Andrei Koerner[1], Carla Vreche[2], José Augusto Lindgren-Alves[3] e Matheus Carvalho Hernandez[4]
Introdução
O Núcleo de Direito e Direitos Humanos (NDDH) faz parte da iniciativa do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) de organizar seus pesquisadores em núcleos temáticos que se dedicam a refletir e atuar sobre os desafios da democracia no capitalismo contemporâneo.
O NDDH conjuga pesquisadores de duas temáticas afins: a de estudos sócio-políticos sobre o direito e tribunais e a de direitos humanos.
Integram inicialmente o NDDH: Andrei Koerner (coordenador), Carla Vreche (coordenadora-adjunta), José Augusto Lindgren Alves e Matheus de Carvalho Hernandez. Serão convidados outros pesquisadores, associados ou não ao CEDEC, que atuem nas áreas do Núcleo ou tenham interesse em se incorporar a ele.
As atividades previstas para os anos de 2021 e 2022 envolvem a organização de seminários e outros eventos para o diálogo e reflexão voltados a uma agenda de pesquisas sobre os direitos humanos na atualidade. Elas são realizadas em parceria com grupos afins, tanto os demais núcleos do Centro quanto de outras instituições. O projeto do Acervo Digital que atualmente está em implantação no CEDEC também integra as atividades do NDDH.
No segundo semestre de 2021, o NDDH organizou duas atividades em parceria:
– Curso aberto sobre Instituições judiciais, política e sociedade no Brasil, em parceria com o Instituto Lula e o Centro de Estudos Internacionais e de Política Contemporânea (CEIPOC) -IFCH/Unicamp, coordenado por Andrei Koerner. O curso foi realizado em agosto e setembro de 2021. Os vídeos das sessões estão disponíveis no site do Instituto e também no seu canal do Youtube.
– Evento sobre a memória institucional das políticas federais para os direitos humanos desde a redemocratização, realizado no dia 01/10/2021, em parceria com o Grupo de Pesquisas em Direitos Humanos, Memória e Democracia (GPDH) do IEA/USP. O evento faz parte do Ciclo de Memória Institucional do GPDH que ocorre em 2021 e 2022. A proposta é a de convidar os responsáveis (secretários, ministras e ministros) pelas políticas de direitos humanos para um relato e balanço das políticas adotadas a partir da transição, assim como a apreciação das ações contrárias a elas tomadas pelos governos federais desde 2017. O encontro foi finalizado com a leitura e divulgação de um manifesto coletivo sobre a agenda de direitos humanos do governo federal a ser eleito no final de 2022. As informações sobre o evento podem ser acessadas no site do IEA. O vídeo está disponível também no site do Instituto e no seu canal do Youtube.
Ainda se prevê a organização de um evento sobre o tema das identidades ou diferenças comunitárias e democracia. O objetivo é discutir as concepções de direitos dos movimentos identitários, suas formas de ação, potencialidades e obstáculos, bem como as suas relações com outros movimentos sociais e com os partidos políticos. Assim, procurar-se-á definir uma agenda de pesquisa para a ação conjunta, na qual se explorará a maneira pela qual é possível – e necessário – integrar formas diversas de ação política multifocal pelos direitos na luta comum em defesa da democracia contra os ataques proto-fascistas atuais e futuros.
Justificação
De um ponto de vista substantivo, as atividades propostas colocam-se no quadro das discussões sobre os desafios da democracia contemporânea. A crise econômica de 2015-6 desdobrou-se num período duradouro de estagnação, aumento das desigualdades e crescimento da pobreza absoluta, agravados pelas políticas de corte neoliberal, de forma particularmente errática, adotadas pelos governos Temer e Bolsonaro. Essa situação se deteriorou ainda mais com a pandemia e não há horizonte visível para sua superação.
O cenário internacional, apesar da derrota eleitoral de Donald Trump em 2020, permanece desfavorável, com a permanência de grupos e lideranças conservadoras e de extrema-direita em vários países, além das tensões políticas crescentes entre o governo norte-americano e a Rússia e a China. A curto prazo, como demonstrou a COP26 de Glasgow, é baixa a probabilidade da retomada de um movimento vigoroso de apoio dos Estados às instituições multilaterais e às políticas internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.
No Brasil, as perspectivas são ainda bastante sombrias. O apoio das elites e da classe média ao golpe parlamentar de 2016 e à candidatura de Bolsonaro em 2018 continua, com algumas defecções, durante esses quase três anos de governo. Indiferentes às reiteradas ameaças de violações à Constituição e à democracia, mas também a qualquer padrão de decência na vida pública e de tolerância na vida social, Bolsonaro ganhou um apoio de maior solidez no Congresso por seus gestos de atração para os políticos do “centrão”. Esse ato aparentemente estapafúrdio é apoiado por um movimento popular que mostra (ou ao menos começa a mostrar) sua força nas ruas, em manifestações de apoio incondicional ao “mito”. De outro lado, desde meados de 2020, há manifestações de resistência, por parte de líderes políticos, juízes, grande imprensa, jornalistas, acadêmicos e empresários, às ameaças golpistas e às graves omissões – que se comprovam deliberadas, com falsos remédios – no combate à pandemia. Mas, em geral, as manifestações das elites assumem a forma de um distanciamento débil, que parece ser calculado em função de seus objetivos táticos, uma vez que não se colocam no marco da defesa do regime democrático. Essa postura está baseada em um entendimento cômodo de que “as instituições estão funcionando”, lógica distinta daquela do período anterior a 2013.
