Bruno Boti Bernardi1
João Roriz2
15 de julho de 2024
Há mais de setenta anos, os direitos humanos mobilizam afetos, ideias e ações em contextos domésticos e no cenário internacional. Pelo menos desde a década de 1970, os direitos humanos deixaram de ser apenas uma linguagem jurídico-diplomática e impulsionam ciclos de ativismo, denúncia e mobilização social (Moyn, 2010; Kelly, 2018; Sikkink, 2018). Os direitos humanos se consolidaram como uma espécie de língua franca capaz de enquadrar não apenas a vocalização de demandas e reivindicações pela sociedade civil, mas também as próprias políticas públicas de acesso e consecução de bens e garantias. A linguagem e o seu repertório de práticas se impuseram, paulatinamente, tanto sobre outras narrativas rivais de dissenso quanto sobre projetos e visões alternativos de legitimidade política (Donnelly, 2006; Hafner-Burton; Ron, 2009; Beitz, 2009).
A complexa rede discursiva e de instrumentos dos direitos humanos exerce uma poderosa força de atração ética, legal e institucional, com capacidade significativa de galvanizar as bases sociais específicas dos grupos que a utilizam. Como resultado, diferentes e sobrepostas camadas de normas, regras, mecanismos e organizações de direitos humanos se proliferaram em um ritmo sem precedentes desde o final do século XX, estimulando novos entendimentos e disposições político-legais nos mais diversos espaços e arenas domésticos e internacionais.
Porém, o campo dos direitos humanos assiste não apenas a movimentos de expansão, mas também a de contrações e retrocessos (Brysk, 2018). A despeito dessa enorme inflação dos direitos humanos, os sistemas de promoção e proteção permanecem defasados em face dos problemas e das condições atuais. Alguns dos desafios incluem: recessão democrática global, aumento das desigualdades socioeconômicas em tempos de hiperneoliberalismo, nacionalismos autoritários, extremas direitas anti-direitos, guerras culturais, discursos de ódio, práticas ampliadas de racismo e desumanização social, plataformas políticas xenófobas e pânicos morais religiosos.
Opositores aos direitos humanos se encontram fortalecidos não apenas para abertamente rechaçá-los e atacá-los, mas também para se apropriar da linguagem a fim de distorcê-la e catalisar movimentos com propósitos abertamente iliberais e agressivos, sem disfarçar objetivos de combater grupos sociais mais fracos, esmagar as ideias e demandas de minorias e facilitar a opressão (Bob, 2012; 2019). Com sentimentos de preocupação e impotência política, vemos uma profusão de Estados e sociedades regredir nas mais diferentes pautas de direitos humanos, com a rejeição expressa de normas e consensos internacionais que levaram décadas até serem alcançados. Conquistas e garantias de direitos que pareciam ser vitórias consolidadas no plano doméstico são anuladas com rapidez.
Diante desse cenário, os direitos humanos ainda têm lugar e impacto possível no nosso mundo ou estão com os dias contados (Hopgood, 2013)? Do ponto de vista acadêmico, como pensar analiticamente as perspectivas dos direitos humanos nesses cenários desfavoráveis? A fim de mapear e explorar os ainda existentes espaços para a proteção e expansão dos direitos humanos (Stohl, 2018), e também para investigar possíveis novos enquadramentos, abordagens e bases sociais de sustentação dos direitos humanos, é fundamental e urgente aprimorar nossa compreensão sobre a dimensão dos desafios colocados ao impacto das normas internacionais na matéria.
Com esse objetivo em mente, realizamos uma análise crítica do principal modelo analítico da área de Relações Internacionais sobre o impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos, o chamado modelo espiral (Risse; Ropp; Sikkink, 2013). No artigo “A multi-level analysis on the impact of international human rights norms and pressures: interactive effects beyond the spiral model”, disponível por meio de acesso gratuito ao número 121/2024 da revista Lua Nova, argumentamos que a abordagem do modelo espiral, e outras igualmente centradas apenas na análise político-institucional dos Estados e governos, não contemplam uma visão abrangente sobre o impacto. Além de uma leitura crítica sobre o modelo espiral, apresentamos reflexões teóricas e analíticas para suprir essas falhas.
Em resumo, o modelo espiral afirma que o impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos, dentro dos países, depende de cinco condições da política interna dos Estados, as chamadas “condições de escopo”. Elas são: tipo de regime político (autoritário ou democrático); alcance do poder e autoridade soberana do Estado (estado consolidado ou limitado); natureza do processo de implementação da política pública requerida para a mudança de comportamento e práticas (implementação centralizada ou descentralizada); grau de vulnerabilidade material (exposição a custos comerciais e financeiros perante parceiros estrangeiros) e grau de vulnerabilidade social em resposta às demandas de direitos humanos (exposição a danos de imagem e reputação).
