Ingrid Marra1
17 de outubro de 2025
Em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o Boletim Lua Nova republica a análise sobre o sistema de saúde estadunidense e como ele reflete uma medicina racista. O texto foi originalmente publicado em 23 de setembro de 2025, no site do OPEU.
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O desenvolvimento do campo da medicina ocorreu em paralelo (e de maneira dependente) à escravidão nos Estados Unidos, uma vez que as estruturas políticas e econômicas do regime escravocrata proveram corpos para experimentação e justificativa do “desenvolvimento” de novas técnicas e procedimentos para serem implementados em pacientes brancos. Especialmente no campo da ginecologia, mulheres negras foram vítimas de cruéis experimentações e procedimentos ginecológicos, uma vez que eram vistas como “mais fortes e resistentes” que pessoas brancas, e sentiam menos dor. Esse discurso, muito vinculado à supremacia branca, é responsável por criar um processo de desumanização de pessoas negras, pois vinculam a negritude a uma essência inferior e separada de pessoas brancas.
Como consequência, o campo da medicina se utilizou de corpos negros para experimentação por séculos. Cirurgias experimentais, casos de exposição de pacientes negros (sem consentimento) a substâncias tóxicas e a patógenos de alta letalidade, esterilização involuntária e até monitoramento (em vez de tratamento) do curso de doenças letais foram práticas recorrentes, aceitas e incentivadas, uma vez que eram vistas como fundamentais para o avanço da ciência. Essa construção – narrativa e prática – tem diversas consequências para a saúde de pessoas negras nos EUA, especialmente mulheres. Equipes médicas brancas ainda acreditam na (falsa) diferença biológica entre corpos negros e brancos, subestimando e subtratando a dor de pacientes negros em comparação com pacientes brancos.
Uma medicina racista
Um estudo sugeriu que residentes médicos que acreditam e reforçam crenças de diferenças biológicas entre pacientes brancos e negros são mais propensos a errar em suas recomendações para manejo de dor em ambientes médicos; Em outras palavras, pacientes hipotéticos negros receberiam pior tratamento para dor, devido ao viés racista do médico. Em outro estudo, foi constatado que pacientes negros têm chances reduzidas de receberem remédios para dor (analgésicos) para fraturas ósseas, quando comparados com pacientes brancos (57% vs. 74%, respectivamente), ainda que relatassem os mesmos níveis de dor. Nesse mesmo estudo, a chance de pacientes negros não receberem qualquer tipo de medicamento para dor foi 66% maior para pacientes negros do que brancos.
Mulheres negras também são as que menos recebem tratamentos efetivos para dores lombares, como cirurgias, em comparação a pacientes brancos. Em um estudo com pacientes aposentados, foi estimado que uma média de 27% de pacientes negros sentia dores severas, comparado com apenas 17% de pacientes brancos. Em um outro estudo, 12 centros de saúde nos EUA foram avaliados e chegou-se à conclusão de que médicos são passíveis de subestimar as dores de pacientes negros em 47% dos casos, ao mesmo tempo que superestimam dores de pacientes brancos.
Para além da dor, pessoas negras também têm piores desfechos de saúde. A proporção de diagnóstico de diabetes é 1,4 vez maior em pacientes negros do que em pacientes brancos. Pacientes negros também têm os piores desfechos para a doença, como perda de membros, doenças terminais cardíacas e renais e cegueira. Homens negros também apresentam as maiores taxas de desenvolvimento e morte por cânceres de pulmão e próstata, e pessoas negras têm 50% mais chance de desenvolverem doenças cardíacas e hepáticas, ainda que tenham menos acesso a tratamentos como transplantes, que apresentam maiores chances de sucesso.
Em geral, pessoas negras nos EUA têm 10 vezes mais chances de receberem um diagnóstico de aids (síndrome da imunodeficiência adquirida, em português), e taxas de suicídio aumentaram em 200% entre homens negros jovens. Mulheres negras também têm 40% mais chances de morrerem por câncer de mama do que mulheres brancas, e 3,2 vezes mais chances de morrerem durante o parto. Se considerarmos o grupo de idade acima dos 30 anos, as chances de morte durante o parto para mulheres negras são 5,1 vezes maiores do que no caso das mulheres brancas. Nesse mesmo estudo, foi constatado que 60% das mortes de mulheres negras durante o parto eram evitáveis.
Aprofunde
Em questões de representação, um estudo verificou que 91,3% de 140 imagens em diversos artigos de uma das maiores revistas de medicina dos EUA eram de pessoas brancas, e a raça/etnia foi diretamente mencionada em apenas 2,9% das imagens. Isso reforça a crença de que o corpo “padrão” é o branco e (principalmente) masculino. Antes de 1993, praticamente nenhum estudo incluía corpos femininos, e, até hoje, mulheres ainda são sistematicamente excluídas da ciência. Para mulheres negras, a exclusão foi ainda mais cruel: seus corpos foram usados para experimentação, mas excluídos dos anais de medicina.
Racismo e necropolítica
Existem diversos motivos para esse cenário. Ao contrário de crenças de “diferenças biológicas” baseadas em racismo, limitações de acesso à saúde e cuidado, baixa cobertura de planos de saúde e narrativas sobre a saúde de pessoas negras são algumas das principais razões para a diferença na qualidade do cuidado de pessoas negras nos EUA. Em uma sociedade que se desenvolveu a partir da naturalização da escravidão e de processos de “diferenciação” (não tão distinta da brasileira), a população negra sente, em primeira mão, as consequências da negligência e de uma necropolítica.
O termo, inicialmente cunhado pelo filósofo de Camarões Achille Mbembe, refere-se ao poder de decisão entre a vida e a morte. Partindo de reflexões de Foucault e Arendt, a necropolítica compreende o exercício máximo da soberania de um Estado, com o poder de estabelecer divisões vitais entre seus sujeitos. Embora a guerra e a violência direta estatal – como a violência policial, por exemplo – sejam exemplos mais comuns do exercício do necropoder, pautar medidas e políticas de saúde pública que atingem de maneira desproporcional setores específicos da sociedade também são medidas de vida e morte.
O direito de matar (ou não salvar), seja por fome, armas, ou pela não-intervenção, é exercido de maneira plena e naturalizada pelas instituições de saúde dos EUA. A falta de políticas de inclusão, de políticas ativas de exclusão e de educação médica para a melhora de desfechos em saúde para pessoas negras é reflexo direto de instituições e sociedade racistas.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Ingrid Marra é mestra em Global Political Economy and Development (GPED) pela Universität Kassel, graduada em Relações Internacionais pela UFRJ (IRID-UFRJ), pesquisadora colaboradora do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) na área de Economia e Finanças 2021-2024, Política Doméstica a partir de 2024. Áreas de interesse: hierarquia monetária internacional e criptomoedas, análise de discurso, pós-desenvolvimento e saúde. Linkedin. ↩︎