Laura Schneider[1]
Marina Oliveira[2]
17 de setembro de 2025
O texto a seguir corresponde à divulgação do artigo homônimo, publicado pelas autoras na edição mais recente da revista Conjuntura Austral, disponível aqui.
O cenário de emergência climática tem exigido a construção de novas políticas ambientais não apenas para governos, mas também para empresas ao redor de todo o mundo. Na China, esse movimento tem sido guiado pelo Estado a partir da construção de sua proposta de Civilização Ecológica, que incorpora aspectos ambientais, sociais, políticos, econômicos e culturais para a construção de uma política ambiental transdisciplinar. Essa iniciativa evidencia a relevância estratégica da busca por sustentabilidade ambiental para o país, considerando tanto a manutenção da vida humana e da natureza como o seu processo de crescimento e desenvolvimento socioeconômico.
Essa estratégia é especialmente importante para a questão agroalimentar chinesa, já que o país é hoje o maior produtor agrícola em valores totais brutos (em dólares), somando 1,6 trilhão de dólares em 2023. Apesar do crescimento exponencial dos últimos anos, o setor agrícola enfrenta desafios importantes, principalmente relacionados ao meio ambiente. A poluição das terras aráveis pelo uso excessivo de insumos químicos é hoje considerada um dos principais problemas para a segurança alimentar do país, e a busca por tecnologias e desenvolvimento científico agrícola é entendida como essencial para uma produção agroalimentar sustentável (Bispo; Martins; Cechin, 2023).
No artigo “O impacto da proposta chinesa de Civilização Ecológica no Sistema Agroalimentar: uma análise da experiência da COFCO International”, publicado na Conjuntura Austral v. 16 n. 74 (2025), buscamos responder como a proposta de Civilização Ecológica pode ser observada nas políticas chinesas para o sistema agroalimentar a partir da experiência da COFCO International, gigante estatal do agronegócio chinês.
Nesse sentido, analisamos de que forma a noção de Civilização Ecológica é incorporada nas políticas da COFCO a partir de uma análise documental dos Relatórios de Sustentabilidade da empresa, disponibilizados ao público entre 2017 e 2023. Com base nas categorias de análise utilizadas – construídas a partir da literatura sobre a proposta de Civilização Ecológica – observou-se a prevalência das políticas com foco na avaliação dos funcionários públicos e uma insuficiência das políticas fiscais para o caso da COFCO.
A proposta de Civilização Ecológica
Inserido na Constituição do Partido Comunista Chinês em 2012, o termo Civilização Ecológica marca uma mudança na estratégia nacional para o enfrentamento dos impactos ambientais. Adotando uma abordagem que incorpora também aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais, o governo chinês vem promovendo uma série de reformas administrativas nas instâncias locais, regionais e nacionais, compreendendo a necessidade de integração e articulação dessas políticas.
O termo representa, portanto, um alinhamento entre desenvolvimento econômico, sustentabilidade ambiental e bem-estar social, projetando um “futuro socialista-ecológico com características chinesas”, viabilizado por avanços tecnológicos, controle social e maior conscientização ambiental da população (Hansen; Li; Syaryerud, 2018; Xi, 2018). Para concretizar a virada para essa nova civilização, o governo chinês tem implementado uma série de reformas administrativas, que podem ser sistematizadas em três categorias: (1) reformas do sistema político governamental; (2) reformas de políticas fiscais; e (3) reformas do sistema de avaliação dos funcionários públicos. Essas três frentes são parte estrutural da conceituação da proposta, uma vez que é por meio delas que essa ideia se materializa no território chinês (Gu et al., 2020).
As reformas no sistema político chinês visam ampliar a integração entre governos locais, regionais e nacionais, evitando que interesses econômicos e acordos territoriais de agências ou atores privados comprometam a aplicação das leis ambientais – o que constitui um dos principais obstáculos à consolidação de políticas nessa área. Embora o governo central já definisse diretrizes e legislações relacionadas a direitos humanos, meio ambiente e empresas, alianças históricas entre autoridades locais e setores econômicos dificultavam sua execução efetiva (Gu et al., 2020). Nesse contexto, busca-se criar canais de diálogo e coordenação entre diferentes atores da governança ambiental, incluindo órgãos públicos, empresas, movimentos sociais, universidades e ONGs.
