Felipe Freller1
15 de fevereiro de 2024
Este texto foi originalmente publicado no site da Folha de S.Paulo no dia 17 de outubro de 2023, por ocasião dos 40 anos de falecimento de Raymond Aron. Agradecemos ao autor pela autorização para republicação.
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Em 17 de outubro de 1983, morria o filósofo e sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983), um dos principais pensadores liberais do século 20. Quarenta anos depois, sua obra permanece importante para a teoria política, a filosofia da história, a sociologia e a teoria das relações internacionais, mas seu nome parece, estranhamente, distante dos principais movimentos intelectuais e políticos que reivindicam o liberalismo. Algo a se lamentar e a se buscar compreender.
Várias vertentes do liberalismo floresceram nesses últimos 40 anos. O que se pode apontar em quase todas, contudo, é uma dificuldade em lidar com o fenômeno político. A crise do socialismo e da social-democracia conferiu um novo impulso às teses do livre mercado, pregadas, muitas vezes, de modo fundamentalista, como se o mercado pudesse se tornar um modelo de toda a sociedade.
A onda democrática do final do século 20, seguida pela globalização, levou a uma nova valorização das liberdades individuais e do Estado de Direito, fazendo frequentemente a dimensão jurídica e constitucional da democracia adquirir preeminência sobre sua dimensão propriamente política.
No domínio acadêmico, o impacto da obra do filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002) produziu uma reorientação do pensamento liberal para questões de justiça distributiva, guiadas pela indagação a respeito dos princípios de uma sociedade justa.
Todas essas facetas do liberalismo contemporâneo têm levado intelectuais e políticos, de direita e de esquerda, a retomar a crítica de Carl Schmitt (1888-1985), filósofo e jurista alemão que acabou aderindo ao nazismo, segundo a qual o liberalismo constitui uma negação da política, dissolvendo-a na economia, no direito ou na moral. Se o liberalismo quer reduzir tudo ao mercado, ao Estado de Direito ou à ideia de justiça, ele teria algo a dizer sobre a política?
Se houve algo que notabilizou o pensamento de Raymond Aron foi justamente seu esforço para construir um liberalismo centrado na política. A recusa de pensar a política era sua principal crítica aos intelectuais franceses de esquerda, muitos deles seus amigos, mas com os quais rompeu após a Segunda Guerra Mundial, perante a indisposição desses intelectuais em relação a quem ousasse criticar abertamente o regime totalitário da União Soviética.
Jean-Paul Sartre, por exemplo, passou de antigo camarada de Aron a seu principal antagonista na Guerra Fria. Como Aron escreve em seu clássico, O Ópio dos Intelectuais (1955), Sartre e outros pensadores franceses do pós-Guerra estavam tão embriagados por mitos, como o da revolução e o da lei da história, que eram incapazes de analisar o funcionamento efetivo de um regime político como o soviético.
Esses intelectuais não negavam a existência de campos de concentração na União Soviética, mas consideravam que sua denúncia enfraquecia a causa da revolução e do proletariado. Como nota Aron, ideias morais abstratas tomavam a frente da análise do regime político, sobre o qual aqueles acadêmicos tinham pouco ou nada a dizer.
Para Aron, ao contrário, o liberalismo não decorria de ideias morais abstratas, mas de uma análise sociológica da sociedade moderna e dos regimes políticos disponíveis. A política se torna central, em primeiro lugar, porque a análise dos regimes políticos adquire uma dimensão existencial.
Contrariamente ao senso comum que analisa a Guerra Fria como um confronto entre o capitalismo e o socialismo, Aron percebe duas variantes da sociedade industrial nos países capitalistas ocidentais e nos países ditos socialistas. O principal critério de distinção não seria econômico, mas político. E isso decorreria de uma disputa sobre a melhor tradução do ideal democrático.
Os países ocidentais consideram que o ideal democrático se traduz na livre competição entre partidos políticos, ao passo que os regimes de tipo soviético alegam que um único partido encarna as aspirações do proletariado, devendo monopolizar o poder para construir a sociedade conforme os interesses verdadeiros do povo.
Aron defende o pluralismo liberal não por ver nele a realização de uma moral perfeita, mas por perceber o perigo da outra opção de organização política da sociedade industrial: o regime de partido único. Ao contrário de muitos liberais, o sociólogo francês não tem nenhum fetiche pela liberdade individual como fim absoluto.
