Maria Amélia de Almeida Teles1
5 de agosto de 2024
A história do golpe de 1964, contada hoje devido a passagem dos seus sessenta anos, tem sido lembrada por alguns intelectuais da história, da sociologia, da política, que trazem reiteradamente, memórias de homens que resistiram à ditadura militar, uma das mais truculentas e sanguinárias da República brasileira, que durou por, pelo menos vinte e um anos (1964-1985).
No Brasil atual, o governo proibiu comemorações sobre o golpe de 1964, o que dificultou eventos nacionais de impacto popular. Mesmo assim, há manifestações democráticas, ainda que dispersas, reavivando o processo histórico e reivindicando a verdade sobre as violações de direitos, esclarecimentos e localização dos corpos de militantes que a ditadura torturou, matou e ocultou e até hoje não foi solucionado.
Quase nada se fala sobre as mulheres, como viviam e como reagiram ao golpe e enfrentaram a ditadura militar.
As gerações pós golpe/ditadura militar pouco conhecem sobre a história desse período. Não por falta de interesse e necessidade de conhecerem, mas sim pelo negacionismo histórico do Estado brasileiro, reafirmado frequentemente pelos seus mais diversos governantes.
O golpe militar de 1964 foi estrategicamente arquitetado desde o final da 2ª. Guerra Mundial, sob o comando dos Estados Unidos, por meio de seus serviços de inteligência e de suas forças militares. A pretexto de que o mundo estava sob ameaças de ataques “comunistas”, estabeleceu-se uma “divisão político-ideológica”, que ficou conhecida como “guerra fria” que, na prática, se traduzia assim: “capitalismo X comunismo”. Forças progressistas reagiam a essas divisões, lutaram pela paz mundial, apoiaram movimentos democráticos que visavam a independência e o desenvolvimento de países do hemisfério sul, até então, colonizados sob o domínio e a exploração do capital internacional.
O Brasil tem sido considerado um país-chave na estratégia de ampliar e aprofundar o capitalismo internacional em toda a América do Sul, sob o controle e o comando perverso dos Estados Unidos. O Brasil passou a ser, então, alvo de interferências diretas daquele país, no processo político nacional, com infiltração da CIA (Agência de Inteligência), da sua Embaixada, sendo o embaixador, Lincoln Gordon (1913 – 2009), um dos destaques especiais na preparação e realização do golpe militar de 1964 no Brasil. Sua participação está bem documentada no filme de Camilo Tavares, “O dia que durou 21 anos”, estreado em 29 de março de 2013.
Por seu imenso tamanho territorial, por seus recursos e riquezas naturais e por sua localização, tendo fronteiras com quase todos os países da região, exceto Chile e Equador, o Brasil foi o alvo principal dos Estados Unidos para consolidar sua estratégia imperialista, ao colocar em prática a sua perversa estratégia de implantação de ditaduras militares nos países da região.
Após a 2ª Guerra Mundial, oficiais brasileiros passaram a frequentar os cursos militares estadunidenses.
Em 1949, criaram a Escola Superior de Guerra (ESG), com a “expectativa de continuação da guerra ou de início de uma terceira… (…)” (Arquidiocese de São Paulo, Brasil Nunca Mais, Editora Vozes, RJ, 1985, p.69). Na verdade, esta iniciativa foi inspirada pela escola norte-americana “National War College”. De acordo com a pesquisa do Brasil Nunca Mais, “nos dez anos que vão de 1954 a 1964, a ESG desenvolveu uma política de direita para intervenção no processo político nacional”. (ibidem, p.70)
Criaram a Doutrina de Segurança Nacional, que a pretexto de combater o comunismo, adotou como questão fundamental, eliminar o “inimigo interno”, ou seja, qualquer pessoa do povo poderia ser considerada culpada ou criminosa ainda que não houvesse nenhuma prova de sua culpabilidade ou de sua participação em algum crime. Inverteu-se o ônus da prova. O princípio da inocência presumida foi banido do campo dos direitos e garantias individuais, enquanto a vítima inocente passou a ter a incumbência de provar não ter nenhuma culpa. Contrariou, de forma radical e arbitrária, os princípios do bem estar social. A prioridade da ditadura era a de que o Estado brasileiro investisse na produção de armamentos bélicos ao invés de garantir alimentação, saúde, educação, cultura e moradia para a grande maioria da população.
