Renato Francisquini[1]
Nos últimos anos, o regime democrático tem sido desafiado de inúmeras maneiras. Em países onde, até há pouco tempo, ela parecia consolidada, a democracia sofre toda sorte de retrocessos e descontinuidades. Embora o fenômeno tenha se tornado mais evidente em governos como os de Donald Trump, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro, não é de hoje que as instituições políticas são alvo de ataques por movimentos políticos e da desconfiança de uma parte da sociedade. Encontramos, na literatura especializada e no debate público, elaborações acerca da legitimidade política, discursos sobre (supostas e efetivas) crises da democracia e do sistema representativo, assim como propostas de reformas institucionais a fim de tornar o sistema político e as decisões políticas mais legítimas.
Mas a que se refere, afinal, a ideia da legitimidade? O que torna um sistema político, um governo ou uma decisão coletiva dignos de reivindicar a obediência daqueles e daquelas por eles afetados? Um dos pressupostos fundamentais da ideia de democracia é o de que o poder político não pode ser mobilizado senão mediante a autorização dos cidadãos e cidadãs sobre quem este poder será exercido. De maneira mais óbvia, a autorização se expressa por meio da consulta aos cidadãos e cidadãs através de mecanismos como as eleições, referendos, plebiscitos e outros instrumentos de participação política. Sabemos, porém, que, por diversas circunstâncias, decisões que têm forte impacto sobre as nossas vidas são tomadas sem que sejamos consultados – e nem por isso elas são consideradas menos válidas ou dignas de reivindicar a nossa obediência.
Em um governo representativo, legisladores e membros do Poder Executivo são escolhidos e prestam contas à sociedade por suas ações e omissões. Contudo, alguém poderia argumentar, há decisões que, mesmo quando tomadas diretamente pela sociedade ou indiretamente por meio de seus representantes, deveriam ser consideradas ilegítimas ou não democráticas. A restrição à liberdade religiosa surge como um exemplo sugestivo: deveríamos considerar legítima uma decisão que, tomada pela maioria da população por meio de um plebiscito, impede uma minoria de professar a religião de sua preferência?
Historicamente, boa parte dos arranjos institucionais recorre a alguma forma de constitucionalismo para retirar do rol de decisões submetidas ao consenso popular aquelas que podem afetar os direitos fundamentais. Nesse sentido, conferimos a instituições contramajoritárias, como as cortes de controle de constitucionalidade e aos tribunais superiores, que escapam ao controle da opinião pública, o papel de impedir a tirania da maioria ou de evitar que a formação eventual de maiorias ponha em risco os direitos que consideramos fundamentais à dignidade humana.
Tendo em vista o dilema esboçado acima, a teoria democrática apresenta maneiras distintas de lidar com a legitimidade política. Enquanto parte da literatura privilegia os instrumentos procedimentais de representação e a formação da opinião pública, outros autores conferem primazia ao conteúdo substantivo das decisões, fazendo recair o foco sobre as instituições contramajoritárias. O artigo “Democracia, Legitimidade e Justiça: um argumento sobre o diálogo interinstitucional”, de minha autoria, publicado na última edição da Revista Lua Nova, examina a disputa entre “procedimentalistas” e “substantivistas”, problematizando tanto aquelas soluções que depositam o valor da legitimidade sobre o consenso popular ou os tribunais da razão pública, quanto a ideia de co-originalidade.
Do ponto de vista teórico, uma decisão será capaz de reivindicar autoridade em uma sociedade democrática na medida em que seja justificável para os membros da comunidade. Desta consideração emerge o dever de obediência. Portanto, os critérios de justificabilidade incorporam tanto uma dimensão prática quanto um elemento de prescrição político-moral. Em outras palavras, “[q]uando afirmamos que uma decisão é legítima, fica implícito que ela engendra certo dever de obediência, mesmo que não se esteja plenamente de acordo com o seu conteúdo” (Francisquini, 2022, p. 226). Os critérios de justificabilidade colocam em lados opostos aqueles que, de um lado, entendem ser o fundamento da legitimidade a igual consideração das reivindicações de todos os cidadãos e cidadãs (Dahl, 1989; Waldron, 1999); e, de outro, aqueles que sustentam a necessidade de assegurar pela via da revisão judicial os direitos individuais (Dworkin, 2010).
Apesar dessa diferença irreconciliável, as duas posições parecem convergir no sentido de atribuir a uma instituição (no primeiro caso ao Poder Legislativo e, no segundo, ao Poder Judiciário) a última palavra no que toca às decisões políticas mais importantes. Aqueles que tentam escapar ao maniqueísmo sugerem que a democracia se constitui igualmente de princípios formais e substantivos (Gutmann & Thompson, 2004), ou mesmo que não deveria haver um conflito entre procedimento e substância, pois as autonomias pública e privada seriam co-originárias (Habermas, 1998). Para esta literatura, ao reconhecer a importância da soberania popular e dos direitos fundamentais, não seria necessário recorrer a teorias sobre a última palavra.
