Fernando José Lourenço Filho[1]
Ao longo da carreira profissional de Pelé é possível observar uma transformação constante de sua imagem, que já se torna perceptível desde o início de sua trajetória. Entretanto, apesar de todas as mutações, algo se faz constante no decorrer deste percurso. A presença de um discurso racista em relação a ele. E mesmo que estas sucessivas ressignificações de sua imagem produzam diferentes representações do jogador, a percepção que temos ao analisar a biografia de Pelé como um todo é a de que ele, seja como futebolista, seja como pessoa pública, jamais “esteve imune ao enfrentamento do preconceito e da discriminação racial, seja de forma explícita ou de forma dissimulada” (Basthi, 2008, p. 127).
Mesmo que o próprio Pelé tenha afirmado inúmeras vezes ao longo de sua vida que jamais teria sido vítima do racismo no Brasil, e em outras tenha até negado a existência deste mesmo racismo em seu país, frequentemente a imprensa e os torcedores usaram de discursos com teor racista para se referir a ele. Seja quando ainda aparecia pelas primeiras vezes nas páginas dos periódicos esportivos e era chamado de “esse negrinho”; seja quando foi alçado por Nelson Rodrigues, à revelia de sua vontade, como um símbolo do orgulho racial negro; seja quando ele era chamado simplesmente de “negrão” ou “criolo” por cronistas e torcedores; ou, ainda, quando mesmo já campeão do mundo, foi chamado de “saci”, discursos com a temática racial foram recorrentes em grande parte dos momentos em que seu nome foi mencionado.
Contudo, esta postura omissa de Pelé em relação ao racismo no Brasil não pode diminuir a importância de sua figura para a luta contra este mesmo racismo, ao menos no campo simbólico. Todo o sucesso alcançado por ele o coloca, enquanto um homem negro, em uma posição de destaque positivo dentro do imaginário brasileiro, apesar das tentativas de invisibilização ou de estereotipização de sua identidade racial por parte da crônica esportiva. Em outras palavras, o sucesso e a visibilidade alcançados por Pelé serão desafios e afrontas constantes ao racismo estrutural, por mais que o próprio Pelé não questionasse publicamente este traço marcante da sociedade brasileira.
Mas se por um lado, dentro de uma perspectiva racista, principalmente por parte da imprensa brasileira, ele será comparado a um saci, por outro, para parte da imprensa europeia a comparação deve ser feita com outra figura, o meio-campista Ferenc Puskás, destaque da seleção húngara vice-campeã mundial em 1954.
Pelé em seu início de carreira sempre foi comparado com outros jogadores ou ex-jogadores já mais consagrados, como Leônidas, Domingos da Guia, Zizinho e Didi, todos eles negros. Após o seu grande desempenho durante a Copa da Suécia (1958), estas comparações continuam a ser feitas, porém de outra maneira.
Esta mudança se deve ao fato de que Pelé já dava provas que era uma estrela com luz própria e, portanto, o modo de comparação obrigatoriamente deveria ser outro. As comparações que serão feitas a partir de agora, pelo menos neste momento de euforia pela conquista do título mundial, não serão no sentido de mostrar que Pelé lembra Zizinho, ou que é semelhante a Leônidas, ou ainda que é a versão atacante de Domingos da Guia. As comparações serão feitas no sentido de demonstrar que ele é, na verdade, melhor que um outro grande jogador consagrado, no caso, melhor que Puskás.
Segundo o Jornal dos Sports, periódicos europeus, cujos nomes não são mencionados, prestavam muitas homenagens aos jogadores brasileiros, mas principalmente a Pelé, jogador que era considerado por eles a maior revelação da Copa de 1958 e, já naquela altura, um futebolista superior a Puskás[2].