Para chegar a este ponto, fez-se o uso de uma escalada, com estratégias de intimidação à população que devia, então, temer acima de tudo o “perigo vermelho”. Destaco uma delas, a de caráter ideológico – religioso, com propagandas conservadoras e reacionárias, como a afirmação de que “os vermelhos ou comunistas são destruidores da família”, defendem “o amor livre, o aborto e o divórcio”, são contrários ao casamento, são promíscuos” e não respeitam as mulheres nem as crianças.
Foram intensas as investidas golpistas antes e depois do golpe. Fizeram campanhas, usando todos os meios de comunicação da época: rádio, tv, jornais e revistas impressos para espalhar o pânico e o terror junto à população. “Mais canhão e menos manteiga” era o lema defendido pelo General Golbery do Couto e Silva, um dos principais mentores intelectuais da ditadura militar. Aliás, esta ideia era copiada de Goering, o nazista fundador da Gestapo (polícia alemã de extermínio de judeus, comunistas, prostitutas, lésbicas e gays, deficientes físicos e mentais e comunistas durante a 2ª. Guerra Mundial). Para impor tal política, implantaram o terrorismo de Estado, com frequentes sequestros de mulheres, homens, jovens, adultos e crianças, as práticas de torturas e estupros, os assassinatos e o ocultamento de corpos de militantes políticos.
O projeto “Brasil Nunca Mais” – um dos marcos pioneiros na construção da memória, verdade e justiça, levantou, organizou e analisou mais de 700 processos contra militantes políticos tramitados no Superior Tribunal Militar (STM) e descreveu 283 diferentes formas de tortura utilizadas pelos aparatos repressivos da ditadura.
Antes mesmo do golpe, as mulheres – pobres, pretas e periféricas – foram submetidas a uma estratégia especial: um apelo de cunho ideológico-religioso que reforçou o argumento muito usado de que a vontade “divina” era a de ver as mulheres submetidas e subjugadas aos homens, levando-as às ruas, aos milhares, pelo Brasil a fora, com a realização das “Marchas com Deus, pela Família e Liberdade”, ocorridas nas diversas capitais e em alguns municípios.
Eles priorizavam as mulheres para depois atingirem o alvo principal que era os comunistas, democratas, sindicalistas, camponeses e lideranças das classes trabalhadoras.
Para atingi-los de forma incisiva, os golpistas valeram-se das mulheres, cooptando-as, invalidando, por um tempo significativo, o potencial do proletariado brasileiro, já que este foi e continua sendo, em sua maioria, feminino e negro2. Nenhuma categoria de trabalhadores vive sem o trabalho das mulheres e da população preta. Ao mesmo tempo que atacavam as lideranças políticas de esquerda, bloqueavam as mulheres e a maioria da população no sentido de impedir a participação política do povo. Com mensagens de grande alcance intimidavam, desvalorizavam as mulheres e os segmentos historicamente oprimidos.
Como chegamos a este ponto?
Tudo isso foi paulatinamente construído sem que as forças políticas progressistas se dessem conta do perigo que se aproximava. O pensamento generalizado junto a essas forças era o de que: “As mulheres são menos politizadas pois ficam muito envolvidas com os assuntos menores, os domésticos. Só tratam da micropolítica, não enxergam a macropolítica”.
Secundarizaram as questões das mulheres. Quando protestavam e reclamavam, eles respondiam de forma categórica: “essas questões só serão resolvidas após a revolução”. O mesmo foi feito com a população negra, quando, os políticos da época, mesmo os progressistas, entendiam como um aspecto meramente econômico, sem perceberem que o racismo também é um entrave social, político, cultural e econômico para toda a sociedade. Alguns acreditavam na “democracia racial”, tão apregoada pelos militares e as elites brasileiras.
