Texto por Gessica da Silva e Ana Cristina Grein Marra1
16 de maio de 2025
Esta série especial do Boletim Lua Nova reúne reflexões críticas elaboradas por graduandas, mestrandas e doutorandas selecionadas por meio de edital de monitoria que acompanharam o Colóquio Internacional “Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (Séculos XIX-XXI)”, realizado de 26 a 29 de novembro de 2024, com financiamento do Instituto Beja, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Longe de exercerem funções estritamente logísticas, essas pesquisadoras transformaram o Colóquio em um laboratório de formação acadêmica e política: acompanharam os debates, dialogaram com as/os palestrantes e produziram textos de relato‑reação que combinam descrição empírica e análise conceitual das mesas‑redondas. O texto que a leitora ou o leitor tem em mãos é fruto desse trabalho coletivo.
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A mesa-redonda de abertura do Colóquio Internacional “Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (séculos XIX-XXI)” realizou-se em 26 de novembro de 2024, às 14h30 (horário de Brasília), na Sala Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Contou com a participação do Prof. Fernando Salla (NEV-USP) e da Prof.ª Juliana Vinuto (UFF), esta em modalidade on-line, sob a mediação da Prof.ª Alessandra Teixeira (UFABC).
O debate inaugural concentrou-se nas intersecções entre raça e constituição do sistema punitivo brasileiro. Os expositores destacaram que a violência infligida às pessoas escravizadas no período colonial lançou as bases de um aparato penal que, ainda hoje, criminaliza sobretudo jovens negros, pobres, periféricos e com baixa escolaridade.
A mesa, assim, problematizou a continuidade histórica entre escravidão e punição contemporânea, sugerindo que as atuais estratégias de controle e encarceramento reproduzem lógicas de exclusão dirigidas a corpos negros. Ao articular descrição empírica e análise conceitual, os palestrantes evidenciaram como o passado colonial permanece inscrito nas práticas penais, convocando a audiência a refletir sobre reparação e transformação das estruturas punitivas vigentes.
Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, abriu a mesa salientando que os sistemas punitivos figuram entre os germes da desigualdade no Brasil contemporâneo. Para ele, a hierarquia feudal europeia foi transplantada ao país pelo colonialismo, legando um tratamento estruturalmente desigual às populações negras e periféricas. Em sua leitura, o sistema punitivo brasileiro funciona como um verniz que perpetua a escravidão e a desigualdade social, permitindo compreender a persistência desse fenômeno.
O expositor recordou que, em 1830, a promulgação do primeiro Código Criminal brasileiro já racializava o debate: o sujeito negro passava a ser individualizado sobretudo na tipificação da pena, isto é, como criminoso. Posteriormente, o Código Penal de 1890 introduziu a Lei da Vadiagem; em particular, o artigo 847 — “dos vadios e capoeiras” — exemplificou o esforço estatal de controle social sobre os egressos da escravidão.
Salla assinalou que, apesar da Proclamação da República, seus valores não se concretizaram plenamente, pois os direitos humanos permanecem inacessíveis a boa parte da população. No Brasil oitocentista, mantinha-se, por exemplo, a distinção entre pessoas “liberadas” e “libertas”, sinalizando a incompletude do projeto republicano.
Segundo o pesquisador, os sistemas punitivos funcionaram principalmente como instrumentos de controle social, não como mecanismos de justiça ou ordenamento jurídico. O encarceramento recaiu, majoritariamente, sobre pessoas negras, pobres e acusadas de delitos patrimoniais de pequena monta. Até a década de 1880, as prisões — destinadas à averiguação ou de caráter correcional — estavam associadas a práticas de tortura e extorsão. No período colonial, a alforria condicional integrou essa engrenagem punitiva; depois, sucederam-lhe o livramento condicional e as prisões para averiguação, que detinham numerosos indivíduos sem julgamento.