Esta comparação, mesmo que sutilmente, coloca Pelé em um nível bem superior ao que ele se encontrava até então, na medida que a analogia feita agora ultrapassa os limites do futebol brasileiro, o comparando com um jogador estrangeiro e que, até recentemente, era considerado por muitos o melhor jogador do mundo. Ou seja, o estabelecimento deste novo critério de comparação envolvendo o nome de Pelé não está mais restrito a apenas outros jogadores brasileiros. Nesta nova comparação, agora tendo Puskás como referência, o que está em pauta não é se ele é, ou não é, o melhor jogador do Brasil, mas sim se ele é ou não é o melhor jogador do mundo.
Mas como dissemos acima, esta comparação apenas coloca Pelé, sutilmente, neste nível. Isso porque o jogador eleito como o melhor da Copa do Mundo de 1958, e consequentemente da seleção brasileira, de maneira quase unânime pela imprensa esportiva que cobriu o torneio, foi Didi. Pelé, embora bastante elogiado, era mencionado muito mais como a principal revelação, ou como o melhor jogador jovem do campeonato.
Mesmo assim, percebemos nesta comparação entre Pelé e Puskás algo que viria a ser muito frequente nos anos subsequentes da carreira do jogador brasileiro. Isto é, menções diretas, ou indiretas, de que ele era o melhor jogador de futebol do mundo, ou que ao menos, poderia estar na lista daqueles que eram considerados os melhores. E uma prova deste status de Pelé é que, neste mesmo contexto em que ele é comparado a Puskás, o Real Madrid teria supostamente feito uma nova oferta de 15 milhões de cruzeiros ao Santos[3] para contar com o futebol do jovem jogador e assim possibilitar que Pelé e o jogador húngaro atuassem juntos pela equipe espanhola. Mas isso nunca ocorreu.
Com esta suposta nova proposta feita pelo Real Madrid, segundo o Jornal dos Sports, percebemos que a mudança do status de Pelé, após a Copa do Mundo, também ocorre em termos financeiros. Se nas vésperas da partida contra a União Soviética o clube espanhol teria feito uma oferta de 8 milhões de cruzeiros por seu passe, passado um pouco mais de duas semanas os espanhóis quase que dobraram a sua proposta. Tamanha inflação no “preço” de Pelé, em um espaço tão curto de tempo, mesmo não seja possível averiguar se as propostas do Real Madrid realmente existiram, dá uma dimensão da maneira como Pelé começava a ser percebido, e qual era o seu novo “tamanho” dentro do universo do futebol.
Entretanto, os 15 milhões ofertados pelos merengues pelo negro Pelé ainda eram menores do que os 25 milhões pagos pelo Milan pelo passe de Mazzola, jogador brasileiro branco, de origem italiana, campeão da copa do mundo de 1958 ao lado de Pelé, evidenciando que jogadores negros, por melhor que sejam, neste contexto, eram menos valorizados do que jogadores brancos.
Seja qual fosse o valor exato de Pelé, em termos financeiros, fato é que ele não era mais apenas uma revelação, ou apenas mais uma promessa do futebol. No dia que antecedeu a chegada da seleção brasileira ao Brasil segundo um de seus colegas de equipe da conquista na Suécia, o lateral-esquerdo Nilton Santos, o próprio Pelé parecia perceber este seu novo patamar, ao imaginar seu papel já para a próxima Copa do Mundo, em 1962, no Chile.
De acordo com Santos, em depoimento concedido ao cronista Geraldo Romualdo da Silva, e publicado no Jornal dos Sports, Pelé lhe teria perguntado: “Se, aos 17 anos, conquistei uma Copa do Mundo, é natural que aos 21 pense noutra – ou será que estou exagerando?”[4]. Segundo outro companheiro de seleção, Didi, o mesmo com o qual Pelé era frequentemente comparado, o jovem atleta não estava exagerando. Didi, no dia da chegada da delegação brasileira ao Rio de Janeiro, disse à Gazeta Esportiva que “Pelé tem muito futebol pela frente. Será um dos mais destacados jogadores de futebol do mundo. Brilhou neste certame, e, acredito, será outra sensação no campeonato a realizar-se no Chile.”[5]
Pelé a partir de agora, não era mais um atleta ao qual eventualmente se insinuava a possibilidade de um futuro promissor. Seja para seus colegas, seja para a maioria da crônica esportiva, seja para a maioria dos torcedores, ou até para ele mesmo, Pelé já era um grande jogador, ou conforme disse Didi, um dos melhores do mundo.