No artigo, embora reconheça, como o fazem Gutmann e Thompson (2004) e Habermas (1998), a dificuldade de renunciar a estes ideais, ao mesmo tempo, considero inevitável o choque entre valores procedimentais e substantivos. Em diversas circunstâncias, estes valores farão reivindicações conflitantes em relação ao arranjo institucional para se chegar a decisões legítimas. Para evitar essa “escolha de Sofia”, argumento que a perspectiva dos sistemas deliberativos (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016; Mansbridge et al., 2012) oferece uma saída ao espraiar a reivindicação de legitimidade para o “sistema deliberativo”, ao invés de situá-la em uma instituição específica. Nesse aspecto, “em vez de pensar em quem deve ter a ’última palavra’ nas decisões coletivas, seria mais adequado nos voltarmos à ideia de um ‘diálogo interinstitucional’” (Francisquini, 2022, p. 229). O fundamento da legitimidade, dessa forma, prolonga-se no tempo e no espaço, em um diálogo entre as instituições do sistema político e entre estas e os fóruns públicos da sociedade civil. Distribui-se, assim, o peso da legitimidade entre os diversos componentes do sistema deliberativo (Mansbridge et al., 2012).
Parte dos conflitos institucionais mais recentes no Brasil, que põem em xeque o regime democrático construído sobre os escombros da ditadura militar (1964-1985), dizem respeito à prerrogativa de emitir a última palavra em decisões coletivas marcadas por profundos conflitos de interesses e de valores. O projeto autoritário do atual presidente tem como uma de suas premissas a suposta autoridade do chefe do Poder Executivo, eleito pela maioria da população, de se sobrepor às regras do jogo político e às decisões de tribunais como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF). De outro lado, as cortes e os seus ministros defendem a sua prerrogativa de dar a última palavra, como intérpretes da Constituição, em decisões que dizem ter impacto significativo sobre a sociedade, e que vão desde o mandato de representantes eleitos até a extensão da liberdade de expressão.
O dilema apresentado no artigo se evidencia, de um lado, quando decisões tomadas por um representante eleito podem violar direitos individuais ou mesmo normas que assegurem a própria continuidade do regime democrático. E, de outro, aparece em situações nas quais decisões das cortes, a fim de garantir os direitos individuais ou mesmo o direito da oposição de contestar publicamente o governo, se interpõem às ações de representantes eleitos. Podemos perceber, portanto, que embora possa haver uma mútua pressuposição entre autonomia pública e privada, na prática, estes valores inevitavelmente acabam por colidir. Sustento no artigo que a ideia do “diálogo interinstitucional” seria uma estratégia para rechaçar as teorias da última palavra. Dessa perspectiva, “a gramática da estrutura institucional das democracias modernas, para além da virtude da moderação, realiza uma importante função de relativizar a ‘última palavra’” (Francisquini, 2022, p. 266; ver também Mendes, 2008). Ao espraiar as reivindicações por legitimidade nas diversas instituições que compõem o sistema deliberativo, estimulamos uma relação mais virtuosa entre princípios que são, a um só tempo, complementares e concorrentes.
Nesse aspecto, a dinâmica política não se encerra na palavra de uma instituição específica, seja das instâncias de representação política, seja dos tribunais e cortes constitucionais. As interações que se estabelecem entre as instituições do sistema político, e entre estas e a sociedade civil, contribuem para um teste contínuo das reivindicações de autoridade das decisões, modificando a própria expectativa de cada uma dessas instâncias em relação umas às outras, impactando o seu comportamento em rodadas futuras. Na medida em que é inevitável a permanência de um desacordo acerca dos valores que justificam as decisões coletivas, o que nos resta, enquanto sociedade, senão continuar dialogando? (Martí, 2006).
Não se trata, por certo, de dar voz aos que, como o sujeito que ora ocupa o Palácio do Planalto, reivindicam o direito de não obedecer às normas por se estar em desacordo com elas ou simplesmente pelo mandato conferido a ele, no último pleito, por meio do voto em urnas eletrônicas. A ideia, ao contrário, é determinar que as decisões serão consideradas legítimas quando resultarem de um processo deliberativo em que todos e todas sejam incluídos/as, mas que são sempre provisórias e sujeitas à revisão a partir da apresentação de razões ulteriores. Este processo se estende no espaço e no tempo e está continuamente aberto ao julgamento dos cidadãos e cidadãs. Gostaria de sustentar, portanto, que a integridade de um regime democrático deve ser pensada pela medida em que ele é capaz de justificar perante a sociedade as suas decisões, bem como por sua capacidade de mantê-las abertas ao diálogo e ao desafio deliberativo.
Convido a todos e todas à leitura do artigo. Os argumentos apresentados, como não poderia deixar de ser, são provisórios e estão fundamentalmente abertos ao contraditório e ao julgamento dos leitores e leitoras que se aventurarem a participar deste diálogo.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.
DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.
ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
FRANCISQUINI, Renato. 2022. Democracia, Legitimidade e Justiça: um argumento sobre o diálogo interinstitucional. Lua Nova, São Paulo, 115: 225-270. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-225270/115>. Acesso em: 23 jul. 2022.
GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.
HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.
MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 1-26.
MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.
MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP.
WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.
[1] Professor do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH-UFBA), do Grupo de Pesquisas sobre Democracia, Participação e Representação (Depare) e do Núcleo de Estudos em Teoria Política Institucional (Nutepi). E-mail: renato.francisquini@ufba.br
Fonte Imagética: Senado Notícias. Projeto limita poder de ministros do STF em decisões monocráticas. 10 mar. 2021. Fotografia de Dorivan Marinho/SCO/STF. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/10/projeto-limita-poder-de-ministros-do-stf-em-decisoes-monocraticas>. Acesso em: 23 jul. 2022.