Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória
Instituto de Estudos Avançados – Universidade de São Paulo
A trama para acabar com o que ainda resta delas, deles, delos, sabemos, começou faz algum tempo[1]. A trama para acabar com o que ainda resta do nosso Estado Democrático de Direito, no entanto, parece ganhar novos sentidos nas falas, em cada slogan de campanha e em cada aparição do ainda presidente Jair Bolsonaro.
O ar que faltou para muita(o)s durante a pandemia preenche o pulmão da autoridade máxima da nossa República quando proclama: “Pintou um clima”; “Não sou coveiro, tá?”; “’Vê alguém pedindo pão?”; “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”.
Cada fala, que em muitos casos são mentiras descaradas, é acompanhada por gestos não envergonhados sobre suas intenções. Não há vontade ou esforço para esconder o que está em jogo. Não há dúvida sobre o que se quer causar com o orçamento secreto, com os benefícios de última hora, com o preço da gasolina, com a inflação dos alimentos da cesta básica, com a desindexação do salário mínimo, com os cortes sobre a farmácia popular, com a história sobre o aborto, com os usos da religião, com o fantasma da Venezuela, do socialismo, com a mudança na composição do STF.
Diante da longa lista do que não quer se esconder, a compreensão do que está em jogo na decisão do próximo dia 30 de outubro parece deixar pouca ou nenhuma margem para a dúvida: a democracia ou o seu fim. O que está em jogo não é apenas ‘aquele’ versus ‘o outro’; o 13 versus o 22 (ex-17); a democracia versus abarbárie; ‘nós’ versus ‘eles’. O que está em jogo é também a continuidade de uma trama que tentou, e em muitos casos conseguiu, destruir, matar, desmantelar, (literalmente) sufocar pessoas, princípios, instituições e projetos políticos responsáveis por construírem e consolidarem uma gramática de direitos básicos no nosso país.
O que está em jogo é, para muita(o)s de nós a nossa sobrevivência. A possibilidade de viver e trabalhar em nosso país; de criar filhas/os/es, netas/os/es em paz e planejando um futuro com alguma previsibilidade e esperança também na esfera pessoal, íntima e familiar.
Sabemos que o trabalho pelos direitos humanos não tem termo, nem fim, nem horizonte plausível onde seriam, enfim, alcançados plenamente, porque vantagens, benesses, poderes usurpados, dependem justamente de sua violação continuada. A preocupação de hoje, contudo, aprofunda a convicção de que direitos humanos não foram e não são unanimidade nem nacionalmente e nem nas organizações e no contexto internacional. O governo brasileiro foi capaz de protagonizar nos últimos anos, juntamente com outros governos ditatoriais, verdadeiros flagrantes vexaminosos de ataque frontal a esses direitos, instabilizando ambições de sua construção global pela unanimidade.
Esse conjunto de certezas, de “não resta dúvidas”, poderia levar facilmente à conclusão de que com a força do melhor argumento, das evidências, dos enredos chegaremos vitoriosa(o)s. Poderíamos, afinal, ter esperança; para não dizer algum conforto.
Mas, porque ainda somos, em algum sentido, democráticos, também sabemos que esse primeiro conforto logo se desconforta quando lembramos da máxima segundo a qual o que domina o jogo eleitoral é a incerteza sobre os seus resultados. Uma incerteza que é virtude das democracias e nascida da possibilidade da participação política, mas que ganha, entre nós, novas cores e novos contornos quando lembramos que as eleições deixaram de ser um meio não violento de organização das nossas diferenças, dos nossos interesses e dos nossos conflitos. Entre nós a incerteza recebe, portanto, um outro sentido. Não é apenas incerto quem levará a disputa eleitoral, mas é também incerto o que acontecerá depois da apuração das urnas, com a continuação das violências que, sem dúvida, serão cometidas por este (des)governo.
O próximo dia 30 significa, portanto, muito mais do que a data da eleição, cujo resultado deve ser respeitado segundo as regras do jogo e com a proteção da Constituição. Nele está em jogo a própria continuidade da nossa democracia constitucional, que deve por fim a essas ofensivas multiformes contra nossos princípios e valores mais básicos. Ele precisa ser o marco do início da reconstrução das políticas de direitos humanos e da criação das formas de vida e convivência de uma sociedade democrática igualitária, plural e justa. Será também um lugar no tempo em que, certamente, para os direitos humanos no Brasil, um novo início deverá ser pautado.
