Carolina Piccolotto Galib[1]
Pedro Augusto de Castro Simbera[2]
A relação entre direito interno e internacional é cada vez mais abrangente em razão das características de progressividade e universalidade dos direitos humanos. Assim, a análise da atuação do judiciário brasileiro frente ao dever de aplicar os tratados e convenções internacionais é importante para compreensão da relação entre os dois sistemas e para apontar como vários direitos poderiam ser garantidos pela simples aplicação de normas internacionais.
A teoria dualista, cujo maior expoente foi o jurista alemão Triepel, afirma que o direito interno e o direito internacional atuam como se fossem dois círculos distintos, não possuindo ponto de contato ou interação. Por outro lado, a teoria monista, defendida por Kelsen, entende que existe apenas um sistema e, portanto, o direito internacional se aplica diretamente na ordem jurídica dos Estados. Há apenas uma única fonte responsável pela identidade de princípios e regras, e o sistema interno de cada país, das organizações internacionais e dos blocos regionais é baseado na harmonia[3].
No Brasil, existem vários dispositivos constitucionais que demonstram que a teoria monista corresponde ao sistema jurídico em vigor desde a Constituição de 1988. Destaca-se a previsão dos parágrafos §1º e §2º, do artigo 5º[4], os quais determinam que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata e não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte.
Há que se lembrar também da hierarquia dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico interno, tema que passou por várias mudanças de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) até a edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Esta, no §3º no artigo 5º, instituiu que os tratados aprovados pelo rito de emenda (isto é, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros) serão equivalentes às emendas constitucionais. Antes disso, o tema foi enfrentado pela jurisprudência.
No Recurso Extraordinário (RE) 80.004[5], o STF entendeu que os tratados de direitos humanos tinham hierarquia de lei ordinária federal, o que na prática significava que em um conflito entre uma lei posterior e o tratado, este último poderia deixar de ser aplicado pelo critério cronológico[6]. Já no julgamento do famoso caso envolvendo a prisão civil do depositário infiel (RE 466.343-1 SP)[7], o STF, interpretou o dispositivo constitucional que previa a possibilidade de prisão civil à luz do artigo 7º, §7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual proíbe qualquer prisão civil[8], com exceção da dívida alimentar, ocasião em que o Ministro Gilmar Mendes proferiu entendimento sobre o caráter supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil faz parte.
Apesar de parte da literatura entender que os tratados de direitos humanos incorporados pelo Brasil anteriormente à Constituição, ou aqueles posteriores sem o rito de emenda, seriam materialmente constitucionais por força do §2º, do art. 5º da Constituição, o STF adota a teoria do dualismo moderado, pois entende que a forma de incorporação do tratado de direitos humanos no ordenamento jurídico irá definir a sua hierarquia no sistema e, além disso, compreende que seria imprescindível a edição de um decreto presidencial para a incorporação (VEDOVATO, VIEIRA, 2015, p. 215).
Como visto, o § 2º do artigo 5º da Constituição é de especial relevância por possibilitar que o ordenamento jurídico interno passe a contar com a influência de normas internacionais. Este dispositivo é responsável pelo que convencionou-se chamar de bloco de constitucionalidade amplo, que abrange os tratados de direitos humanos independentemente da forma de incorporação pelo Brasil. Já no bloco de constitucionalidade restrito, apenas os tratados aprovados pelo rito de emenda, nos moldes do §3º do artigo 5º da Constituição, podem ser utilizados como parâmetro para o controle de constitucionalidade [9]. É evidente, portanto, que os juízes e tribunais brasileiros não devem aplicar leis e atos normativos que violem tratados internacionais, em especial os tratados internacionais de direitos humanos, exercendo o controle de convencionalidade.
A compatibilização da jurisprudência dos juízes e tribunais nacionais com as Cortes internacionais, consagrando o chamado diálogo das cortes, é de suma importância para a concretização da interpretação internacionalista dos direitos humanos. Sem isso de nada adiantaria a compreensão sobre a compatibilização entre tratado e lei interna, nos moldes já expostos, dando margem à interpretação nacionalista dos tratados[10].
Uma das primeiras Convenções de Direitos Humanos que surgiu após a Segunda Guerra Mundial foi a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (Convenção de 1951). Esse documento reconheceu o direito da pessoa que sofre ou tem temor de sofrer perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opiniões políticas, buscar refúgio em outro país e não ser impedido de ingressar em um Estado parte da convenção se sua vida ou liberdade estiverem ameaçadas.
Referido princípio, denominado proibição ao rechaço, é importante para garantir o direito de ingresso dos refugiados, que apresentam uma característica de maior vulnerabilidade em razão do grave risco que correm. Essa Convenção também prevê que não podem ser aplicadas sanções penais em virtude da sua entrada ou permanência irregulares de refugiados.
Desde o ano de 1961 o Brasil é signatário desta Convenção, promulgando o instrumento com o Decreto nº 50.215/1961 e tendo a Lei 9.474/1997 criado mecanismos para sua implementação. Esta última, inclusive, adotou o conceito de refugiados proveniente da Declaração de Cartagena de 1984 que, mais amplo, entende que a grave e generalizada violação de direitos humanos é motivo para reconhecimento de status de refugiado, não sendo necessário o reconhecimento da situação de perseguição.
Esse cenário, entretanto, foi impactado pela pandemia de Covid-19. Com o intuito de evitar a propagação do vírus, o Estado brasileiro editou uma série de portarias interministeriais que determinaram o fechamento de fronteiras, de forma a contrariar a própria Lei 13.979 de 2020[11], Lei da Covid – 19, além dos tratados internacionais.