O pós 2ª. Guerra Mundial e o fim do Estado Novo (1937 – 1945), trouxe a anistia aos perseguidos políticos e a Assembleia Nacional Constituinte, graças às lutas das mulheres, que mais tarde criaram a Federação das Mulheres do Brasil.
A nova constituição de 1946 – considerada a mais democrática até então, contou com a participação de deputados constituintes comunistas. Não contou, entretanto, com nenhuma mulher na condição de deputada. O princípio da igualdade entre os sexos não foi sequer mencionado, ainda que formalmente.
Em 1957, dez anos mais tarde, o governo Juscelino Kubitschek (1957 – 1960) suspendeu o funcionamento das organizações de mulheres progressistas, feministas e comunistas, articuladas na Federação de Mulheres do Brasil a pedido das senhoras católicas (Saffioti, 2013, p. 387). Os homens progressistas e comunistas não se manifestaram.
Se os dirigentes políticos de esquerda não reagiram à mordaça imposta às mulheres, a extrema direita não perdeu tempo. Tratou de ludibriá-las e passou a incentivar a criação de organizações femininas com a finalidade de usá-las, como base social para legitimar o golpe contra o governo João Goulart, que seria dado em seguida.
Tudo isso feito sob os olhares perplexos da população. Entidades financiadas pelos Estados Unidos, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto de Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), sistematizavam estudos e pesquisas sobre os diversos segmentos da população com o objetivo de formular e implementar estratégias de controle e de intimidação da opinião pública.
As mulheres, incumbidas de criar e mobilizar as organizações ditas femininas, eram da classe média alta, consideradas brancas, e na maioria “cristãs”. O historiador, René Dreifuss (1945 – 2003), que estudou sobre as estratégias golpistas contra o governo João Goulart afirmou que:
A mais significativa conquista do IPES no campo da mobilização política e ideológica consistia na utilização das classes médias como nova clientela política e o desenvolvimento de meios para mobilizá-las, com êxito, como uma massa de manobra, efeito que os partidos e frentes políticas não se dispuseram ou se capacitaram a alcançar. A mobilização das classes médias conferia a aparência de amplo apoio popular à elite orgânica e a mídia coordenada pelo IPES proporcionava grande cobertura às atividades dessas classes médias mobilizadas. Na atmosfera como ponto de referência para a identificação da legítima pressão popular. [Além de tudo], o que o IPES viu como uma de suas conquistas de maior êxito foi a ‘descoberta’ dos grupos femininos de pressão, tão ampla e eficazmente usados dez anos mais tarde contra o governo constitucional de Salvador Allende, no Chile, e para os quais a experiência forneceu o modelo. (Dreifuss, 1981, apud Codato e Oliveira, 2004, p.208)
O golpe de 1964 usou e abusou de uma falsa ideia de que o povo teria aderido aos golpistas. Prevaleceu a estratégia de que em defesa da segurança nacional, eliminam-se as garantias constitucionais, a liberdade, os direitos da pessoa humana. Com a instalação da ditadura militar brasileira assegurada, inicia-se um novo ciclo de ditaduras nos países da região.
Claro que as mulheres recuperaram, de uma certa forma, os danos sofridos. Participaram de forma expressiva dos movimentos de resistência, inclusive na luta armada. Tornaram-se protagonistas das lutas por liberdades políticas, como a Anistia e a Constituinte. Denunciaram publicamente as torturas, assassinatos e desaparecimentos dos corpos de militantes políticos. Deram o troco e conseguiram quase quatro décadas depois eleger uma mulher para Presidenta da República, Dilma Rousseff, que foi guerrilheira, presa política, torturada pelo Coronel do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932 -2015), o único agente do estado ditatorial declarado torturador pela justiça brasileira.
