Vinicius Ruiz Albino de Freitas1
23 de setembro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia os textos anteriores aqui.
A reforma da governança global é uma das principais agendas do G20 Financeiro. E a ordem liberal criada após a II Guerra Mundial sob a hegemonia dos Estados Unidos (EUA) já não corresponde à realidade geopolítica do século XXI. O Ocidente já não pode oferecer “bens coletivos internacionais” como outrora. O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC) está paralisado desde o governo Donald Trump (2017-2021), e essa situação segue no governo Biden. O aniversário de trinta anos da OMC está marcado pelas medidas protecionistas dos EUA, que retomou de forma explícita suas políticas industriais.
No âmbito da segurança e da estabilidade transfronteiriça, a ordem internacional também tem sua credibilidade colocada em dúvida. Evidência disso são ações unilaterais como os ataques da OTAN à Sérvia (1999), a invasão estadunidense do Iraque (2003), os assassinatos seletivos de opositores levados a cabo pelos governos de Barack Obama (2009-2017) e Donald Trump no Iraque, Afeganistão e Irã, entre outros, que debilitaram ainda mais o multilateralismo. E a Guerra na Ucrânia, após a invasão russa em fevereiro de 2022, aumentou a tensão e a instabilidade global.
É preciso considerar que, desde a crise financeira global de 2008, a ordem internacional liderada pelos EUA tem enfrentado uma nova gama de dificuldades, uma vez que os países do G7 já não dispõem de meios para enfrentar sozinhos os novos desafios que surgiram desde então. A criação de novos fóruns internacionais para lidar com novas questões globais é exemplo disso.
Desde 2008, o G20 Financeiro foi alçado à condição de principal fórum global na coordenação de medidas econômicas e financeiras para mitigar os efeitos da crise mundial que começou nos EUA. Em contrapartida, se constata o aumento do protagonismo internacional do Sul Global, cujo peso econômico e político é muito maior do que em 1945, quando a Organização das Nações Unidas foi criada. Nesse aspecto, destacam-se o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que foi ampliado em 2023 na reunião de Cúpula de Johanesburgo (África do Sul), quando cinco novos membros passaram a integrar a coalizão: Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Neste contexto, observa-se uma mudança na clivagem centro-periferia, marcada pela ascensão da China e demais países do Sul global, ainda que a desigualdade entre os países se mantenha em patamares elevados. Alguns dados nos ajudam a compreender esta conjuntura, como os elencados a seguir.
Quando a atual ordem internacional foi criada, em 1945, parte dos países do Sul global ainda estavam sob o jugo colonial. De acordo com Maddison (2020)2, Índia e China, juntas, contribuíam com 10% do PIB Mundial. Os países da América Latina estavam começando sua industrialização substitutiva e tinham um peso econômico muito reduzido. Já em 2024, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, a contribuição dos países do Sul Global para o PIB mundial foi de 42%3. Apenas a contribuição da China é de 16% em termos de dólares correntes, ou seja, US$18 trilhões.
Destaca-se o papel das empresas dos países em desenvolvimento no ranking Global Fortune 500. Nesse aspecto, apenas os dados sobre a China dão a medida dessa transformação. Em 2000, apenas 10 empresas chinesas estavam listadas; já o Japão possuía 104 e os EUA 179 corporações. Em 2023, a China passou a ter 142 empresas e os EUA diminuíram para 136 e o Japão para 414.
O aumento expressivo do comércio entre os países em desenvolvimento, que saltou de 9,8%, em 1995, para 24,6%, em 2022, também merece ser enfatizado. Já o comércio entre os países desenvolvidos caiu de 54,3% para 38,5%, enquanto o comércio entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento ficou estável, em torno de 36% do total5. A China tornou-se a maior parceira comercial de mais de 130 países e a participação dos países do Sul global no comércio mundial cresceu mais que a dos países desenvolvidos.
Neste cenário, o G20 e outros fórum multilaterais ou coalizões como o BRICS são fundamentais aos países do Sul global no que tange a capacidade de influenciar nas decisões dos temas e agendas internacionais.
De acordo com Menezes (2024), a agenda do G20 no Brasil possibilita a inclusão de outros temas importantes para os países do Sul global e a articulação entre esses países é crucial, pois isso fortalece que eles elaborem pautas conjuntas que toquem em interesses comuns do bloco. “Países como o Brasil têm atuado no G20 para reformar os espaços de governança global com poder de decisão, como o Conselho de Segurança da ONU ou o FMI. O G20, então, funciona como um espaço de diplomacia para angariar apoios nesse sentido, mas há disputas com outras forças que pretendem manter o status quo”6.
De acordo com Allison (2015)7, o atual momento do sistema internacional é, portanto, de profunda transformação geopolítica. A ascensão chinesa coloca em xeque a relativa estabilidade do sistema internacional do Pós-Segunda Guerra Mundial. A nova força econômica e financeira da periferia reflete em novas relações de poder no sistema internacional. A formação do G20, dos BRICS e a ascensão de líderes de países periféricos nos mais altos cargos de algumas organizações internacionais, como o brasileiro Roberto Azevedo e da nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, ex-diretor e atual diretora da Organização Mundial do Comércio, são exemplos dessa nova correlação de forças, ainda que a maioria das organizações internacionais reverbere a ordem do Pós-Segunda Guerra Mundial.
Em meio ao aumento do protecionismo, do acirramento de conflitos que estão em curso, entre Israel e Palestina e Rússia e Ucrânia, as transformações no sistema internacional vigentes e uma nova ordem global está sendo reconfigurada, em detrimento da ordem liberal forjada na segunda metade do século XX.
Entre as características principais desta nova ordem, destaca-se a revolução das tecnologias da informação, a ascensão chinesa, a contestação do poder hegemônico dos EUA e o aumento do prestígio e da proeminência dos países do Sul global. O G20, o BRICS, e outros fóruns multilaterais de negociação são parte deste processo e, certamente, terão papel relevante na ordem internacional que se estabelecerá ao longo deste século.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
- Pós-doutorando no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Membro do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da UnB. E-mail: vinicius.albino@unesp.br ↩︎
- https://www.rug.nl/ggdc/historicaldevelopment/maddison/releases/maddison-project-database-2020?lang=en. ↩︎
- IMF. GDP, current prices Billions of U.S. dollars. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/NGDPD@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD. ↩︎
- Number of Fortune 500 companies in selected countries worldwide from 2000 to 2023. Statista, 2024. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/1204099/number-fortune-500-companies-worldwide-country/. ↩︎
- WTO. Thirty years of trade growth and poverty reduction. 24 de abril de 2024. Disponível em: https://www.wto.org/english/blogs_e/data_blog_e/blog_dta_24apr24_e.htm. ↩︎
- https://www.jota.info/coberturas-especiais/g20-brasil/o-que-e-o-g20-e-qual-e-a-importancia-de-o-brasil-presidir-e-sediar-as-discussoes-do-grupo ↩︎
- ALLISON, G. The Thucydides trap: are the US and China headed for war? The Atlantic, v. 24, n. 9, 2015. ↩︎
Referência imagética: Wikimedia Commons. New Development Bank’s logo in the HQ of the bank in Shanghai. 25 nov. 2016. Fotografia de BB3015. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:NDB-HQ-LOGO.jpg>. Acesso em: 17 set. 2024.