Quanto mais vulneráveis forem os países, material e socialmente, e quanto mais consolidadas forem suas democracias, estatalidades e escalas de centralização durante a implementação de novas políticas, maiores serão as dimensões de vontade e capacidade políticas dos governos em relação aos direitos humanos. Isso aumentaria, em consequência, as chances de impacto de normas e pressões internacionais.
Com foco nas condições político-institucionais domésticas dos países que filtram as pressões e/ou estímulos internacionais de direitos humanos, essa abordagem centrada no Estado esconde pelo menos três outras dimensões centrais para a discussão do impacto. No nosso artigo, defendemos que, antes de analisar se as pressões internacionais e transnacionais de direitos humanos serão bem-recepcionadas pelas cinco variáveis domésticas do modelo espiral, devemos entender: 1) o grau de enraizamento das violações que se busca combater no contexto social, político e econômico local; 2) o caráter da relação de intermediação político-legal que os profissionais dos direitos humanos estabelecem com vítimas e movimentos locais, uma vez que são os porta-vozes e defensores formais desses grupos perante o Estado e organizações internacionais; e 3) a política burocrática e a correlação de forças no interior dos organismos internacionais de direitos humanos.
Entendemos que o impacto é muito mais difícil do que supõe o modelo espiral. Não se trata, em face das agendas de direitos humanos, apenas de um problema de permeabilidade, interesses, aptidão, habilidades ou capacidades dos Estados. Para além do plano estatal e governamental doméstico, chamamos a atenção para: a esfera de reprodução e naturalização social de violências em larga escala; a esfera transnacional do mercado profissional dos especialistas de direitos humanos e das suas ligações com atores desempoderados e marginalizados, atingidos por abusos; e a esfera intergovernamental – com seus entraves, vetos e janelas de oportunidades políticas e normativas – que se coloca diante das atividades dos mecanismos internacionais de direitos humanos que recebem as denúncias, disseminam as normas e tomam decisões em casos concretos. Ignorar essas três dimensões impede que as pesquisas alcancem uma visão holística sobre o impacto das normas internacionais.
Fontes sociais das violações de direitos humanos
Em primeiro lugar, o impacto depende do contexto social e político interno mais amplo dos países. Em particular, depende de quão estruturais e enraizadas são as fontes sociais das violações de direitos humanos no plano doméstico. Nesse aspecto, importa a correlação de forças entre os principais atores pró e anti-direitos humanos, dentro e fora do Estado, e a extensão da difusão ideológica de suas respectivas visões de mundo – inclusivas ou exclusivistas – sobre direitos humanos.
Tais atores domésticos estão em constante choque e disputa, um processo complexo, multifacetado e flutuante em torno da agenda de direitos (Cardenas, 2007; Dai, 2007; Bernardi, 2019). De um lado, estão atores que lutam por mais direitos e pelo combate a práticas e discursos desumanizantes (racistas, sexistas, classistas, anti-diversidades sexuais, anti-migrantes, contrários à liberdade religiosa, entre outros). Do outro, estão atores contra a expansão de direitos – ou em favor da retirada de direitos – em relação a grupos historicamente marginalizados, vistos como inferiores, empecilhos ou ameaças, e contra os quais regras de exceção devem ser permitidas.
Nesse jogo político, há possibilidades de avanços se os atores pró-direitos humanos tiverem preponderância ou alguma vantagem política e estratégica. Porém, em situações de predomínio político, econômico ou ideológico dos grupos anti-direitos humanos – ou ainda em cenários de equilíbrio de poder entre atores pró e anti-direitos humanos –, impasses e regressões tendem a prevalecer nas pautas de direitos humanos, mesmo em democracias supostamente consolidadas e com excelentes condições de escopo institucionais para o impacto. Essas questões estão fora do alcance analítico do modelo espiral e precisam ser incorporadas às pesquisas.
Profissionais de direitos humanos e vítimas de violações
Em segundo lugar, o modelo espiral desconsidera os termos, bases, fundamentos e potencialidades das ações de organizações não-governamentais (ONGs) e profissionais que empregam a linguagem dos direitos humanos em nome das vítimas. O modelo espiral supõe que tais atores profissionais, movidos por princípios e profundos compromissos morais e éticos, necessariamente contribuirão para alavancar e empoderar o ativismo local e grupos oprimidos nos países-alvo. De acordo com essa perspectiva, em contextos político-institucionais domésticos minimamente favoráveis, as ONGs de direitos humanos, mesmo sem diálogo e construção conjunta de pautas com vítimas e atores de base, sempre promoverão efeitos positivos e de transformação social.