A recepção feita para os jogadores da seleção em seu retorno para o Brasil foi, conforme repetiam os periódicos da época, um verdadeiro carnaval. Segundo o Última Hora o “carnaval renasceu na euforia do campeonato”[6], enquanto “o povo chorava com os campeões”[7]. Para o Jornal dos Sports o “Rei Momo reinou fora do reinado”[8] com chegada do scratch ao Rio de Janeiro. A revista Manchete Esportiva, inclusive, afirmou que o quinto gol do Brasil contra Suécia, marcado por Pelé, foi o estopim “para festejar o maior carnaval de todos os tempos.”[9] E neste carnaval, que se mostrou verdadeiramente grandioso, Pelé foi um dos mais homenageados.
Duarte Gralheiro, em sua coluna “Ponta de Lança”, sintetizou o cenário de festa que se encontrava o país, extasiada pela chegada dos vencedores da Copa do Mundo. Segundo o cronista,
“Os artistas da bola estão transformados em heróis nacionais. A cidade saiu ontem à rua para recebê-los, libertando um recalque de oito anos. Aquela mocinha de blusa azul que chorou no Maracanã, numa tarde clara e seca de 50, passeou seu contentamento na Avenida. Ia num bloco sacolejante de brotos e levava os olhos iluminados pela vitória. O Presidente, o ministro, o general, o magistrado, o deputado, o vereador, o advogado, o comerciante e o comerciário, foram abraçar os cracks. Era apoteose do football como desporto de uma nação.”[10]
Ao se ler os jornais e as revistas daqueles dias de 1958, fica a impressão que realmente o clima do país era dos mais alegres por conta do título trazido pela seleção. Nelson Rodrigues, em uma de suas crônicas publicadas pela Manchete Esportiva, embalado pela euforia da vitória, chega a afirmar que a conquista da Copa do Mundo operou um milagre no Brasil: “Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo”[11]. De acordo com Nelson, todos queriam saber como haviam corrido as coisas na Suécia, todos liam e reliam os jornais em busca de informação, até mesmo, segundo ele, os analfabetos. Exageros à parte, Nelson Rodrigues tinha lá sua razão. Conforme escreveu Gralheiro, do presidente da república ao simples comerciário, todos queriam saber dos jogadores da seleçãoe abraçá-los. E Juscelino Kubitschek fez questão de recepcionar pessoalmente os jogadores.
O presidente disponibilizou o avião presidencial para a delegação brasileira, para que assim que chegassem ao território nacional, em Recife, trocassem de aeronave e viessem para o Rio de Janeiro. Já na capital pernambucana uma multidão de torcedores esperava os campeões mundiais no aeroporto, mesmo que para saudá-los rapidamente. Na chegada à então capital federal, e após desfilar em carros de bombeiro pela Avenida Rio Branco, a seleção chegou à sede do poder executivo, o Palácio do Catete, onde o presidente da república, imprensa e familiares dos jogadores os aguardavam.
JK distribuiu medalhas e diplomas a todos os membros da delegação brasileira, se fez fotografar com jogadores e com a Taça do Mundo, que na verdade não era a taça verdadeira, mas sim, por questões de segurança, uma réplica da taça original[12], e ainda chegou a tomar o “vinho da vitória”, usando a própria Jules Rimet como copo. Ainda fez um discurso, comentando a importância da conquista da Copa do Mundo, concluindo com a seguinte mensagem: “Faço votos para que a nação brasileira continue na mesma senda e na mesma marcha, trazendo para o nosso povo títulos que lhe dão a (medida) de sua grandeza”[13].
Com esta fala, Kubitschek evidentemente parece querer associar o título na Suécia, à mesma marcha que o seu governo desejava colocar o Brasil com o Programa de Metas. Acelerar o desenvolvimento nacional, industrializar o país e construir a nova capital, Brasília, entre várias outras medidas. Ou seja, buscava ligar o sucesso alcançado pelo futebol e a superação das derrotas do passado, ao seu projeto de um país novo, com ares de modernidade e voltado para o futuro.
