Ronaldo Tadeu de Souza
15 de março de 2024
O Boletim Lua Nova entrevistou Ivo Paulino Soares sobre o papel das fundações culturais no Brasil, destacando sua tese sobre o Instituto Moreira Salles, defendida em 2022 na Universidade de São Paulo. Ivo Paulino Soares é bacharel (2012) e licenciado (2018) em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, e realizou mestrado (2017) e doutorado (2022) em sociologia, pela mesma universidade. Seus estudos focam na área de sociologia da cultura, com pesquisas sobre intelectuais, elites e pensamento brasileiro, desde a década de 1970.
Poderia nos falar, brevemente, sobre sua tese de doutorado acerca do papel das fundações culturais no Brasil?
Ivo Soraes (IS): Minha tese é modesta, realizei apenas um estudo de caso sobre o Instituto Moreira Salles observando a conjuntura política, empresarial, familiar e intelectual da instituição, que propiciou sua emergência e desenvolvimento desde a década de 1990. Tratando-se de um debate acerca de fundações e organizações culturais privadas sem fins lucrativos, entendo que a pesquisa contribui observando como as políticas culturais em diferentes governos atualizaram certas funções do empresariado brasileiro na cultura, incentivando e delegando responsabilidades públicas para o mecenato privado das instituições. Ou seja, constituindo elites propriamente culturais, como a família Moreira Salles.
Quais são as principais fundações culturais no Brasil hoje, e o que você destacaria nelas?
IS: Hoje, o que comumente é chamado de “fundações” trata-se de um espaço bastante heterogêneo, que inclui desde entidades dependentes de leis de incentivo fiscal para grandes empresas, outras formadas por associações sem fins lucrativos que apoiam grandes museus, patrimônios dirigidos para finalidades públicas e sociais, que são propriamente fundações, até instituições como o Instituto Moreira Salles, que se destacam pelo financiamento via endowment. Nesse modelo de financiamento, muito incentivado por João Moreira Salles, em expansão desde a aprovação do marco regulatório dos endowments, em 2019, a instituição cultural é mantida por um fundo patrimonial específico, gerido necessariamente por uma segunda entidade, responsável pelo repasse dos lucros desse fundo para a instituição principal. Em pesquisa de Fernando Nogueira Costa, da Unicamp, os maiores endowments do país em 2022 eram os da Fundação Bradesco, do Itaú Social, do Instituto Moreira Salles, criados a partir de famílias acionistas do mercado bancário, e o da Fundação Umane.
No último período, sobretudo com o governo Jair Bolsonaro (PL), muitas fundações (culturais e educacionais) se posicionaram contra ele. É possível caracterizar essas fundações dentro do espectro direita e esquerda?
IS: Acredito que cada caso é um caso, apesar de saber que a própria existência dessas instituições não dirime o impacto das elites na cena cultural e educacional, mas caracteriza novas práticas que algumas delas têm tido, talvez mais democráticas. Por exemplo, o Instituto Moreira Salles tem sido cada vez mais alinhado a uma grande agenda museológica nacional e aliado importante de movimentos culturais de renovação do debate sobre a memória e a imagem no país, enegrecendo consideravelmente sua gestão, curadoria e inserção, depois de gestões razoavelmente conservadoras. O quanto se manterá nesse movimento pelas próximas gestões, no entanto, nós ainda não podemos prever. E o quanto outras organizações seguem pelo mesmo caminho, isso ainda exige outras pesquisas empíricas, a respeito do trabalho de cada uma delas.
Como você analisa especificamente o papel dos Moreira Salles na construção desse fenômeno recente, ao menos enquanto “visibilidade”?
IS: Eu ofereci destaque para essa família por vários motivos, principalmente pela reflexividade que ela sustenta sobre a sua própria posição de classe no país; isso já a torna caso absolutamente único na cena cultural brasileira. João Moreira Salles é um evidente intelectual das elites nacionais que pensa sobre elas o tempo inteiro e atua declaradamente a partir do lugar bastante específico que ocupa na estrutura de classes, como investidor, gestor, documentarista e herdeiro assumido. Ainda estou explorando as minhas hipóteses sobre a singularidade dessa família, mas acredito que ela seja decorrente de, pelo menos, três fenômenos: i) a educação política mineira e liberal de Walther Moreira Salles, interessada na formação nacional, durante sua consolidação como empresário da agricultura, da metalurgia e do mercado bancário; ii) a atividade ativa da família no projeto nacional desenvolvimentista brasileiro na década de 1950, como player empresarial e político importante nas relações entre Brasil e Estados Unidos, e, iii) por último, a concorrência transnacional entre elites culturais, destacadas também pela contribuição nacional em espaços estrangeiros.
O que há de positivo e negativo no modo como as fundações culturais se inserem no debate público-político no Brasil hoje?
IS: Não temos dúvida que governos neoliberais incentivaram a formação de fundações, instituições e organizações privadas diversas da sociedade civil, contudo, hoje, é impossível agrupá-las na mesma caracterização ideológica, até mesmo porque elas se tornaram componentes importantes do mercado de trabalho intelectual, disputadas internamente e externamente por uma miríade de trajetórias diferentes. Quer dizer, elas nos empregam, de fato, e vários desses empregos têm se tornado oportunidades únicas de acesso e de conhecimento sobre determinados arquivos, agendas culturais e experiências institucionais da cultura. O problema é que inevitavelmente esses empregos são parte da construção burocrática que elas almejam, o que permite e permitirá a reprodução delas. Ou seja, em resumo, acredito que é uma situação parecida com aquela descrita por Sérgio Miceli em Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil 1920-1945, de nó górdio entre dependência e autonomia intelectual, com a diferença de que naquela conjuntura tratava-se expansão do Estado e domínio da política, embora houvesse algum nível de agenciamento intelectual, enquanto no meu recorte trata-se de expansão das instituições privadas e domínio dos empresários.
Por fim, é possível traçar um cenário ou uma tendência na dinâmica de inserção social (e também política) dessas fundações para o próximo período?
IS: Apesar do poder delas, acredito que sofrem interferências de grandes políticas nacionais. Um exemplo é o impacto da Política Nacional de Museus, no segundo governo Lula, que incentivou uma série de modificações em várias dessas instituições, seja formando quadros, seja alinhando o trabalho delas ao fomento público dos museus. O maior problema é quando essas instituições almejam a produção de políticas públicas, ou mesmo disputam cargos em governos e ministérios. Neste caso, um exemplo ainda a ser mais estudado e comparado é o da Fundação Lemann e seu impacto na educação nacional, assunto, no meu entendimento, para pesquisas também específicas que, do mesmo modo, observem a conjuntura de incentivo a essas organizações. Porém, que elas são objetos pertinentes e que tendem a permanecer presentes nos nossos debates, isto não tenho dúvida.
*Esse texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referência imagética: Foto de Ivo Soares, cedida pelo entrevistado.