No entanto, no decorrer dos sessenta anos do golpe militar, em 2016, houve outro golpe de Estado contra a Presidenta Dilma Rousseff, eleita pela segunda vez, pelo voto popular. Um golpe de caráter misógino com apologia à tortura. Um golpe com a adesão do Parlamento e das demais instituições. Quando se votou pela abertura do processo de impeachment contra, na Câmara de Deputados, no dia 17 de abril de 2016, o então deputado federal, Jair Bolsonaro, votou a favor do processo de “impeachment”, fazendo apologia da tortura. Com as palavras: “em homenagem à memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra (o torturador), o pavor de Dilma Rousseff.” Nenhum parlamentar pediu uma questão de ordem já que acabava de acontecer uma ofensa grave ao estado democrático de direito: Tortura é crime de lesa-humanidade. Ali foi consolidado o golpe de 2016.
Mais recentemente, em 8 de janeiro de 2023, houve mais uma tentativa de golpe de Estado, com as invasões às sedes do Executivo, do Congresso Nacional e do Superior Tribunal Federal, a suprema corte do país. Assistimos pela televisão cenas de horror, vandalismo, depredação do patrimônio público, enfim cenas de violência. Os que praticaram tais atos de barbárie, eram pessoas que se encontravam acampadas em frente aos quarteis das Forças Armadas, e, com o apoio destas. Não fosse a Janja |(Rosângela Lula da Silva), esposa do Presidente Lula, que alertou às autoridades, inclusive o atual Presidente da República, para que não se aplicasse a Lei Garantia da Lei e da Ordem, possivelmente o golpe teria sido efetivado.
Para concluir, pergunto:
É possível enfrentar a extrema direita golpista ignorando o protagonismo das mulheres progressistas, feministas e democratas?
É possível consolidar a democracia sem remoer o passado?
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. 19ª. Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1985.
CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A marcha, o terçoe o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964. Revista Brasileira de História,v.24, p.271-302, 2004.
PARKS, Letícia. Entrevista concedida a Opera Mundi. 8 de abr. 202. Disponível em https://operamundi.uo.com.br/20-minutos/leticia-parks-proletariado=brasileiro-e-feminino-e-negro/.Acesso em 12 jul.2024.
Safiotti, Heleieth. Mulher na sociedade de classe: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
TELES, Maria Amélia de Almeida, Breve História do Feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Editora Alameda, 2017.
- Maria Amélia de Almeida Teles, conhecida como Amelinha Teles, nasceu em 6 de outubro de 1944, em Contagem, Minas Gerais. Iniciou sua militância política no PCB, em 1960, influenciada pelo pai. Presa pela primeira vez em 1964 após o golpe militar, viveu na clandestinidade a partir de 1965 e aderiu ao PcdoB em 1968 com sua irmã Criméia que se tornou guerrilheira após a edição do AI- 5 (Ato Institucional no. 5), conhecido como o golpe dentro do golpe ou a ditadura dentro da ditadura. Casou-se com César Augusto Teles (1944-2015) e juntos trabalharam na imprensa do partido. Em 1972, foi presa novamente pela Operação Bandeirante ou DOI-Codi. Passou por diversos presídio na capital paulista por cerca de 10 meses. Após ser libertada se integrou aos movimentos feministas e de mulheres e na busca por justiça aos mortos e desparecidos políticos. Integra à União de Mulheres de São Paulo e é uma das coordenadoras do Projeto Promotoras Legais Populares. Integra também a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Atuou na Comissão do Estado de São Paulo “Rubens Paiva, entre outras. ↩︎
- Leticia Parks, em entrevista ao Opera Mundi, em 8 de abril de 2022, afirmou que o proletariado brasileiro é majoritariamente feminino. Disponível em: https://operamundi.uo.com.br/20-minutos/leticia-parks-proletariado=brasileiro-e-feminino-e-negro/.Acesso em 12 jul.2024. ↩︎
Referência imagética: Wikimedia Commons. Artistas protestam contra a Ditadura Militar – Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker. Fotografia do Correio da Manhã, 1968. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Artistas_protestam_contra_a_Ditadura_Militar_-_T%C3%B4nia_Carreiro,_Eva_Wilma,_Odete_Lara,_Norma_Bengell_e_Cacilda_Becker_-_Restoration.jpg >. Acesso em: 12 jul. 2024.