Munyque Lorany Ribeiro dos Santos[1]
O direito à vida é o principal direito humano. Um Estado que não zela pela vida de seus cidadãos e cidadãs não pode ser considerado um Estado democrático. A vida deve ser o primeiro direito garantido para que possamos exercer os demais, e o Estado precisa garantir esse direito, isto é, ser favorável ao desenvolvimento do ser. O direito à saúde também é direito à vida, e o direito ao trabalho é o que garante o sobreviver. No entanto, sabemos que lamentavelmente esse direito tem sido negado cotidianamente aos mais vulneráveis, dentre elas a comunidade transvestigêneres[2]. Essa é a realidade que o livro “Transver o mundo: existências e (re)existências de travestis e pessoas trans no 1º mapeamento de pessoas trans no município de São Paulo” objetivou elucidar, bem como trazer contribuições em termos de políticas públicas e direitos humanos.
O lançamento do livro ocorreu na última sexta-feira (29/05) e foi organizado pelo Centro de Estudos em Cultura Contemporânea (Cedec). O evento contou ainda com a participação de Carla Diéguez (FESPSP/Cedec) e Jaqueline Gomes de Jesus (IFRJ/FIOCRUZ), tendo sido transmitido à toda comunidade pelo YouTube. Na abertura, Carla Diéguez reforçou que se trata da primeira pesquisa de mapeamento das pessoas trans e travestis no município de São Paulo, como também ressaltou o fato de não haver dados oficiais acerca da porcentagem de pessoas trans no Brasil, mas afirma que a pesquisa pôde constatar que 2% da população brasileira faz parte dessa comunidade.
O estudo foi realizado entre dezembro de 2019 e maio de 2020 pelo Cedec em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Além disso, foi financiada com recursos provenientes de emendas parlamentares do Vereador Eduardo Suplicy (PT/SP). A pesquisa apresenta o perfil sociodemográfico e as condições de vida da população trans e travesti residente no município de São Paulo, o que atravessa questões como o direito à educação, emprego, saúde e os relatos de violência e preconceito vivenciados por essa população.
A pesquisa foi dividida em duas etapas: na fase quantitativa, foi feito um levantamento por amostragem do perfil das pessoas trans e travestis, em que foi perguntado idade, nível de escolaridade, estado civil, cargo ou profissão e demais informações de cunho demográfico. Na fase qualitativa, o foco foi traçar um panorama médio dessa população com base nos dados obtidos por meio das entrevistas. O maior compromisso do estudo foi apresentar as trajetórias das pessoas transvestigêneres, ressaltando a falta de oportunidades, a escassez ou ausência de direitos e também sua mobilização e (re)existência dentro do município de São Paulo.
Segundo a professora, pesquisadora e militante Jaqueline Gomes de Jesus, o livro “Transver o mundo” não traz apenas um retrato da realidade da população trans e travesti em São Paulo, mas também do Brasil. Isso porque alerta sobre as violências e dificuldades compartilhadas pela comunidade de modo mais amplo. Ela também ressalta o protagonismo dessas pessoas e sua (re)existência contra a necropolítica (MBEMBE, 2018), que cai pesadamente sobre essa população. Inspiradas em personalidades como Xica Manicongo[3] e aquelas detidas pela Operação Tarântula[4], várias outras emergem para denunciar e lutar contra as atrocidades sofridas por pessoas trans e travestis.
O Programa Transcidadania[5] é uma dessas centelhas de esperança, e tem desenvolvido um trabalho de referência nacional e internacional. Por meio de articulações políticas, o projeto tem conseguido implementar políticas públicas dirigidas à formação escolar e técnico-profissional para pessoas trans e travestis a fim de oportunizar outras formas de subsistência. Isso porque a prostituição continua sendo a principal ocupação para as pessoas trans, sobretudo para as mulheres, o que tem impactado profundamente na estigmatização dessa comunidade. Apesar deste ser um trabalho digno, ele expõe ainda mais as pessoas trans e travestis à marginalidade, à violência e ao risco de vida.
A pesquisa e as entrevistas realizadas apontam que a falta de oportunidades no mercado de trabalho é resultado da trajetória média de vida das pessoas trans e travestis, que se inicia com a descoberta de sua identidade de gênero na adolescência, culminando no abandono familiar e consequente saída do lar muito precocemente. Tendo que prover sua subsistência, a maioria deixa a escola para trabalhar, também motivadas pelo preconceito e discriminação sofridos dentro de sala de aula. Devido à baixa escolaridade, resta-lhes o subemprego, sendo o principal deles a prostituição.
No âmbito da saúde, novamente ocorre estigmatização, denominada por Jaqueline de Jesus como “síndrome do braço quebrado da trans”. Isso ocorre quando o atendimento médico-hospitalar tende a tratar qualquer enfermidade como decorrente da identidade de gênero das pessoas trans e travestis, não sendo ofertado o devido cuidado e atenção para as queixas ou até mesmo denúncias de violências sofridas. Ou seja, há uma naturalização do sofrimento dessa comunidade, que acaba sendo tratada com descaso e preconceito. Não é à toa que a expectativa média de vida dessa população é de 35 anos, enquanto que a expectativa de vida da população cis[6] é de 76 anos (IBGE, 2019).