Já as políticas vinculadas às reformas fiscais pretendem tornar a tributação sobre recursos naturais mais equitativa, reconhecendo sua escassez e valor estratégico. No caso dos minerais, por exemplo, propõe-se calcular o imposto com base no preço e não apenas na quantidade extraída, o que também se relaciona a políticas de redistribuição de renda e redução das desigualdades. Por fim, reformas no sistema de monitoramento de servidores públicos estabelecem critérios para avaliar o desempenho de autoridades locais, prevendo recompensas e punições conforme o cumprimento das normas ambientais, fortalecendo a transparência e a responsabilização na gestão governamental (Gu et al., 2020).
Apesar de sua inovação no que tange à integração de políticas ambientais estruturantes, a proposta de Civilização Ecológica é recente e ainda não há elementos suficientes para afirmar que se trata de uma revolução ecológica, especialmente pela dificuldade de conjugar o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental na mesma equação. Ainda assim, tais políticas têm se mostrado bastante eficientes para melhoria de índices ambientais na China (Hansen et al., 2018). Ao integrar ações locais, regionais e nacionais, a proposta de Civilização surge como um caminho interessante para a busca de transformações estruturantes para a questão ambiental chinesa.
A China no sistema agroalimentar internacional: o papel da COFCO International
O sistema agroalimentar incorpora uma série de atores e instituições envolvidos em todas as etapas da produção alimentar, desde o cultivo até o processamento, circulação e consumo dos bens agroalimentares (Escher; Wilkinson, 2019). Com base nesse conceito, a China é hoje um dos principais centros de poder desse sistema, uma vez que produz, comercializa e consome grande parte dos alimentos do mundo. Seguindo uma tendência mais ampla de corporativização, as empresas chinesas do setor são também atores relevantes para compreender as transformações do sistema agroalimentar internacional contemporâneo. E é por essa razão que analisamos o caso da COFCO como símbolo da incorporação da proposta de Civilização Ecológica na questão agroalimentar chinesa.
Sendo a maior processadora, fabricante e comerciante de alimentos da China, a COFCO tem sua história intrinsecamente conectada com a criação do Estado chinês contemporâneo e sua estratégia de going out. Criada logo após a Revolução Chinesa, em 1949, a empresa tinha como objetivo inicial administrar exportações e importações de alimentos no país. Com o passar do tempo, expandiu-se para diferentes frentes de atuação e hoje é responsável pela originação, transporte, investimento e desenvolvimento internacional do agronegócio chinês. Assim, tem como objetivo se tornar “uma empresa líder na cadeia de fornecimento agrícola verticalmente integrada, abrangendo armazenamento, processamento, logística, comércio e distribuição, e as principais commodities agrícolas, incluindo soja, milho, trigo, cevada e açúcar” (COFCO, 2024, n. p.).
Destino de um número recorde de subsídios por parte do governo chinês, a estatal tem investido também cada vez mais em sua agenda ambiental. É interessante notar que, ao mesmo tempo que este investimento está atrelado à estratégia ambiental chinesa, essa virada ecológica se vincula também à necessidade de competir no mercado internacional contemporâneo (Wesz; Escher; Fares, 2023). A COFCO se destacou, nos últimos anos, como a primeira do setor a conseguir empréstimos Green, Social and Sustainability Loan (GSS), além de ser pioneira em acordos de compra e venda de cargas de soja livres de desmatamento, realizados pela primeira vez em 2024.
