brasileiro. Por causa disso, já escutei de brasileiros que “lá [do outro lado da fronteira] não tem gay”. O regime de visibilidade já citado aqui, de protagonismo por parte de gays e travestis brasileiros/as, como no “Amistoso da Diversidade”, possui um currículo cultural que produz valor e saber; regula condutas e modos de ser, fabrica identidades e representações, constitui certas relações de poder (SABAT, 2001; SILVA, 2013). Dito de outro modo, ele apresenta um “outro” estrangeiro preconceituoso diante de um “nós” brasileiro acolhedor do que se convencionou chamar de “diversidade sexual”.
A percepção de que o lado brasileiro da fronteira não é preconceituoso tem relação direta com o protagonismo de gays e travestis em eventos como o amistoso. Ele tem um modo de ser realizado que envolve apoio governamental e de empresárias/os locais “não LGBT”. Tanto a rede de apoio como o público da atividade são compostos por pessoas da “comunidade” e da “sociedade”. Essa separação, pelo que pude perceber etnograficamente, indica que a “comunidade” se refere a pessoas de classe social menos privilegiadas, inclusive pequenos comerciantes; sendo a “sociedade” referência às pessoas mais ricas, empresários/as “finíssimos/as”. A marca de raça/cor/etnia também caracteriza essa diferenciação, sendo a classificação “sociedade” direcionada a pessoas mais claras, diferente da “comunidade”, que é formada por aqueles/as com fenótipos afro-brasileiros e indígenas.
O apoio e a presença da “comunidade” e da “sociedade” no evento indica o quanto o jogo de futebol em questão é um sucesso de público e organização. Mas, em termos de sua historicidade, ele já foi bem menos alvo de prestígio social. Antes, no início do histórico de realização das partidas, ele era realizado na cidade de Ladário, e comumente havia brigas entre as torcidas, o que exigia e justificava, inclusive, a presença da polícia. Nos últimos anos, ele passou a ser realizado em Corumbá, na maior parte das vezes com acesso livre, sem a cobrança de ingresso.
Ao me referir a aprendizados de gênero e sexualidade a partir do futebol, seja ele em região fronteiriça ou não, é preciso considerar que ele é um esporte altamente popularizado, racializado e historicamente associado a classes mais baixas economicamente, mas, acima de tudo, masculinizado e heterossexualizado. Sabe-se que, em termos curriculares futebolísticos, parte do principal conteúdo é “a constante desvalorização das práticas homoeróticas, especialmente aquelas ligadas à passividade” (BANDEIRA, 2019, p. 100). Ainda assim, como qualquer currículo, ele também se torna um campo de disputas e, por isso, traz imprevisibilidade em como se apropriam de determinados conteúdos. Não por acaso, “o comportamento emotivo é o que singulariza a condição de torcedor no contexto do futebol” (RIOS; COELHO, 2020, p. 8). A emoção, tida em nossas sociedades como “naturalmente” feminina, acaba sendo “autorizada” entre homens quando se trata desse esporte.
Diante dessas expectativas curriculares em termos de gênero e sexualidade e o futebol, se os jogadores gays ou as jogadoras travestis erram, o público ri (é esperado que quem compõe os dois times erre o passe, afinal, não são “homens de verdade” e nem heterossexuais), e se eles e elas acertam, o público também ri (é inesperado que gays e travestis acertem o passe). Por isso, a expectativa risível do público é sempre atingida por quem está em campo no referido amistoso. Além disso, sendo dois times rivais, de cidades brasileiras vizinhas, cada torcida se une a partir da identificação da localidade regional-nacional para torcer e rir, independentemente dos times profissionais que cada um comumente tem no coração (na região há torcedores de grandes times paulistas e, principalmente, cariocas).
O riso, comum ao evento, é entendido aqui como uma experiência cultural altamente vinculada a relações de poder e de produção de diferenças (MINOIS, 2003). Há, portanto, uma visibilidade de gênero e de sexualidade no campo do risível, de certo entretenimento, muito valorizado na cidade. O riso é uma marca diferenciadora dos/as cidadãos/ãs de Corumbá, pois ela é conhecida como a cidade da alegria – a maior festividade local é intitulada como o “Carnaval da Alegria”. Esse riso valorizado é localizado no campo da festa, da celebração de uma identidade nacional positivada que se contrapõe aos valores negativos associados à fronteira. Observando o público de uma das partidas do amistoso, percebi que riem crianças, jovens e idosos/as – famílias inteiras.
O riso e o próprio esporte são modos do currículo cultural ser colocado em produção e circulação. Portanto, eles têm teor pedagógico. Esse currículo dá o tom do programa de gênero e sexualidade em curso na produção das diferenças a partir dos dois times aqui citados, formados exclusivamente por gays e travestis. As/os jogadores/as aparentemente parecem quebrar padrões culturais por serem gays e travestis, mas, mais que isso, o regime aqui discutido indica que eles/as estão no jogo das representações agregando valor a uma identidade valorada da região: ser alegre e sem preconceito. Afinal, conforme o que escutei durante uma das edições do amistoso, o povo vai “ver as bichas só para dar risada”. Ou, segundo a afirmação de um dos moradores gays sobre esse e outros eventos locais: “todo o mundo vai aplaudir as bichas”.
