Juliana Vinuto1
06 de março de 2025
Neste pequeno texto apresentarei de modo conciso os principais resultados de uma pesquisa que publiquei na Revista Brasileira de Ciências Sociais2, ocasião em que discuti alguns modos de naturalização da seletividade penal-racial no que se refere a adolescentes que cumprem medida socioeducativa no estado do Rio de Janeiro. Gostaria de pensar como uma robusta articulação entre segurança pública, justiça juvenil e instituições de medida socioeducativa tem encarcerado, em sua maioria, adolescentes negros ao longo dos anos, mas isso não arranha a imagem pública de imparcialidade na punição direcionada a menores de idade.
Considero este debate importante por vários motivos, sendo que aqui vou desenvolver apenas um deles: a contribuição desta discussão para a análise mais ampla sobre os desafios na prática cotidiana da pesquisa qualitativa sobre racismo. Um dos principais resultados da minha pesquisa é que, apesar do discurso socialmente partilhado segundo o qual não há racismo nas unidades socioeducativas, há a produção cotidiana de hierarquias raciais que efetivamente afetam os serviços prestados junto aos adolescentes considerados “em conflito com a lei”. No entanto, essas hierarquias são naturalizadas: os profissionais da socioeducação não necessariamente atuam de modo intencional ou consciente, mas, quando adolescentes brancos – usualmente de classe média, porém isso não é imprescindível – cumprem medida socioeducativa, costumam ser recebidos com questionamentos abismados do tipo “O que você está fazendo aqui?”. Esse modo incomum de receber esse adolescente branco explica, por contraste, o modo comum, e habitual com que o adolescente negro chega aos centros de socioeducação. E, como demonstro no artigo completo, isso não atinge apenas os adolescentes pretos: ainda que em algumas situações adolescentes pardos possam eventualmente contar com as benesses da passabilidade, em instituições privativas de liberdade isso raramente ocorre.
Desse modo, o tratamento usual dado à massa de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas tem sido orientado pelo que venho chamando de “suspeição generalizada”. Isso significa que a rotina dos centros de socioeducação é orientada por uma apreensão constante e difusa que não depende do comportamento concreto de um adolescente específico ou um grupo de adolescentes. É uma desconfiança contínua e ilimitada sobre as possibilidades futuras de comportamento que venham a ter. Essa suspeição, que é de fato generalizada, dificulta a aproximação e interação com os adolescentes, que são vistos como um conjunto de pessoas das quais se deve desconfiar. Como é comum ouvir no sistema socioeducativo fluminense: “Aqui todo mundo é vagabundo”.
A suspeição generalizada legitima a centralidade de procedimentos de segurança nos centros de socioeducação, que, legalmente falando, deveriam priorizar atividades educativas para aproveitar o momento em que os adolescentes vivenciam um momento singular de amadurecimento “físico, mental, moral, espiritual e social” (Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 3). Mas a suspeição generalizada se baseia, ao mesmo tempo que reforça, na naturalização da privação da liberdade de adolescentes negros, vistos de forma recorrente como essencialmente bandidos.
Há uma questão metodológica bem importante aqui: é muito fácil naturalizar a suspeição generalizada, definindo-a como uma reação espontânea dos profissionais dos centros de socioeducação a um perigo real de lidar com adolescentes “infratores”. No meu caso, em que não tive livre acesso às unidades para observar possíveis contrastes no tratamento direcionado a adolescentes brancos e negros, foi muito valioso ouvir profissionais do sistema socioeducativo que também militam – dentro e fora das unidades, em coletivos e em movimentos antirracistas. Foram estes os primeiros a perceber que essa tal suspeição generalizada também é racializada, já que nem todo adolescente é visto com desconfiança ininterrupta numa unidade socioeducativa.
E aqui fica a pergunta: como perceber processos de naturalização em nossas pesquisas se esses mesmos processos também estão naturalizados para nós, pesquisadores/as? Como é possível perceber, o artigo completo que estou sumarizando neste espaço tenta pensar em como analisar formas que não são explícitas nem intencionais de produção rotineira e institucional de desigualdades raciais. No entanto, antes de as analisar, qualquer pesquisador necessita se equipar com conhecimentos que permitam enxergar o racismo para além do que é formal ou declarado. Sem isso, mesmo os mais interessados não conseguirão ir além da constatação de que racismo existe ou da defesa de que se trata de um racismo “sutil”. Como pano de fundo, argumento que, com uma base teórica orientada pelo vasto campo de pesquisas sobre desigualdades raciais, além de uma base política interessada na questão, a suposta sutileza do racismo passa a ser definida como uma violência indiscutível – ainda que não se apresente em declarações assumidas.
Minha base teórica e política para a análise dos dados que acessei durante esta pesquisa veio principalmente do debate proposto por Lélia Gonzalez sobre “lugar de negro”, em livro homônimo de 1982 que ela coassina com Carlos Hasenbalg. Com essa categoria, Gonzalez se referia a espaços em que a violação de direitos e a violência são a regra, e, não à toa, são habitados por uma maioria negra. Fazendo referência a Aristóteles e à sua análise sobre “lugar natural”, Gonzalez permite pensar as desigualdades raciais para além das relações e interações individuais para se refletir sobre o contexto no qual tais relações e interações ocorrem. Com base em seu argumento, proponho que as medidas socioeducativas são “lugares de negro” e, por isso, como disse no início deste texto (e vale a pena me repetir aqui) a “robusta articulação entre segurança pública, justiça juvenil e instituições de medida socioeducativa tem encarcerado, em sua maioria, adolescentes negros ao longo dos anos, mas isso não arranha a imagem pública de imparcialidade na punição direcionada a menores de idade”.
A constante violação de direitos e a violência não causam comoção em unidades socioeducativas porque estamos tratando de um lugar de negro e, nesse espaço, as desigualdades raciais são naturalizadas de diferentes formas, inclusive a partir da suspeição generalizada. Penso que uma das principais contribuições desta pesquisa foi olhar para esses processos mais amplos de desconfiança contínua como uma manifestação de racismo institucional, o que só foi possível de ser desnaturalizado ao me apoiar no trabalho de Lélia Gonzalez e nas discussões propostas por profissionais-ativistas das unidades socioeducativas do estado do Rio de Janeiro. Penso que levar a sério essas abordagens pode estimular outros pesquisadores a analisarem as desigualdades raciais existentes em seus temas de pesquisa para ir além da constatação de que o racismo existe.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Professora do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) na Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do Negra-UFF (Núcleo de Estudos e Pesquisas Guerreiro Ramos). ↩︎
- VINUTO, Juliana. “Todo mundo aqui é tratado do jeito que merece”: suspeição generalizada e naturalização da privação de liberdade de adolescentes negros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 39, p. e39002, 2024. Ver: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/kPQyMcTMwB5xGT4JFqFh7Wz/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 11 fev. 2025. ↩︎
Referência imagética: https://www.dropbox.com/scl/fi/6oo9omtnsqi3vgzzjbcs1/leliagonzalez.png?rlkey=blvoppoo7n1vkhhx4l7ds6f07&dl=0