Mais de dois meses antes do título na Suécia, às vésperas do embarque da seleção para a Europa, a delegação brasileira fez uma visita a JK no Palácio do Catete, descrita por Mário Filho em sua biografia de Pelé. Neste encontro entre o presidente e os atletas, Kubitschek foi apresentado a cada um dos jogadores que compunham o grupo. Coube ao dentista da delegação, o brincalhão Mário Trigo, apresentar Pelé ao presidente. Segundo as palavras de Mário Filho, o encontro teria transcorrido da seguinte maneira:
“- Pelé, Presidente. O caçula da delegação. Dezessete anos. Pelé sorria, seguro de si, Juscelino Kubitschek sentiu um aperto de mão firme. – É o Brasil novo que eu vejo – e olhou mais para Pelé para gravar-lhe a fisionomia franca, saudável, confiante.” (Filho, 1963, p. 174)
JK que, à sua maneira, desejava construir um novo Brasil, e que nesta tentativa de fazê-lo acabou até por inspirar o modelo de organização e preparação da seleção brasileira para a Copa do Mundo de 1958, encontrava ali, ao menos segundo a versão romanceada de Mário Filho, a cara deste novo Brasil imaginado por ele, personificada em um jovem negro, altivo, sorridente e orgulhoso de si.
Não é possível afirmar que este “Brasil novo”, vislumbrado por Kubitschek, tenha de fato se realizado plenamente. Contudo, esta fisionomia tão atenciosamente observada por ele, quando foi apresentado a Pelé, se tornaria não necessariamente o rosto de um Brasil novo, mas sobretudo o rosto pelo qual o país seria conhecido mundo afora. Um rosto que se tornaria um dos mais conhecidos no mundo, um rosto que seria visto como sinônimo de Brasil, o rosto de um homem negro sorridente e seguro de si, o rosto de Pelé.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
BASTHI, Angélica. Pelé: estrela negra em campos verdes. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2008.
FILHO, Mário. Viagem em torno de Pelé. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963.
[1] Historiador, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador do NAP Ludens – USP (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas). Email: fjlfilho@gmail.com. Trecho retirado da dissertação de mestrado “Tornar-se Pelé: a ascensão de um jovem jogador negro no futebol brasileiro”, apresentada pelo autor ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em novembro de 2023.
[2] “Pelé é superior a Ferenc Puskas”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 1 de julho de 1958, p. 9.
[3] “O Real Madrid ofereceu quinze milhões por Pelé”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 1 de julho de 1958, p. 6.
[4] “Meu uniforme irá para casa”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 2 de julho de 1958, p. 11.
[5] “E um jogador extraordinário e com muito futebol pela frente”. A Gazeta Esportiva. São Paulo: 4 de julho de 1958, p. 5.
[6] “Carnaval renasceu na euforia do campeonato”. Última Hora. Rio de Janeiro: 3 de julho de 1958, p. 1.
[7] “Delírio nas ruas: o povo chorava com os campeões”. Última Hora. Rio de Janeiro:: 3 de julho de 1958, p. 1.
[8] “Rei Momo reinou fora do reinado”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 3 de julho de 1958, p. 1.
[9] “Viva o Brasil”. Manchete Esportiva. Rio de Janeiro: 12 de julho de 1958, p. 40.
[10] “Pão e footbali”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 3 de julho de 1958, p. 6.l
[11] “Meu Personagem da Semana”. Manchete Esportiva. Rio de Janeiro: 5 de julho de 1958, p. 36.
[12] “Do Galeão ao Catete, a Taça Jules Rimet”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 3 de julho de 1958, p. 8.
[13] “Recebo a taça para a nação!”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: 3 de julho de 1958, p. 8.
Fonte Imagética: O Cruzeiro. Rio de Janeiro: 12 de julho de 1958, p. 46.