O riso e o reconhecimento envolvendo gays e travestis dos dois times indica ainda que esse regime de visibilidade não se explica por uma diferenciação em termos de pessoas cis (gays) e pessoas trans (travestis). Mais do que afirmar a existência da cisgeneridade “para questionar os privilégios dos corpos que se entendem dentro de uma perspectiva naturalizante e essencialista de gênero” (NASCIMENTO, 2021, p. 100), aponto para o quanto, nesse estudo, uma análise diferenciadora em termos cis/trans-gay/travesti não contribui para a compreensão do regime aqui em tela, sendo necessário problematizar interpretações que apontariam, de antemão, a um certo “privilégio cis” (FAVERO, 2020). Seja como for, ainda que o tratamento para travestis e gays não seja o mesmo na região, a diferenciação identitária, mesmo que ela exista, não necessariamente ajudaria na melhor compreensão das relações de poder em jogo nos processos de reconhecimento aqui em questão.
Segundo Butler, “o reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade” (2010, p. 168). Esses campos de inteligibilidade são entendidos como fazendo parte do currículo cultural binário em termos de gênero e sexualidade. Ainda que gays e travestis não cumpram integralmente com esse currículo, por não terem a linearidade esperada entre “sexo”, gênero e desejo, os/as jogadores/as do amistoso tampouco se tornam, neste contexto, abjetos/as, isto é, não ameaçam a produção de diferenças binárias (BUTLER, 2003). Pelo contrário, ajudam a reforçar binarismos de uma diferenciação hierárquica diante de um “brasileiro” supostamente “sem preconceito” e um “outro” boliviano “preconceituoso”.
A “comunidade” e a “sociedade” fazem parte desse regime que envolve gays e travestis, portanto as pessoas “não LGBTQIA+” não estão fora dele. Por isso, posso afirmar, pós-identitariamente, que esse regime tem um programa com conteúdo curricular que interessa às duas cidades brasileiras como um todo, mesmo porque “conduzir e conectar corpos e vidas é efeito das artimanhas de um currículo, é efeito da pedagogia que lhe é específica, efeito de suas vontades de sujeito” (MAKNAMARA, 2020, p. 61-62). Pedagogicamente, o amistoso, como outros eventos feitos “por” gays e travestis e não “para” gays e travestis na região, produz, via o regime de visibilidade de gênero e sexualidade aqui caracterizado, uma realidade fronteiriça menos estigmatizada para os/as brasileiros/as.
Mas, por outro lado, esse “outro” menos valorizado não é apenas morador ou nascido do outro lado da fronteira. São também brasileiros/as gays e travestis que se recusam (por escolha ou por não terem opção) a se envolver nos eventos ou, ainda, as travestis que não estão atuando nessa didática da diferença, como aquelas que, segundo uma travesti da cidade, “não se dão o respeito” (que estão se prostituindo na rua). Ainda assim, esses/as gays e travestis à margem desse regime, por existirem fora desse campo de inteligibilidade e reconhecimento valorado de gênero e sexualidade, fazem o contraponto para a sua própria reprodução cultural (com tudo o que há de contingente nela).
Concluo indicando para o quanto a reflexão pós-identitária nos permite conhecer aquilo que não se dá a conhecer, não por estar oculto, mas por caracterizar-se como aquele conhecimento não suportável no currículo e na pedagogia cultural (LOURO, 1997). Portanto, não se trata de buscar resolver os problemas das limitações dos processos de reconhecimento com mais conhecimento. Antes, o que talvez possa ser uma aposta insuportável para muitos/as é o conhecimento disruptivo, isto é, que interrompe certos programas curriculares e didáticas de produção das diferenças em termos hierárquicos e opressivos (KUMASHIRO, 2000). Isso implicaria, talvez, não em denunciar a produção de gays e travestis risíveis e, por isso, reconhecidamente aceitos/as no Pantanal, mas nos questionar se somos capazes de rever os valores atribuídos às fronteiras (leia-se “às margens”) e aos “outros”, assim como nosso próprio modo identitário de sermos brasileiros/as alegres e “sem preconceitos”.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA, G. A. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Curitiba: Appris, 2019.
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BUTLER, J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DUQUE, Tiago. Gênero, sexualidade e diferenças: normas e convenções sociais na fronteira Brasil-Bolívia (2014-2019). 7f. Relatório Final de Projeto de Pesquisa – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2020.
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[1] Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2 (Educação). E-mail: tiago.duque@ufms.br.
Fonte Imagética: Diário Corumbaense. Partida do Amistoso da Diversidade. Disponível em: <https://www.diarionline.com.br/index.php?s=noticia&id=126989>. Acesso em: 10 ago. 2022.