André Reynaldo Santos Périssé[1]
O Sistema Único de Saúde (SUS) e sua cobertura pelo Brasil
O Brasil possui o maior sistema público de saúde do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS), excepcional em cobertura para países com mais de 100 milhões de habitantes. Definido no primeiro princípio da Lei Orgânica da Saúde 80 (de 19 de setembro de 1990), que regulamenta seu funcionamento no território nacional, o caráter universal do SUS garante que todos os mais de 200 milhões de habitantes do país tenham acesso garantido aos diversos níveis do atendimento. Outro princípio, o da integralidade, garante a presença do SUS na vida das(os) brasileiras(os) em várias atividades de promoção da saúde, tratamento e reabilitação, em uma atuação intersetorial com repercussão na qualidade de vida de todas(os). Tudo isso, independente do indivíduo se identificar como usuário do SUS, uma vez que as atividades de políticas e programas governamentais têm como característica atingir a todas(os) no território nacional. Ou seja, ao contrário do que muitos pensam, o SUS está presente na vida de todas(os) as(os) brasileiras(os), seja na forma de atendimento direto nas unidades de saúde ou na prevenção de doenças, através dos serviços de vigilância em saúde e imunizações, ou ainda em políticas governamentais como a elevação de impostos para reduzir a prevalência de tabagismo no país.
Estima-se que cerca de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para atendimentos em saúde. E, devido à crise econômica que assola o país desde 2016, recentemente esse percentual pode ter aumentado. Uma rápida busca na página eletrônica da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) demonstra que o ápice de cobertura da saúde suplementar no Brasil ocorreu em 2014 e, desde então, cerca de 3,5 milhões de brasileiras(os) deixaram de ser cobertos pelas operadoras de saúde e passaram a contar apenas com a universalidade do SUS (ANS, 2020). Mesmo assim, a distribuição desta cobertura não se faz de forma homogênea por todo o país. Estados como São Paulo e Rio de Janeiro, apresentam taxas de cobertura por planos privados acima de 30%, enquanto estados no Centro-Oeste, Nordeste e Norte variam entre 5% e 20%. Se adicionarmos a estes dados o fato de planos privados terem diferentes formas de cobertura de eventos de saúde e que, mesmo indivíduos com planos privados de saúde utilizam o SUS para certos procedimentos, podemos concluir o tamanho do desafio de se ter um sistema nacional de saúde público em um país como o nosso.
Eventos como os dos recentes desastres ambientais com rompimento de barragens de mineradoras e derramamento de óleo ao longo do litoral do nordeste do Brasil apresentaram ao país a realidade do sistema de saúde brasileiro: é o SUS, e não a rede privada suplementar, que atende a população afetada nestas catástrofes com os atendimentos iniciais de socorro e na rede capilarizada da Atenção Básica à saúde, porta de entrada de todo o sistema de atendimento no nosso sistema de saúde. Tal fato ocorre principalmente porque, historicamente, tais desastres ocorrem fora dos grandes centros urbanos onde a cobertura pelos planos privados é menor, sendo maior a dependência das atividades relacionadas ao SUS.
Assim, é possível destacar duas características importantes na rede de atendimento do SUS, as quais são fundamentais para lidar não apenas com o dia-a-dia da saúde e prevenção de agravos, mas também com eventos agudos e de grande magnitude: porta de entrada pela Atenção Básica, com alta proporção sendo garantida por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), e a presença dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). A ESF tem se mostrado efetiva como política de saúde em reduzir o impacto de vários agravos em locais de ampla cobertura e na real implementação. Nesse sentido está o dado de que, embora não de forma homogênea, ao longo dos últimos 10 anos, todos os estados da federação aumentaram a cobertura da população com atividades relacionadas à ESF. Estimativas nacionais indicavam que em 2018, no do pico de sua cobertura, cerca de 65% da população brasileira era atendida pela ESF. Esse percentual equivale a dizer que cerca de 135 milhões de pessoas estavam sendo cobertas pela estratégia naquele ano (Página eletrônica e-Gestor). Infelizmente, essa realidade não é homogênea em todo o país.
Ainda no ano de 2018, o Nordeste apresentava a melhor cobertura da ESF com 80%, enquanto a região Sul tinha 67%, o Norte 64%, Centro-Oeste 63% e a região Sudeste apresentava o pior alcance dentro das Macrorregiões brasileiras, com apenas 54% da população coberta. Mesmo dentro das regiões, há diferença entre os diferentes estados e municípios. Em julho de 2019, por exemplo, a cidade de São Paulo contava com apenas cerca de 39% de cobertura pela ESF. Já o município do Rio de Janeiro, que saiu de uma cobertura ínfima de 5% em 2007, passou para 62,5% em julho de 2017 (cerca de 4 milhões de indivíduos). Esse percentual, ,entretanto, vem caindo deste então, tendo recuado para 48% em dezembro de 2019. Esse acontecimentos indicam que a implementação da ESF depende de políticas de governo e não de Estado, variando de acordo com o governante do momento. São igualmente impressionantes as estimativas para o número de indivíduos em áreas com ACS, sendo 134 milhões (65%) o total no Brasil, 4,2 milhões (35%) na cidade de São Paulo e 3,8 milhões (58%) no município do Rio de Janeiro.