Ao abordar a história do livramento condicional, Salla destacou o movimento Mães de Maio, constituído em São Paulo após os crimes de maio de 2006, quando policiais e grupos de extermínio mataram 505 pessoas — em sua maioria condenados beneficiados por livramento condicional para o Dia das Mães ou indivíduos com antecedentes policiais (fonte: “Crimes de Maio de 2006: o massacre que o Brasil ignora”, Ponte.org).
Por fim, o expositor ressaltou que, embora a Lei de Execução Penal de 1984 tenha representado um marco na garantia de direitos das pessoas presas e na construção de uma justiça criminal, sua efetivação continua insuficiente, sendo sistematicamente negada aos encarcerados até os dias atuais.
Já a professora Juliana Vinuto, da Universidade Federal Fluminense, concentrou sua intervenção na dimensão racial e na interseccionalidade dos sistemas punitivos brasileiros.
Segundo a expositora, até a Constituição de 1988 a violência de Estado costumava ser interpretada sobretudo como questão de classe, embora possua um componente racial decisivo, legado do colonialismo que castiga corpos negros. A repressão policial antecede a ditadura, mas esta a institucionalizou em uma República cujos ideais igualitários ainda não se materializaram. Já no período escravista, registra-se a atuação de aparatos de controle e de violência; em outras palavras, a população negra é alvo de punição desde o Brasil colonial. A pretensa “manutenção da ordem” vincula-se, assim, ao punitivismo e ao racismo estrutural.
Vinuto destacou o papel da intelectualidade negra — em especial nos anos 1970, com autoras e autores como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Maria Beatriz Nascimento e Carlos Alberto Caó — na incorporação da categoria “raça” aos estudos prisionais no Brasil. Contudo, o racismo reduziu o reconhecimento desses pensadores, frequentemente rotulados como ativistas, não como intelectuais.
Entre as contribuições decisivas, sobressai O Bom Escravo, o Mau Cidadão, de Clóvis Moura. Nessa obra, a figura do “mau cidadão” recai sobre o morador de favela, estigmatizado como alcoólatra, evidenciando o preconceito de classe e raça dirigido às populações negras periféricas. Para Moura, a escravidão engendrou a “síndrome do medo”: sentimento sociopsicológico que moldou o comportamento dos colonizadores durante todo o regime escravista. As autoridades coloniais e a elite senhorial viviam em permanente pânico diante de possíveis levantes — como o da Ilha de São Domingos (Haiti) — e do eventual contato entre escravizados brasileiros e insurgentes de outras regiões, o que, nos termos do autor, os tornava “neuróticos”.
Vinuto retomou, ainda, os conceitos de “lugar de negro”, proposto por Lélia Gonzalez, e da “síndrome da legitimação da pena de morte”. O “lugar de negro” designa espaços de maioria negra — favelas, periferias, quilombos urbanos — onde violações de direitos tendem a ocorrer e a dividir o território segundo linhas raciais. Pessoas brancas que circulem nesses locais podem igualmente sofrer a violência dirigida às populações negras, pois, como alerta Gonzalez, “qualquer aglomeração de negros vai virar caso de polícia”.
A expositora frisou que estereótipos e expectativas alimentam o racismo no cotidiano, já que a estrutura racista é continuamente reproduzida e reinventada no Brasil. Destacou, ademais, a centralidade de gênero, classe e raça na formação do sistema punitivo: pessoas negras são punidas com maior frequência, mulheres sofrem sanções mais severas e a pobreza costuma ser confundida com criminalidade, tornando pobres e negros alvos preferenciais do aparato penal. Para Vinuto, as dimensões interseccionais não se excluem; ao contrário, “a raça produz gênero, que produz classe”.