Principais resultados
Após a análise dos Relatórios de Sustentabilidade da COFCO disponíveis até o momento da pesquisa, referentes aos anos entre 2017 e 2023, identificamos 20 políticas/iniciativas principais realizadas pela empresa, passíveis de vinculação à proposta de Civilização Ecológica. Dentre elas, destacam-se a Política Ambiental, publicada em 2017, que estabelece as diretrizes para a ação ambiental da COFCO, e a Política de Fornecimento Sustentável de Soja e Óleo de Palma, publicadas em 2017 e 2018, respectivamente. Essas políticas exigem que fornecedores agrícolas estejam em conformidade com as normas ambientais, trabalhistas e de segurança adotadas pela empresa, garantindo o monitoramento e a avaliação de todo o processo.
A partir das categorias utilizadas para o entendimento da proposta de Civilização Ecológica – (1) reformas do sistema político governamental; (2) reformas de políticas fiscais; e (3) reformas do sistema de avaliação dos funcionários públicos – identificamos uma notável prevalência de políticas ligadas à categoria reformas do sistema de avaliação dos funcionários públicos em relação às demais, evidenciando o foco no controle de qualidade de serviços e produtos. As reformas do sistema político governamental se destacaram pela inserção da COFCO em fóruns e iniciativas internacionais, reforçando sua relevância na governança agrícola global e no debate climático. Já as reformas fiscais mostraram-se limitadas, sem avançar em mecanismos de tributação mais justa dos recursos naturais, enquanto os investimentos comunitários e em formação revelaram caráter paliativo, apesar de alguns resultados positivos em capacitação e transferência de tecnologia. Embora os documentos analisados sejam da própria empresa e, por isso, não estejam isentos de viés, foi possível identificar uma evolução de metas e práticas ambientais. Ainda que a proposta chinesa de Civilização Ecológica seja recente e esteja cercada de incertezas, a investigação realizada busca abrir caminhos para um debate mais atento à atuação do país na pauta ambiental internacional.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
BISPO, Scarlett Q. Almeida; MARTINS, Márcia M. Viana; CECHIN, Alicia. Políticas agrícolas chinesas: fome, transformações e perspectivas. Revista de Política Agrícola, v. 32, n. 1, p. 56, 2023.
COMUNICAÇÃO COFCO. Relatório de Transparência e Igualdade Salarial – COFCO INTL. Flipsnack, 29 mar. 2024. Disponível em: <https://www.flipsnack.com/FB895D9C5A8/relat-rio-de-transpar-ncia-e-igualdade-salarial-cofco-intl.html>. Acesso em: 23 jul. 2024.
ESCHER, Fabiano; WILKINSON, John. A economia política do complexo Soja-Carne Brasil-China. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 57, p. 656-678, 2019.
FAO. FAOSTAT: Compare Data. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2025. Disponível em: < https://www.fao.org/faostat/en/#compare>. Acesso em: 15 ago. 2025.
GU, Yifan; WU, Yufeng; LIU, Jianguo; XU, Ming; ZUO, Tieyong. Ecological civilization and government administrative system reform in China. Resources, Conservation & Recucling, 2020. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344919305609 >. Acesso em: 20 mai. 2024.
HANSEN, Mette; LI, Hongtao; SYARYERUD, Rune. Ecological civilization: Interpreting the Chinese past, projecting the global future. Global Environmental Change, 2018. Disponível em: < https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959378018304448 >. Acesso em: 20 mai. 2024.
XI, Jinping. The Governance of China (English Version). Foreign Language Press: Beijing, ed. 2, 2018.
WESZ, Valdemar João J; ESCHER, Fabiano; FARES, Tomaz Mefano. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. The Journal of Peasant Studies, v. 50, n. 4, p. 1376-1404, 2023.
[1] Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2025). Analista de Desenvolvimento da Fundação Dom Cabral. Email: lauraslima6@hotmail.com
[2] Professora Substituta do curso de Graduação em Relações Internacionais da PUC-Minas. Doutoranda e Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2022). Email: marinapaulaoliveira@gmail.com
Fonte imagética: HU, Xuejun. Parque Rihu e paisagem circundante, Ningbo (Zhejiang, China). Diário do Povo Online, 10 maio 2023. Disponível em:<https://portuguese.people.com.cn/n3/2023/0510/c309806-20016630.html.> Acesso em: 22 ago. 2025.