Desde sua implementação, o sub-financiamento do SUS tem sido histórico, quadro agravado recentemente após a Emenda Constitucional 95. Segundo relatório da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde, o prejuízo para o SUS já contabiliza mais de R$20 bilhões, desde que entrou em vigor o limite de teto de gastos (Entrevista Portal Carta Maior). Dados da economia brasileira de dezembro de 2019, indicavam uma leve e controversa recuperação econômica quatro anos após o início da crise corrente. Na saúde, porém, o impacto da crise se deu não apenas com o sub-financiamento, mas também no aumento dos indivíduos que migraram de planos privados para o atendimento no SUS. É provável que os dados apresentados acima, que apontam para a redução da cobertura pela ESF em vários pontos do Brasil em 2019, tenham relação com a redução do financiamento da saúde naquele ano.
É nesse contexto de crise econômica, diminuição orçamentária na saúde, encolhimento da cobertura da ESF no país e migração de indivíduos dos planos privados para o SUS, que o país se prepara para enfrentar um dos maiores desafios já visto pela saúde pública : a pandemia por um novo vírus, o SARS-CoV2.
O desafio do SUS frente à pandemia do Covid-19
Desde os primeiros casos detectados na China, no início de dezembro de 2019, a disseminação do novo coronavírus para todos os continentes ocorreu de forma extremamente rápida, sendo contabilizados, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em quase 640.000 casos em 203 países ou territórios e em todos os continentes em 29 de março de 2020. A ausência de imunidade na população mundial e a existência de uma grande rede de conexão entre as diferentes áreas do globo, decorrente da globalização, cria “pontes” entre os cinco continentes e facilita a rápida difusão do vírus. Sua grande transmissibilidade e a provável existência de transmissão por indivíduos com poucos sintomas ou assintomáticos, tornam ainda mais difícil a prevenção de sua disseminação.
Embora a maioria das pessoas (cerca de 80% delas) curse com casos leves ou moderados, cerca de 20% podem agravar e 5% podem exigir tratamento intensivo em unidades especializadas. Esse é o quadro de, principalmente, idosos e pessoas com comorbidades, como hipertensão arterial e diabetes mellitus. O rápido aumento da disseminação do vírus em uma população não imune à infecção faz com que diversos casos surjam em um curtíssimo espaço de tempo, fazendo com que já haja sistemas de saúde que, atuando no limite da capacidade de atendimento, fiquem sobrecarregados e sem condições de atuar para impedir agravamentos e até óbitos.
Nesse sentido, é fundamental que o Brasil se prepare adequadamente para a difícil tarefa de atender uma grande quantidade de casos graves em um curto espaço de tempo. Muito tem sido pensado a partir das medidas utilizadas em outros países, onde a infecção tem tido grande impacto na capacidade de atendimento dos sistemas de saúde locais. Entretanto, é preciso também olhar com cuidado para aqueles 80% de indivíduos que desenvolvem quadros que variam de assintomático a casos moderados de doença. Medidas de isolamento social têm sido corretamente implementadas, mas têm gerado enormes debates entre o governo federal e as partes estaduais e municipais. Embora com redução de cobertura em 2019, a estrutura física para o retorno aos padrões anteriores na ESF está montada, necessitando apenas da recontratação dos profissionais da saúde, eventualmente demitidos nos últimos dois ou três anos. Estamos falando de um potencial instalado que pode cobrir cerca de 135 milhões de brasileiros (65% de cobertura), grande parte destes residentes em áreas onde apenas o SUS fornece cuidados de saúde. Em grandes cidades com ampla capacidade física da ESF instalada, como no Rio de Janeiro, medidas como visitas domiciliares e contatos remotos (ex. telefone) podem ser utilizadas para orientar os usuários e evitar aglomerações desnecessárias nas unidades de saúde. Desse modo, podemos e devemos fazer uso da estrutura capilar da ESF e dos ACS para identificar e aconselhar a população sobre medidas como isolamento, quarentena e medidas simples de prevenção da infecção e disseminação do vírus.
Nem todo combate a esta pandemia poderá ser feito dentro do SUS. Entendendo a saúde dentro de um contexto de seguridade social, devemos compreender que outras medidas de proteção social deverão ser implementadas de forma urgente e rapidamente. Sem isso, será difícil conseguir o apoio de toda a sociedade para medidas duras que deverão ser adotadas contra a disseminação do Covid-19.
[1] Pesquisador em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz
Referências:
- Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Dados do Setor – Dados Gerais (acesso em 23 de março de 2020). http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais
- e-Gestor Atenção Básica: Informação e Gestão da Atenção Básica (acesso em 25 de março de 2020). https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCobertura.xhtml
- Entrevista de Fernando Zasso Pigatto, Presidente do Conselho Nacional de Saúde, ao Portal Carta Maior (acesso 26 de março de 2020). https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Presidente-do-CNS-Dissemos-que-seria-a-emenda-da-morte-Agora-esta-comprovado-/4/46837
Referência imagética:
https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2019/04/em-2019-maior-desafio-da-saude-publica-no-brasil-e-a-sobrevivencia-do-sus/ (Acesso em 1 de abr. 2020)