É nesse jogo de certezas e incertezas, é no espaço da dúvida e da urgência, que a(o)s integrantes do Grupo de Pesquisa em Memória e Direitos Humanos (GPDH-IEA-USP), propuseram a construção de um “Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos”. Planejado desde 2019, foi realizado durante os anos de 2021 e 2022. Nesse ciclo, secretárias, ministras, presidentas, pesquisadora(e)s, operadora(e)s do direito, ativistas e trabalhadora(e)s de organizações e movimentos sociais, responsáveis por consolidarem as práticas, os mecanismos e as instituições dos direitos humanos no país, juntaram-se para construirmos coletivamente uma memória institucional dos direitos humanos no Brasil. Reuniões, documentos e manifestos inéditos foram organizados, novas articulações construídas e estratégias de trabalho conjunto e futuro pautadas. Vinda(o)s de diferentes experiências políticas e partidárias, no encontro, construído com e pelas diferenças, criou-se a possibilidade de começarmos a formulação de um vocabulário comum para a consolidação de uma memória dos direitos humanos que se ancora no passado, mas precisa apontar também para o presente-futuro. Memórias só existem e se executam como memórias vivas quando tensionam com as tentativas de calcinar, extinguir, calar e fazer desaparecer.
E é pelas vozes-chamados dela(e)s que continuamos a não deixar esquecer que a incerteza sobre o resultado do dia 30 de outubro não pode diminuir a força do que nos chama à ação política. Diante do desmonte e do desmantelamento das práticas, dos mecanismos e das instituições de direitos humanos no Brasil, a urgência se sobressai frente a qualquer outro sentimento ou direção.
“É urgente chamar atenção das mulheres, em sua diversidade, para este projeto de destruição de seus direitos – preconceituoso, racista, homofóbico e transfóbico e, para a necessidade de que seja revertido por nós, da geração que contribuiu para escrevê-los, e sobretudo, pelas jovens, para que as futuras gerações vivam em um país que respeita as mulheres como cidadãs plenas de direitos em suas vidas educacional, profissional, afetiva, familiar, sexual, reprodutiva, política”.[2]
“Temos certeza de que um Brasil sem tortura depende, hoje e no futuro, de brasileiras e brasileiros que levantem suas vozes e as façam ecoar afirmando, de modo peremptório, suas escolhas em defesa da vida, da liberdade e da dignidade da pessoa humana só possíveis numa democracia”.[3]
“Precisamos garantir coletivamente as condições para que a memória do que foi conquistado e construído nas políticas dos direitos humanos, com destaque para as políticas antirracistas e de igualdade racial, permaneçam vivas e façam viver”.[4]
“É urgente que todas as pessoas que lutaram e lutam pela democracia, pelo estado de direito e pela justiça social no Brasil manifestem publicamente o seu repúdio às políticas contrárias aos direitos humanos e antidemocráticas do atual governo”. [5]
“Nossa caminhada conjunta fez e com certeza continuará fazendo a diferença.
Resistam, recriem e se reagrupem.
E fortaleçam as trincheiras de luta e de trabalho em defesa dos direitos [humanos no Brasil]”.[6]
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] A referência aqui é Saidiya Hartman em seu manifesto feminista antirracista “The plot of her Undoing”. https://static1.squarespace.com/static/5c805bf0d86cc90a02b81cdc/t/5db8b219a910fa05af05dbf4/1572385305368/NotesOnFeminism-2_SaidiyaHartman.pdf
[2] Manifesto das ex- Presidentas e ex- Ministras dos organismos de políticas para mulheres – Os direitos das mulheres são conquistas diárias
[3] Manifesto contra o Desmonte das Políticas de Combate à Tortura no Brasil
[4] Manifesto contra o Desmonte das Políticas de Igualdade Racial no Brasil “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”: pela reconstrução das políticas de igualdade e diversidade racial no Brasil.
[5] Manifesto “Pela Reconstrução das Políticas de Estado de Direitos Humanos no Brasil”
[6] Manifesto das ex- Presidentas e ex- Ministras dos organismos de políticas para mulheres – Os direitos das mulheres são conquistas diárias.
Referências Imagéticas:
EVERY HUMAN HAS RIGHTS. Urban street art sticker. Leica R7 (1994), Summilux-R 1.4 50mm (1983). Hi-Res analog scan by www.totallyinfocus.com – Kodak Ektar 100. Photo by Markus Spiske on Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/photos/XXWM_8f77KQ>. Acesso em 27 out 2022.