Fabiola Fanti[1]
Este texto foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 24 de junho de 2022.
Desde a redemocratização, o tema do aborto costuma vir à tona em períodos eleitorais. Nas eleições deste ano não é diferente. O presidente Jair Bolsonaro (PL) manifestou-se diversas vezes contrariamente ao direito ao aborto em qualquer circunstância. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recentemente afirmou que o aborto deveria ser tratado como questão de saúde pública, mas, após repercussão negativa, declarou-se pessoalmente contrário.
No Brasil, o aborto é crime segundo o Código Penal e permitido em apenas três casos: risco de vida da mãe; gravidez resultante de estupro; e anencefalia do feto, sendo este último fruto de decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012.
Apesar da complexidade que envolve a questão, o debate eleitoral sobre o aborto se dá, em geral, em termos de argumentos morais ou convicções religiosas. Não há uma discussão aprofundada na sociedade sobre a interrupção voluntária da gravidez como um tema de saúde pública. Sua proibição não impede que abortos sejam realizados de forma insegura por mulheres de todos os estratos sociais e que, muitas delas, principalmente as mais pobres, tenham sequelas ou morram em razão do procedimento.
Outro ponto central é a discussão de que o aborto é um direito da mulher à autonomia sobre o seu próprio corpo —ou seja, não ser obrigada a levar adiante uma gestação indesejada. Essas questões ficam ao largo dos debates políticos em períodos eleitorais.
Pesquisa Datafolha divulgada em 3 de junho mostrou que o número de brasileiros que acreditam que o aborto deve ser proibido em qualquer caso caiu para 32%, em maio de 2022, ante 41% em outubro de 2018. Os resultados atuais mostram ainda que 39% acreditam que a lei deve se mantida como está. Para 18%, o procedimento deveria ser permitido em mais situações e, para 8%, em qualquer situação. A diminuição da parcela da população contrária ao aborto em qualquer situação se soma ao crescimento daquela que é favorável ao aborto em algum grau, principalmente entre os mais jovens.
Há décadas feministas lutam pelo direito ao aborto no Brasil e buscam discutir a questão na esfera pública. As conquistas relacionadas ao aborto legal —como a criação de serviços públicos e regras de atendimento no Sistema Único de Saúde— foram resultados dessas batalhas. Durante a década de 2010, mulheres se manifestaram por todo o Brasil pelo direito ao aborto e contra retrocessos nesse campo. São exemplos os protestos contra o Estatuto do Nascituro, em 2013; os atos contrários ao projeto de lei 5.069/2013 (conhecidos como “Primavera Feminista”), em 2015; os protestos contra a PEC 181/2015, chamada de “Cavalo de Troia”, em 2016; e as manifestações de apoio à legalização do aborto na Argentina e à ação judicial que busca a descriminalização do aborto no STF, quando da realização de audiências públicas, em 2018.
A chamada “Maré Verde“, como se denominou as conquistas recentes pelo direito ao aborto no contexto latino-americano, impulsionadas pelas lutas feministas, também tem o poder de pressionar a discussão no Brasil. Nos últimos anos, assistimos a uma onda progressista em relação ao tema: a descriminalização do aborto pelas Supremas Cortes da Colômbia e do México, em 2022 e 2021, respectivamente; a legalização do aborto na Argentina, em 2020; e a inclusão do direito ao aborto no projeto de Constituição do Chile, em 2022.
Se por um lado a discussão do aborto no processo eleitoral costuma ser superficial e atravessada por argumentos morais, por outro há uma pressão pelo aprofundamento do debate e por mudanças vinda das feministas brasileiras —com destaque para uma nova geração de mulheres— e pela “Maré Verde” na América Latina. Os grupos feministas vêm expandindo as discussões em torno do aborto, ao mesmo tempo em que são o motor de avanços recentes nessa área.
É fundamental ampliar o debate eleitoral sobre o tema —ainda mais em um contexto em que há diversas tentativas de retroceder em direitos já conquistados— e trazer para a disputa o que as vozes feministas vêm gritando há anos. É necessário não só debater o direito ao aborto, mas garanti-lo.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1]Doutora em ciências sociais (Unicamp) e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Fonte Imagética: Mulher durante protesto a favor da legalização do aborto, em São Paulo, em 2018 (Créditos: Rahel Patrasso/Xinhua). Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/06/precisamos-debater-o-direito-ao-aborto.shtml>. Acesso em 24 jun 2022.