No entanto, a relação entre os profissionais de direitos humanos e os atores sociais de base pode ser outra. Uma literatura destaca o distanciamento entre eles (Hopgood, 2013; Kennedy, 2002), o que distorce e prejudica qualquer impacto posterior de normas e pressões internacionais de direitos humanos. Para conhecer o tipo de interlocução existente, é preciso avaliar ao menos três variáveis: 1) o grau de reconhecimento das vítimas em relação a esses profissionais; 2) o grau de prestação de contas (accountability) dos profissionais em face das vítimas; e 3) as maneiras como os profissionais de direitos humanos formatam o conteúdo da demanda levada adiante.
Quanto maior o reconhecimento da atuação profissional pelas vítimas, sua prestação de contas e conservação, na sua agenda, do grau original de radicalidade e antagonismo das queixas dos grupos afetados, mais forte e legítima será a mensagem de estímulo enviada aos organismos internacionais e ao Estado. Assim aumenta-se a chance de impactos disruptivos, transformadores e emancipatórios das decisões e normas internacionais. Comportamentos no sentido contrário por parte dos profissionais de direitos humanos tenderão a reforçar o status quo em favor dos Estados, o que alimenta atos de “conversa fiada” (cheap talk) e políticas de camuflagem (window dressing), ou legitima concessões táticas e cosméticas de governos aos organismos internacionais com a chancela dessa sociedade civil organizada. O modelo espiral ignora essas dinâmicas.
Política burocrática interna dos organismos internacionais
Finalmente, o modelo espiral desconsidera a dimensão política, institucional e burocrática dos organismos e mecanismos internacionais de direitos humanos. Isso é especialmente problemático porque a priorização estratégica de certas pautas, o potencial de inovações normativas expansivas e o caráter das decisões desses organismos – ou seja, a qualidade, utilidade e alcance finais dos pronunciamentos realizados – dependem da política e da correlação de forças no interior dessas burocracias, da sua capacidade de criar arcos de alianças com atores da sociedade civil (González-Ocantos, 2016; Haddad, 2018; González-Ocantos; Sandholtz, 2022), e ainda tanto das características e propriedades institucionais dos organismos quanto das aberturas, indiferenças ou bloqueios explícitos dos Estados às agendas abordadas (Mahoney; Thelen, 2010; Hacker et al., 2015).
Em outras palavras, dependendo das condições políticas externas ao órgão; de suas propriedades institucionais e grau de discricionariedade; e da correlação de forças internas entre seus membros, os organismos internacionais podem seguir seus mandatos protetivos originais ou se tornar excessivamente deferentes ou irrelevantes perante os Estados. Tais possibilidades de resultados obviamente precisam pautar qualquer discussão sobre as perspectivas de impacto doméstico das decisões e normas desses organismos.
Nesse sentido, essa intricada rede de fatores dentro dos organismos, a depender da sua configuração concreta nos casos específicos, produz decisões mais ou menos progressistas, localizadas e vernacularizadas, de acordo com as realidades locais das violações e ancoradas (ou não) em atores-chave dentro dos países, gerando, portanto, maior ou menor potencial de impacto. Por conta disso, tal dimensão precisa ser igualmente incorporada a uma compreensão analítica ampliada sobre o fenômeno do impacto.
Comentários finais
Nosso texto pretende ampliar a análise do impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos para além da abordagem restritiva do modelo espiral, com seu foco exclusivo nas condições político-institucionais domésticas dos países. As fontes sociais de violações e de backlashes, as práticas e relações de intermediação político-legal da sociedade civil, entre vítimas e ativistas profissionais, e também as respostas dos organismos internacionais diante dessas dinâmicas ampliam a capacidade explicativa.
O modelo espiral foi forjado na atmosfera otimista dos anos pós-Guerra Fria, entre a conclusão do processo de democratização da terceira onda e a expansão crescente dos mecanismos de direitos humanos durante a década de 1990. Suas lacunas analíticas são compreensíveis. No entanto, no atual contexto histórico, caracterizado não só por um sentimento crescente de recessão nos direitos humanos e de retrocesso democrático em todo o mundo, mas também por críticas crescentes sobre o fim dos tempos dos direitos humanos (Hopogood, 2013) e os seus resultados positivos duvidosos, na melhor das hipóteses, devemos confrontar essas lacunas do modelo espiral com uma perspectiva mais crítica e bem equipada. Desse modo, reforçamos nosso convite para que todas as pessoas leitoras do Boletim Lua Nova acessem nosso mais recente artigo na edição 121/2024 da revista Lua Nova. Boa leitura!
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
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- Professor de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados. Contato: brunobernardi@ufgd.edu.br ↩︎
- Professor de Relações Internacionais na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Contato: joaororiz@ufg.br. ↩︎
Referência imagética: In 2015, the Human Rights Council adopted the Advisory Committee Report “Role of local government in the promotion and protection of human rights”. The document saw great recognition of local governments as key actors in the promotion and defense of human rights at an international level. (Crédito: Jaurocks, 22 set 2015). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:UCLG_address_to_the_Human_Rights_Council_(2015).jpg>. Acesso em 20 maio 2024.