Christian Edward Cyril Lynch[1]
Desde 2013 foi dada a senha para o desmonte da Nova República, diante da crise de legitimidade da classe política depois de anos de percepção de padrão, digamos, “não-republicano” do presidencialismo de coalizão que sustentava o regime. O descrédito atingiu inicialmente o poder legislativo e se estendeu ao poder executivo. O que se seguiu foi uma “Revolução Judiciarista”, por que se processou a depuração das principais cabeças do regime, por prisão ou proscrição eleitoral: Lula, Dilma, Temer, Eduardo Cunha etc. Depuração que, encabeçada pela Lava Jato e apoiada do alto pelo Supremo Tribunal Federal e pela Procuradoria Geral da República, baseou-se em uma reinterpretação das regras que regiam o jogo político por meio de jurisprudência e doutrina, que deixaram assim de tolerar o que vinha sendo tolerado havia vinte anos. A polêmica ficou por conta do fato de que, na prática, as mudanças na interpretação da lei tiveram sobre os atingidos o efeito prático da aplicação de leis retroativas em matéria penal. O resultado da anarquia resultante da “revolução” e de ilegitimidade política por tantos anos seria, claro, a eleição para presidente de um “Bonaparte”, ou seja, de um outsider crismado pela popularidade, dotado de um discurso de autoridade, isto é, comprometido com o restabelecimento da ordem e da honestidade política, a cujo prestígio se inclinariam o legislativo e o judiciário. O establishment político partidário tentou se antecipar a esse resultado indesejável, buscando inviabilizar ou desidratar as candidaturas dos Joaquins Barbosas, dos Lucianos Hucks, dos Ciros Gomes, em prol de outros do próprio sistema, como Geraldo Alckmin. A porta só não foi fechada a Bolsonaro porque nunca se acreditou que ele tivesse chances de vitória. Nem ele próprio, aliás. Apresentando-se ao mesmo tempo como o oposto do sistema, tanto em termos ideológicos (conservadorismo) como históricos (o regime militar que o antecedeu), Bolsonaro foi eleito em razão do voto de protesto contra a tentativa de trancamento do sistema das elites políticas, que acabaram em larga medida varridas de suas antigas posições de domínio. O atual governo, em seu nono mês, já dá alguns sinais de ter estabelecido um padrão ostensivo de governança diferente do velho presidencialismo de coalizão da Nova República. Este pequeno ensaio em duas partes tenta descrever a teoria de ação por ele adotada nos seus primeiros oito meses, sem qualquer pretensão de examiná-lo em sua totalidade.
1. Tempos anômalos, governo anômalo
Quanto ao modo pelo qual o governo Bolsonaro parece se conduzir pelo menos desde junho, quando parece ter se estabilizado, é preciso lembrar, pois, que não se trata de um governo normal em tempos normais. Governos normais, eleitos em tempos de rotina republicana, são ancorados em maiorias parlamentares e balizados pelas instituições e valores constitucionais. Do ponto de vista político, tendem ao centro, sejam de direita ou esquerda; do ponto de vista administrativo, eles corrigem, expandem ou melhoram o existente, a fim de se manter no poder. Para isso lançam mão dos quadros de seus partidos, que presidem e aproveitam a burocracia técnica que serve ao Estado. Governos normais são compreendidos dentro dos modelos institucionalistas de ciência política, em que o mote segundo o qual “as instituições estão funcionando” não é diagnóstico, é pressuposto. Ocorre que, conforme referido, o governo Bolsonaro não é um governo normal, nem normais são os tempos que correm. Por isso ele nos aparece tão singular ou insólito no seu cotidiano e sua análise exige, portanto, mais criatividade e interpretação. As principais causas dessa singularidade do governo Bolsonaro são três.