Segundo Érika Hilton, em fala no prefácio da obra, isso é resultado do preconceito da sociedade e do fanatismo religioso que não permite que pais amem e aceitem seus filhes se eles forem uma pessoa trans. Por essa razão, Jaqueline de Jesus nos alerta sobre as armadilhas do neoconservadorismo presente em discursos impregnados de ódio e intolerância, que servem de combustível para o preconceito, fazendo com que mais e mais pessoas transvestigêneres sejam alvos do descaso e abjeção do poder público e da comunidade civil.
Perguntada sobre o quão distantes estamos de uma política ideal para as pessoas trans, Jaqueline de Jesus afirma que o primeiro passo é enxergar as políticas públicas como nossas. Afinal, apesar de atenderem demandas específicas das pessoas trans e travestis, elas têm compromisso com a promoção da cidadania e esta deve ser uma demanda reivindicada e protegida por todes. Ela também acredita que é necessário vigiar para que os direitos conquistados não sejam subtraídos, como é o caso da cobertura e proteção das mulheres trans pela lei anti-feminicídio[7] e Maria da Penha. Para isso, também é preciso que mais pessoas trans e travestis ocupem espaços de poder. A representatividade, neste caso, é fundamental para que seja cobrado de perto o cumprimento da norma.
O reconhecimento da identidade é outro ponto que precisa ser melhor implementado e fiscalizado. A retificação do nome civil é um direito das pessoas trans e travestis, segundo o Provimento n. 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a decisão que ocorreu no âmbito do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.275 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia, muitos cartórios impõem entraves à correção do nome no registo de nascimento, cobrando taxas inexistentes ou dificultando o procedimento. A longo prazo, a pesquisadora acredita que o melhor caminho para a transformação é investir em uma educação emancipadora, que inclua em seu currículo a discussão de gênero, diversidade e que também esteja preocupada com a formação de profissionais comprometidos com a justiça, a tolerância e o respeito às diferentes formas de ser e viver em sociedade.
“Transver o mundo” traz uma perspectiva de dentro, é um estudo pioneiro e fidedigno da realidade das pessoas transvestigêneres, que contou com pessoas trans e travestis na equipe de entrevistadores e pesquisadores, dentre elas Magô Tonhon, carinhosamente elogiada por todes pelo seu brilhante trabalho de revisão do texto e de todas as etapas da pesquisa. Transver o mundo é sobre coragem, (re)existência e luta. Transver o mundo é sobre hoje, agora, é sobre nós, cisgêneros, que temos a grande responsabilidade e o dever de nos desconstruirmos de nossos preconceitos e construirmos uma sociedade mais justa, harmônica e que respeite a diversidade.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
REFERÊNCIAS
IBGE. Agência IBGE notícias. Em 2019, expectativa de vida era de 76,6 anos. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29502-em-2019-expectativa-de-vida-era-de-76-6-anos>. Acesso em: 30 abril 2022.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 3. ed. 2018.
[1] Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de Goiás – UNIGOIÁS (2019) e mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG. Foi estagiária do Ministério Público Federal do Estado de Goiás – MPF/GO (2018 – 2019), lotada no NUCRIM (Núcleo Criminal) e assistente de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Direito e Políticas Públicas – PPGDP/UFG (2019 – 2020). Bolsita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – FAPEG. E-mail: munyqueribeiro@gmail.com.
[2] Palavra criada por Érika Hilton e Indianare Siqueira para nomear as identidades trans: homens trans, mulheres trans, travestis e pessoas não-bináries.
[3] Reconhecida como a primeira travesti da história do Brasil, Xica foi sequestrada do Congo, escravizada e vendida a um sapateiro em Salvador, Bahia, em meados do século XVI. (Disponível em: <https://nosmulheresdaperiferia.com.br/de-xica-manicongo-a-erica-malunguinho-as-mulheres-trans-na-politica/>. Acesso em: 30 abril 2022).
[4] Operação arquitetada pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, em 1987, que tinha por objetivo a prisão de travestis. Em pouco menos de duas semanas, período que durou a operação, 300 travestis foram violentadas e detidas em São Paulo. Como forma de resistência à prisão, as travestis guardavam navalhas pequenas debaixo da língua, para que pudessem se defender, cortar sua pele e assim ameaçar os policiais de espalharem sangue supostamente contaminado pelo vírus da Aids. (Cultura travesti: a fábrica de bonecas. Locutoras: Maria Gabriela Almeida e Felicious Fê. Spotify, 24 de novembro. 2020. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/61XbQpcoQWZZIgRHz3qVjD?si=6a0ab919c9ac4ccc>. Acesso em: 30 abril 2022).
[5] Para maiores informações, consulte a página da Prefeitura de São Paulo. (Disponível em: <http://www.capital.sp.gov.br/noticia/transcidadania-entenda-como-funciona> Acesso em: 30 abril 2022).
[6] Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”. Em outras palavras, na pessoa cisgênero a identidade de gênero (a forma como a pessoa se vê) corresponde ao gênero que lhe foi atribuído ao nascer.
[7] Para maiores informações, leia o Parecer n. 167/2022 – MNG/PGR. (Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy_of_RESP1977124LMPmedidaprotetivatransexualP.pdf>. Acesso em: 30 abril 2022).
Fonte Imagética: Capa do livro “Transver o Mundo: Existências e (Re)existências de Travestis e Pessoas Trans no 1° Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo”, Editora Annablume, 2021. Disponível em <https://boletimluanova.org/wp-content/uploads/2022/01/Mapeamento_Pessoas_Trans.pdf>. Acesso em: 02 maio 2022.