Sérgio Costa[1]
Não é trivial que o dirigente máximo de um país, por menor que seja ele, dissemine conteúdos licenciosos. Já um presidente de uma nação da importância do Brasil postar um vídeo obsceno em sua conta oficial do Twitter é algo muito excepcional, provavelmente inédito. Algo tão inusitado só pode ter sido motivado por razão política ou pessoal urgentíssima. Se é assim, há três hipóteses possíveis para explicar a decisão de Bolsonaro de postar no Twitter cenas explícitas filmadas supostamente durante o carnaval, completando ainda com postagem posterior sobre o fetiche da “chuva dourada”.
A primeira hipótese seria a da compulsão pessoal inestancável, isto é, o fascínio pessoal nutrido pelo presidente por tais práticas o teria feito perder o limite do razoável, levando-o a tornar públicas fantasias e ansiedades que não deveriam ser externadas em público por ninguém, muito menos pelo detentor do cargo máximo que a república tem a oferecer. Esta é a tese sustentada, ao menos implicitamente, pelos deputados oposicionistas que sugeriram ao presidente buscar tratamento psiquiátrico. Ainda que a hipótese não possa ser descartada a priori, não parece ser essa a explicação mais provável para a ação inopinada do presidente. Afinal, Bolsonaro, mesmo que não estivesse em pleno gozo de suas faculdades mentais, vive cercado de outras pessoas, as quais o teriam socorrido antes que ele cometesse algum gesto de insanidade.
A segunda hipótese é a guerra das culturas, interpretação defendida pelo The New York Times em sua edição de 6 de março. Conforme esta lógica, o gesto de Bolsonaro teria sido motivado pelo desejo do presidente de alimentar a batalha ideológica diversionista, cujo fim é evitar que seja confrontado pra valer com as suas muitas debilidades. No lugar de responder, por exemplo, às denúncias de corrupção, à sua perplexidade diante da economia cambaleante, à passividade de seu governo diante do colapso ambiental iminente, ou ao fato de ter reduzido o Brasil, no plano internacional, a uma república de bananas, gestos, como a postagem em tela, transformam as disputas partidárias numa luta do bem contra o mal. Isto é, o jogo político se converte numa contenda que opõe, de um lado, os homens de bem e a direita virtuosa e, de outro, os supostos inimigos da nação corporificados no “marxismo cultural” e na “esquerda libertina”. Tudo que, de fato, importa na política, ou seja, as disputas distributivas, a capacidade de gestão do governo ou os resultados que produz, passa ao segundo plano. O que conta é só mesmo a guerra cultural. Esta hipótese, ainda que seja plausível, não explica o ato em si, isto é, o fato de que o presidente em pessoa tenha postado o vídeo, colocando em jogo e em risco seu presente e seu futuro político além da respeitabilidade da presidência da república. Se fosse pela guerra cultural, o mais lógico teria sido Bolsonaro pedir a um dos filhos para postar o vídeo. O efeito seria semelhante e o presidente e a presidência ficariam preservados.
Mais plausível para justificar um ato tão extremo me parece uma terceira hipótese, qual seja, o instinto de sobrevivência política. O fato do carnaval de 2019 ter se transformado num espaço de protesto generalizado contra o governo e mais diretamente contra o presidente e sua família parece ter feito soar, junto ao círculo próximo ao presidente, os mesmos alarmes que soaram quando milhares de manifestantes saíram às ruas às vésperas da eleição do ano passado, articulados em torno do #elenão. Naquela ocasião, a ação de Eduardo Bolsonaro combinada com o envio em massa de vídeos e mensagens pelo WhatsApp e as entrevistas de Bolsonaro, que saia do hospital e era apresentado na televisão como o tio bonachão convalescente, enquanto os demais candidatos se digladiavam em pseudodebates enrijecidos, foi fundamental para conter a sangria que o movimento #elenão poderia ter causado na candidatura de Bolsonaro. Como todos certamente ainda se lembram, no mesmo momento em que era repercutida, publicamente, a declaração de Eduardo Bolsonaro de que “as mulheres de direita têm mais higiene” porque “não mostram os peitos nas ruas e nem defecam nas ruas”, eram divulgadas em massa montagens de vídeo e fotos mostrando supostas manifestantes do movimento #elenão desnudas e, efetivamente, defecando sobre a foto do então candidato Bolsonaro.
Para se contrapor ao turbilhão dos protestos carnavalescos, Bolsonaro parece ter buscado imagens que tivessem a mesma força que aquelas usadas contra o #elenão. Para responder à gravidade da ameaça que o alastramento dos protestos podia representar era necessária uma resposta igualmente grave e dramática que teria que vir, desta vez, do próprio presidente.
Se o cálculo político foi esse, ainda é cedo para saber se a estratégia atingiu seus objetivos. De um lado, é certo que a postagem do vídeo superou em muito a radicalidade dos protestos e decidiu a economia política das atenções públicas a seu favor. Desde terça-feira, o vídeo mereceu muito mais atenção e destaque na mídia e nas redes sociais que os protestos mais criativos. De outro lado, no plano institucional, muitos correligionários, até então incondicionais, além de outros aliados potenciais do presidente não escondem o constrangimento de se associarem a alguém que divulga vídeo obsceno. Assim, não está descartado que o mesmo apelo à escatologia que salvou a campanha eleitoral de Bolsonaro possa leva-lo, como presidente, a submergir, definitivamente, no lamaçal que ele, seus filhos e alguns compinchas vêm produzindo.
[1] Professor Titular de Sociologia da Universidade Livre de Berlim.