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Com as manifestações de junho de 2013 inicia-se no Brasil um processo de crises e quase-crises políticas pelo qual se abriu uma espécie de gap de nossa atualidade em relação à ordem constitucional democrática de 1988. A percepção dessa distância resulta da alteração do nosso espaço de experiência, que aparece a nós como o estreitamento de nossa perspectiva temporal e a ampliação da incerteza sobre as estratégias dos atores políticos. O estreitamento temporal resultou da erosão das condições pelas quais a ordem constitucional sustentava a continuidade incremental de nosso presente com o passado e as expectativas quanto ao padrão de interações políticas futuras. A ampliação de incertezas, pela erosão da ordem constitucional como referência normativa e instituição válida, estendeu o âmbito de estratégias de atores políticos fragmentados e polarizados. Eles não só testam os limites do que é possível naquela ordem, mas assumem claro antagonismo em relação a ela, visando a desmontá-la ou destruí-la. Assim, vivemos e agimos sob a égide da Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a experiência vivida dá a entender que não mais pertencemos a ela.
O ponto de partida do trabalho intelectual requer a análise e reflexão sobre o que somos nós, como chegamos à situação atual e quais os nossos propósitos e perspectivas de ação para o futuro. Como é possível pensar e agir para (re)construir a ordem constitucional democrática? Em quê a nossa situação se distancia do modo pelo qual aquela ordem foi produzida pelos projetos e processos políticos desde a transição democrática? Quais os seus efeitos sobre a forma pela qual atuamos como pesquisadores e cidadãos até um passado recente? Essas questões serão trabalhadas por meio do diálogo com pesquisadores e pesquisadoras para explorar as realizações, mas também as incertezas, ambivalências e obstáculos desde a transição.
Os conceitos de democracia, estado de direito e desenvolvimento sintetizam as agendas políticas do movimento brasileiro contra o autoritarismo dos governos civis-militares do pós-1964. Os termos tinham múltiplos significados e foram desde então acerbamente disputados pelas forças políticas e no debate intelectual brasileiro. A Constituição de 1988 e seus desdobramentos institucionais, legislativos e de políticas públicas marcaram avanços incontestáveis sob os mais diversos aspectos, embora sua efetivação tenha sempre sofrido oposições e desafios que implicaram na sua realização sempre parcial e bloqueada. Nos últimos anos, a crise econômica, a instabilidade política e a instrumentalização dos recursos do estado de direito para a política facciosa e antidemocrática colocaram desafios novos para a política constitucional. A eleição de 2018 levou à presidência da República e ao Congresso lideranças que têm o propósito manifesto de destruir ou esvaziar as bases da democracia constitucional. Embora os riscos não sejam pequenos e sejam necessárias a discussão conjuntural e a atuação política imediata, propõe-se que se dedique esforço também a pesquisas e análises de alcance mais amplo para compreender a situação atual de uma perspectiva abrangente, permitindo qualificar a agenda para a política democrática brasileira.
Num sentido mais amplo, o tema democracia, estado de direito e desenvolvimento se conjuga com a agenda das Nações Unidas consolidada desde a desde a Conferência de Viena de 1993. A declaração resultante daquela Conferência expressou o ideal normativo dos direitos humanos, democracia e desenvolvimento num conjunto de diretrizes em que eles são tomados em termos de sua indivisibilidade, interrelação e interdependência na sua promoção. Com essa tríade, propugna-se a criação de condições sociais, econômicas e culturais que, em conjunto com arranjos e práticas democráticas, possibilitem a realização de formas de vida em que indivíduos e coletividades exerçam plenamente os direitos humanos.
O princípio do estado de direito, assentado sobre a premissa formal do governo das leis e não dos homens, situa-se na interseção entre direitos humanos/direitos fundamentais, democracia e desenvolvimento, uma vez que a plena realização de cada uma dessas dimensões supõe a efetivação das demais, dados os vínculos intrínsecos entre elas. Simplificadamente, os direitos humanos traduzem o princípio da dignidade humana sob a forma de regras e garantias aos indivíduos e coletividades, sob modalidades diversas. A democracia é o governo do povo, não pela simples expressão da maioria em uma ocasião única, mas como a institucionalização das relações entre maioria e minorias por meio de um conjunto de procedimentos institucionalizados de competição eleitoral, participação política, o respeito aos direitos e liberdades civis, cívicos e políticos, assim como as condições de vida da população para que possa participar de maneira informada e constante das decisões políticas. O desenvolvimento é outra expressão dos direitos à vida, à igualdade e à liberdade, em que o princípio do estado de direito se concretiza pela promoção de formas de vida capazes de exercê-los de forma pacífica e segura. Assim, o princípio do estado de direito pode ser tomado como um ponto nodal nas relações entre aquelas três dimensões do ideal normativo de sociedade justa.