Em primeiro lugar, é um governo que assume depois da depressão econômica e da terra arrasada da classe política provocada pela “Revolução Judiciarista” que, na esteira da desmoralização do sistema, liquidou o regime da Nova República. O Bolsonarismo encontra as instituições frágeis, vacilantes, conflagradas por dentro, diante de uma crise econômica imensa. Por outro lado, é um governo que quer se demarcar das práticas governativas anteriores, sendo desrespeitoso ou deliberadamente ignorante das liturgias e práticas estabelecidas. Ele se pretende abertamente disruptivo e nesse sentido é “revolucionário”. Fator que o faz potencialmente autoritário e interessado em explorar as fragilidades institucionais. A situação poderia abrir espaço para um governo bonapartista, no qual um chefe carismático tentasse reunificar a nação com discurso de conciliar autoridade e progresso. Mas não foi o que aconteceu, pela razão abaixo. Segundo, em aparente paradoxo com o ponto anterior, o atual governo se acha na extrema direita do espectro político e ostenta um caráter reacionário inédito na história do Brasil; que deseja declaradamente fazer 50 anos em 5 para trás. Trata-se assim, do ponto de vista ideológico, de um governo animado por um espírito de “revolução”, é certo, mas de uma “revolução reacionária” voltada para o restabelecimento da autoridade, da hierarquia, da religião, contra valores libertários e igualitários. Então, ele deseja pôr abaixo o mundo que a Constituição de 1988 criou e encontra terreno propício para isso na fragilidade das instituições. Por isso Bolsonaro não desejou, nem pôde adotar um figurino bonapartista. Um Bonaparte é autoritário, mas não é reacionário; ele agrega, ao invés de polarizar. Terceiro, é um governo que, ao contrário daqueles do PT e do PSDB, assumiu sem ter pessoal ou quadros administrativos. Chegaram ontem da poeira da estrada, como uma pequena trupe de circo: um deputado de baixo clero com pinta de apresentador de programa policial; seus três filhos com ares de galos de rinha; um general boquirroto de pijama; um ex-ator pornô; um príncipe destronado e um filósofo amador fugido da justiça. Só. O pessoal administrativo que poderia ampará-lo era aquele no regime militar, mas, depois de 30 anos sem conservadorismo assumido no Brasil, sua maioria já estava morta ou inválida pela idade avançada. Então será preciso organizar esse “partido” com sua respectiva administração, de modo autoritário e com base na intimidação, aproveitando o estado de acossamento das instituições republicanas.
2. As diretrizes de um governo anômalo
Creio que essas características e circunstâncias explicam as linhas gerais da estratégia adotada até agora pelo governo Bolsonaro e o consequente padrão governativo por ele desenvolvido em substituição ao tradicional presidencialismo de coalizão. Essas linhas gerais de ação estratégica do governo Bolsonaro tem sido quatro. Em primeiro lugar, um governo de ruptura reacionária, carente de raízes, precisa, primeiramente, formar pessoal devotado, assustar os dissidentes e destruir os concorrentes. Daí os ataques virulentos ao vice-presidente, ao governador de São Paulo (aí incluindo a pernada simbólica da transferência do GP de F1 de volta ao Rio); as rusgas intermitentes com o Witzel; e a expulsão do Alexandre Frota do partido governista. A necessidade de deitar raízes explica igualmente o festival de asneiras e bofetadas na consciência jurídica do país, destinadas a colocar Bolsonaro diariamente como exclusivo protagonista midiático da vida política brasileira (até o Lula sumiu). A militância mantém-se acesa, e com ela, o clima de histeria e polarização indispensável à rotinização do radicalismo: “Quem não está comigo está com a esquerdalha comunista e corrupta”. A política externa segue a mesma linha: são amigos só os governos radicais de direita, que fazem parte da Internacional Direitista e Steve Bannon e companhia. Os demais, inimigos ou concorrentes. Tudo é apresentado polarizado em preto e branco; o centro liberal fica esmagado.