Remeteu-se ainda ao conceito de “racismo por denegação”, também de Lélia Gonzalez, e ao persistente mito da democracia racial, lembrando que racializar o debate sobre o cárcere é algo recente. Entre as múltiplas estratégias de negar o racismo, destaca-se a recusa em reconhecer que crimes cometidos contra vítimas negras são motivados pela cor de sua pele. Como resposta, Vinuto defende políticas de ação afirmativa — notadamente as cotas para pessoas negras e indígenas — como mecanismos concretos de enfrentamento da denegação racial.
Vinuto também recuperou o conceito de “racismo por omissão”, formulado por Lélia Gonzalez, amplamente presente no cotidiano brasileiro. Para Gonzalez, esse mecanismo colonizante busca fazer-nos crer que o Brasil é racialmente branco e culturalmente ocidental, isto é, eurocêntrico. Quando combinado ao mito da democracia racial, o racismo por omissão opera social e teoricamente não apenas definindo a identidade da população negra, mas também determinando seu lugar na hierarquia social. Trata-se da cultura europeia “fazendo a cabeça” tanto das elites autoproclamadas pensantes quanto das lideranças políticas que se pretendem populares ou revolucionárias (GONZÁLEZ, 2020).
A pesquisadora destacou ainda o trabalho de mulheres que enfrentam o racismo institucional, como a prof.ª Márcia Lima — ex-secretária do Ministério da Igualdade Racial — e a demógrafa Iraci Nogueira, sublinhando o papel estratégico do IBGE na produção de dados de qualidade sobre desigualdades raciais. Em outro registro, mencionou a canção “Capítulo 4, Versículo 3”, de Mano Brown (Racionais MC’s): as estatísticas de racismo e genocídio da população negra denunciadas na letra, lançada em 1997, pouco se alteraram desde então, revelando a persistência de um problema estrutural que marginaliza e oprime cotidianamente e de maneira diferenciada pessoas racializadas como negras e pardas.
Vinuto concluiu que, embora o arcabouço legal brasileiro seja considerado avançado, as práticas institucionais seguem marcadas pelo racismo e devem ser combatidas.
Com a mesa 1, abrindo o evento, aprendemos sobre as maneiras pelas quais a raça e o racismo são parte constitutiva da gênese do sistema punitivo brasileiro; o debate acabou por oferecer um panorama histórico da evolução prisional no país. As exposições evidenciaram que as condições degradantes das prisões resultam de estruturas formadas no período colonial e perpetuadas na transição ao capitalismo periférico. Demonstraram, ainda, o potencial crítico e produtivo de uma compreensão ampliada dos fatores estruturais da sociedade brasileira, na qual relações de classe, raça e gênero se entrelaçam como vetores de dominação, violência e exclusão.
REFERÊNCIAS:
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: Racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.
CAPÍTULO 4 VERSÍCULO 3, Mano Brown, Racionais mc´s. Álbum Sobrevivendo no Inferno, São Paulo, 1997.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaio, intervenções e diálogos.pp.220-221 org. RIOS, Flávia, LIMA, Márcia. 1ºed, 5ª reimpressão. Ed:
Zahar, São Paulo, 2020
MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Dandara, 2021.
______________. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822 – 1940. ed.São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006.
SILVA, Mário Augusto Medeiros da. A descoberta do Insólito*, o percurso das literaturas negra e periférica a partir dos anos 60, São Paulo: SESC, 2013.
- Géssica da Silva é graduanda do curso de Letras/ FFLCH – USP. Pesquisadora em treinamento na cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, perdurante a cátedra da Profª.Dra. escritora Conceição Evaristo, no Instituto de Estudos Avançados (IEA – USP, 2023). E-mail: gessicadasilva@usp.br.
Ana Cristina é Bacharela em Direito pela UFMG, Pós-graduada em Poder Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento e mestra em Teoria Social e Ciências Humanas pelo PCHS da UFABC. É pesquisadora de estudos de gênero, sistema prisional, feminismos, maternidade e teoria do cuidado. Email: ana.grein@ufabc.edu.br ↩︎