Em sentido mais restrito, o estado de direito é realizado por instituições e políticas estatais que são voltadas à sua proteção e promoção na sociedade. Para tanto, os arranjos institucionais e as práticas estatais precisam ser suficientes e adequadas aos fins visados pelas políticas públicas. Essa adequação compreende a maneira pela qual as organizações do Estado, suas práticas ou cultura interna atuam, como também se abrem à participação social e aos controles políticos e institucionais sobre elas. As instituições judiciais são integrantes tanto dos arranjos institucionais voltados à promoção, proteção e efetivação dos direitos quanto dos controles sobre as demais instituições estatais e da vigência dos direitos na sociedade. O “direito” (no singular) pode ser entendido como um conjunto de normas, instituições, atores e práticas que se dedicam a dizer a norma, a estabelecer o seu sentido objetivo para o exercício do poder e como normatividade socialmente objetiva para as relações “privadas”.
É neste sentido que a Constituição de 1988 rompeu com as ordens constitucionais anteriores ao expressar o compromisso normativo com uma sociedade democrática e socialmente justa, e organizar as formas institucionais e os instrumentos para a sua promoção. Porém, é neste mesmo sentido que o princípio do estado de direito tem sido historicamente problemático no Brasil e na América Latina, o que tem implicações graves tanto para a qualidade da democracia quanto para a efetividade dos direitos de cidadania.
Desde o início dos anos noventa, Guillermo O´Donnell e outros pesquisadores discutiram a singularidade das democracias na região, propondo-se a ultrapassar as noções de consolidação democrática ou de instabilidade/fragilidades políticas em favor de pesquisas que buscam conhecer as suas características historicamente produzidas enquanto “democracias delegativas”, bem como as suas implicações para a dinâmica política e a sociedade. O´Donnell defendia que as pesquisas sobre a (in)efetividade do estado de direito deveriam levar a sério as relações “internas” entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento, e ressaltava a sua relevância para apreciar a qualidade da democracia, para promover a realização dos direitos de cidadania e redefinir os modelos de desenvolvimento social na América Latina. No entanto, dados os interesses do autor em teoria da democracia e em política comparada, ele não desenvolveu suas reflexões sobre as formas e práticas do direito, ou a tradição jurídica, e nem fez pesquisas empíricas sobre o Brasil especificamente.
Nesses trinta anos têm sido realizadas muitas pesquisas sobre democracia, estado de direito e desenvolvimento, mas, em larga medida, feitas de forma separada ou adotando concepções reducionistas sobre as instituições judiciais e o direito. Pesquisas sobre a (in)efetividade do estado de direito sob a Constituição de 1988 e suas relações com a democracia e o desenvolvimento tornaram-se urgentes face à instabilidade política e aos ataques sistemáticos ao ordenamento jurídico-constitucional nos últimos anos. Essas investidas vêm sendo chamadas “políticas de crueldade social”, de abate social, necropolíticas ou políticas desconstituintes por se caracterizarem não mais como descaso, derivado da falta de prioridade pelos direitos sociais, mas como hostilidade explícita contra a organização democrática e socialmente inclusiva na nossa sociedade.
A situação atual coloca muitos desafios à pesquisa política, tornando necessário reconsiderar nossos quadros teóricos e práticas habituais de pesquisa, para indagar e refletir de forma mais ampla as possibilidades investigativas e de ação política. De um ponto de vista acadêmico, o panorama no Brasil não é mais o de escassez de pesquisas de ciência política, sócio-jurídicas ou de história constitucional e do direito. Como foi afirmado, há número significativo de pesquisadores que realizaram trabalhos relevantes sobre o tema nos últimos trinta anos, embora de uma forma relativamente desconexa e fragmentada. Logo, o NDDH atuará para facilitar conexões entre esses pesquisadores, para aproximar os seus trabalhos e criar canais de comunicação entre eles. Não se tem a pretensão de realizar uma síntese teórica que pretenda apagar as diferenças ou uma análise com pretensões globalizantes, mas ampliar as formas de diálogo dos pesquisadores e seus horizontes mútuos, disponibilizando os resultados para o público.
Conclusão
As atividades do NDDH seguem estas linhas: primeiro, pensar a atualidade na sua distância em relação às condições que permitiram estabilizar – se não institucionalizar – o processo político e as dinâmicas sociais em torno de um compromisso normativo com a democracia constitucional e políticas voltadas à promoção e à proteção dos direitos humanos. Segundo, pesquisar, discutir e criticar os ataques à institucionalidade democrática e o desmonte das políticas de proteção e promoção de direitos. E terceiro, dialogar sobre a agenda e as formas de ação que possam contribuir para a construção de uma nova arquitetura para a democracia, o estado de direito e o desenvolvimento no Brasil.
[1] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
[2] Doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (IFCH) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp): 201816992-6. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material
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[3] Embaixador aposentado.
[4] Professor de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).