Na falta de um partido consolidado que lhe providencie pessoal administrativo, Bolsonaro eleva sua própria família (os três filhos galos-de-rinha e seus amigos) à condição de núcleo de confiança suprema da presidência. A fidelidade a essa camarilha familiar é o critério a partir do qual o presidente organiza o seu próprio partido de cima para baixo. Assim, se a base da administração tem que ser entregue em um primeiro momento aos militares, eles só podem ficar no governo subordinados ao “partido familiar” (o que explica a demissão de Santos Cruz). É o que explica também o nepotismo explícito na tentativa de nomear Eduardo Bolsonaro embaixador em Washington ou chanceler se a indicação falhar. Ou o compadrio de desejar nomear gente amiga dos filhos ou parentes. O prestígio da família como instituição começa com a própria e tudo é personalizado. Valores como república e pluralismo são banidos como espectros anacrônicos típicos de um tempo subversivo. Do ponto de vista ideológico, o “partido familiar” segue a interpretação do Brasil elaborada pelo Olavo de Carvalho, referência máxima do bolsonarismo enquanto ideologia de neo-reacionarismo popular. Mas esse movimento de cima para baixo não basta para formar um grupo de apoio sólido. O governo precisa ampliar seu pessoal de baixo para cima, cooptando-o da sociedade civil. A perseguição à imprensa, os expurgos na administração do INPE, no MEC; a lambada na ANCINE são movimentos que desempenham duas funções. A primeira é a de reafirmar a autoridade do governo conforme seu radicalismo reacionário e advertir os subordinados para que não alimentem veleidades de crítica. A segunda tem por fim incentivar os moderados a aderirem ao radicalismo, abraçando o governo com manifestações de apoio. Ou seja, se tornam oportunidades para o adesismo. É assim que Bolsonaro formará o seu pessoal e aparelhará o Estado, através desses dois movimentos: um de cima para baixo e o outro, de baixo para cima. A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração. O chanceler Araújo foi primeiro a dar o exemplo do mais escancarado adesismo, e são as vacilações do Moro em seguir o mesmo caminho de adesão irrestrita que estão criando fissuras entre ele e o chefe.
O contexto de ruptura reacionária com a rotina progressista da Nova República e a exigência de construção de um verdadeiro “partido” no sentido gramsciano, com pretensões hegemônicas e duradouras no campo da extrema direita, explica por sua vez o pouco caso com as instituições e valores herdados de 1988-1994. O clima de terra arrasada deixou as instituições fragilizadas, e elas ainda estão acossadas pela desmoralização sistêmica denunciada pelo “judiciarismo”. Esse acossamento favorece, por parte do governo, uma postura de antagonismo belicoso em relação ao legislativo e ao judiciário, que visa a mantê-los acuados. No STF, a tática funciona desde o ano passado, com o Ministro Toffoli “negociando a constitucionalidade”, para usar a expressão do Conrado Hübner Mendes, e buscando atender a pauta de proteção ao “partido familiar” sob o argumento de ser a Corte um “poder moderador” (expressão que quer dizer muitas coisas, inclusive antagônicas). No Congresso, a estratégia é governar por decreto e desferir caneladas na “corrupta classe política” a fim de atemorizar os opositores ou as veleidades de dissidência. Na PGR, a Dodge teve a ilusão de que bastaria seguir o método que seguiu com o Temer: contemporizar ou fazer a egípcia. Com Bolsonaro o buraco é mais embaixo: adesão total ou nada. A intenção é a de aparelhar o tanto quanto possível as instituições de controle ou de regulação, autarquias e agências, numa extensão que o PT nunca quis ou conseguiu. Ao contrário do Temer, Bolsonaro não tem qualquer escrúpulo institucional: quer “procurador da República meu”; “ministro do STF meu”; “Lava Jato minha”; “Reitor meu”, etc. Sem expectativa de fidelidade canina a ele e ao “partido familiar”, as cabeças rolam, as fontes de dinheiro secam; investigações são abertas; assassinam-se moralmente reputações etc. É como na República Velha: aos amigos pão, aos inimigos pau.
Conclusão
Este parece ser, em traços muito gerais, o modelo governativo do bolsonarismo. Ele veio com um ânimo decidido para fincar raízes na política e na sociedade brasileira, explorando o que ela herdou de pior da colonização: o autoritarismo, a hierarquia mantida pela violência, a exploração predatória da natureza, a boçalidade intelectual, o sadismo a respeito dos mais fracos, o personalismo, o nepotismo etc. Fazem parte do seu arsenal de guerra política a intimidação, o espírito de vingança, a perseguição e o exercício da violência psicológica. Nem por isso deixo de reconhecer que a estratégia do governo parece funcionar na maior parte do tempo. São os males atávicos da sociedade brasileira que lhe servem de vento para singrar por entre os destroços das instituições republicanas.
[1] Cientista político, professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Referência imagética: Toni D’Agostinho (https://www.instagram.com/p/B2d4bq2nni2/).