Elas proibiram o ingresso por vias terrestres, mas não pelas vias áreas, o que evidencia uma maior restrição ao direito de ingresso de pessoas provenientes de países fronteiriços, dos quais emergem importantes fluxos de pessoas ao Brasil. Além disso, essas portarias ignoraram o princípio da proibição do rechaço, e criaram maiores restrições de entrada aos venezuelanos, o que marca a diferenciação do direito de entrada com base no critério da nacionalidade sem algum amparo legal ou convencional. Apesar da última portaria até então editada, a de Nº 655 de junho de 2021[12], ter retirado essa diferenciação, ela continua contrariando as normas legais e convencionais sobre o direito dos refugiados. Além disso, importa frisar que a restrição do direito de ingresso do refugiado em nada colabora com a contenção da pandemia. Desde 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) entende que o uso de máscara, isolamento social e, em 2021, o acesso igualitário às vacinas, são as melhores medidas de combate à pandemia que devem ser adotadas (WHO, 2021)[13].
Diante do impedimento de ingresso e permanência no território nacional, os refugiados se viram desamparados pela legislação relativa à política sanitária da Covid-19, uma vez que não havia segurança de que poderiam esperar o seu pedido de refúgio ser analisado sem serem deportados. Em algumas situações nem esse pedido pode ser realizado, o que levou as pessoas a ingressarem no judiciário para ter satisfeito o seu direito de proteção no país (UOL, 2021)[14].
Com intuito de dar uma solução que seja compatível com as normas internacionais e com os dispositivos internos, o CNJ editou a Recomendação nº 108 de 15 de setembro de 2021, com ampla participação da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), visando pôr fim à “violação humanitária e conflitos judiciais em relação a migrantes e refugiados, alguns inclusive indígenas (etnia Warao)”[15].
A recomendação possui quatro dispositivos e prevê, no artigo 1º, que o deferimento das tutelas de urgência sejam avaliadas com cautela especialmente quando versarem sobre pedidos de asilo, sobretudo nas “hipóteses que acarretarem deportação, devolução, expulsão ou repatriação ao país de origem ou a qualquer outro país”.
Os outros dois dispositivos recomendam que sejam aplicados os tratados internacionais de direitos humanos bem como a jurisprudência do STF (art. 3º) e que as consequências jurídicas de restrição do direito de ingresso sejam avaliadas de acordo com a Lei de Migração (Lei nº 13.445/17), garantindo-se o devido processo legal (art. 2º).
Importante notar que nos considerandos a recomendação faz menção à Opinião Consultiva OC-25/18 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual reconheceu que o direito de receber asilo impõe aos Estados alguns deveres específicos, como por exemplo, a obrigação de não devolução. E, faz menção também, ao caso Pacheco Tineo vs. Bolívia, por ter estabelecido que um procedimento de retirada compulsória de imigrante deve ser de natureza individual e deve observar as garantias mínimas do contraditório e ampla defesa, além do direito de ser informado sobre as razões de deportação ou expulsão, do direito de revisão perante autoridade competente no caso de uma decisão desfavorável e da possibilidade de solicitar e receber assistência jurídica.
Um dos objetivos da recomendação é trazer uniformidade para as decisões judiciais, tendo em vista que as portarias até então editadas pelo executivo contrariam tratados internacionais e decisões judiciais.
Assim, é evidente que tal instrumento representa um verdadeiro esforço do CNJ no sentido de aprimorar o trabalho do judiciário brasileiro a partir de decisões que dialoguem com as cortes internacionais, bem como apliquem as normas internacionais garantidoras de direitos. No entanto, por outro lado, a necessidade desta recomendação indica a dificuldade da compreensão da unidade do direito, seja ele de matriz interna ou internacional, apesar dessa questão já ter sido amparada desde 1988 pelo constituinte originário.
[1] Doutoranda em Direito pela PUC-SP, Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) nos cursos de Direito e Relações Internacionais. E-mail: carolinagalib@gmail.com.
[2] Acadêmico do curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Aluno pesquisador de Iniciação Científica por dois ciclos com bolsa CNPq na vigência: 2020 – 2021 e 2021-2022. E-mail: pedrosimbera@hotmail.com.
[3] HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo, LRT, 2017, p. 58.
[4]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27.09.2021.
[5]STF. RE80004. 01.06.1977. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=175365. Acesso em 23.09.2021.
[6] VEDOVATO, Luís Renato; VIEIRA, Luciane Klein. Rev. secr. Trib. perm. revis. Año 3, Nº 6; Agosto 2015; p. 207-225. p. 203.
[7]STF. 466.343-1 SÃO PAULO. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444. Acesso em 23.09.2021.
[8] EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.
[9] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direito Internacional Privado. São Paulo, Saraiva. 2018, p. 529-530.
[10] Ibidem, p. 538.
[11] BRASIL. Lei 13.979/2020 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735. Acesso em 23.09.2021.
[12] BRASIL. Portaria 655 de 23 de junho de 2021. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-655-de-23-de-junho-de-2021-327674155. Acesso em 23.09.2021.
[13]WHO. COVID-19 immunization in refugees and migrants: principles and key considerations: interim guidance, 31 August 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/covid-19-immunization-in-refugees-and-migrants-principles-and-key-considerations-interim-guidance-31-august-2021. Acesso em: 23.09.2021.
[14] VALENTE, Rubens. CNJ orienta juízes sobre direitos de estrangeiros que buscam refúgio. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/09/22/cnj-recomendacao-refugiados-fronteira-brasil-pandemia.htm. Acesso em: 23.09.2021.
[15] CNJ. Ato Normativo – 0004775-53.2021.2.00.0000. Disponível em: https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam – ID do documento: 4476541. Acesso em: 23.09.2021.