Apesar de tratar Friedrich Hayek (1899-1992), o grande teórico do neoliberalismo, com respeito, Aron considerava sua concepção de liberdade irrealizável na sociedade industrial. Hayek entendia que um indivíduo era livre a partir do momento em que não servisse de instrumento aos fins estabelecidos por outros indivíduos, ao que Aron retrucava que todas as empresas coletivas fazem dos indivíduos instrumentos de seus chefes. Além disso, para o francês, a liberdade individual não pode ser o único objetivo da sociedade.
Em seu Ensaio sobre as Liberdades (1965), o autor concorda com Marx que as “liberdades formais” (ou seja, os direitos formalmente garantidos pela lei) podem ser vãs sem as “liberdades reais” (ou seja, sem as condições materiais para o exercício dessas liberdades). A crítica de Aron aos marxistas ortodoxos consiste apenas na observação de que a supressão ditatorial das liberdades formais não constitui o melhor caminho para alcançar a “liberdade real”.
Como seria de se esperar de um observador realista da política, Aron estudou a fundo o tema da guerra. Pacifista na juventude, sua percepção muda após presenciar a ascensão do nazismo. Se antes ele concordava com seu mestre, o filósofo Alain (1868-1951), que não havia mal maior do que a guerra, a visão de Hitler no poder o convence de que a vitória do inimigo pode ser ainda mais catastrófica. Para Aron, a paz perpétua é uma utopia irrealista enquanto o sistema internacional for composto por Estados independentes, sem nenhum poder superior capaz de evitar conflitos.
Contudo, também aqui trata-se, para Aron, de conceder o primado à política. Daí seu diálogo intelectual incessante com o general prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831), autor de Da Guerra e da famosa fórmula segundo a qual “a guerra é a continuação da política por outros meios”.
Aron dedicou a Clausewitz um de seus principais livros (Pensar a Guerra: Clausewitz, de 1976), com a convicção de que a subordinação da guerra à política promovida pelo general prussiano seria capaz de moderar o impulso violento dos confrontos, os quais, deixados a sua própria lógica, tenderiam a escalar indefinidamente.
Em seus últimos anos de vida, Aron assistiu a um triunfo parcial de suas ideias. Na esteira da publicação, na França, de Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin (1918-2008), em 1974, a crítica ao totalitarismo soviético se tornou a posição dominante na intelectualidade francesa, inclusive de esquerda.
Em 1979, a participação de Aron e Sartre em uma delegação que vai ao Palácio do Eliseu, residência oficial do presidente da França, pedir o acolhimento de refugiados do Vietnã e do Camboja simboliza a reconciliação dos dois intelectuais e o advento de uma era em que os direitos humanos se tornam mais importantes do que as antigas clivagens ideológicas.
Aron vê um progresso no fato de que os intelectuais de esquerda não se dispõem mais a justificar todos os crimes possíveis em nome da construção da sociedade perfeita. Todavia, ele critica a proeminência adquirida pelo tema dos direitos humanos, a partir do fim dos anos 1970, como outra maneira de refutar a política.
Como afirma no livro de entrevistas O Espectador Engajado, de 1981: “É uma maneira de não se engajar em combates duvidosos, e todos os combates políticos são duvidosos. Nunca é a luta entre o bem e o mal, é o preferível contra o detestável. (…) Ora, a defesa dos direitos humanos (…) é um combate puro e não duvidoso”.
Não se tratava, para Aron, de desprezar os direitos humanos em nome de uma abordagem realista da política, em seu sentido mais mesquinho. O autor era um realista, mas em um sentido qualificado. O “maquiavelismo” grosseiro, para quem só contam o poder e os interesses, sempre foi seu alvo de crítica.
Em sua visão, as ideias e os valores são determinantes na política. O problema do primado exclusivo dos direitos humanos reside na dissolução da política na moral. Como lembra Aron, na política externa, todas as potências infringem direitos humanos. É legítimo e talvez necessário protestar contra cada violação, mas isso não pode eclipsar a comparação dos regimes políticos existentes, o julgamento de qual é preferível e qual é detestável, e a aceitação do preferível mesmo em sua imperfeição.
Assim, o liberalismo de Aron resiste à crítica de Schmitt sobre a dificuldade que a tradição liberal teria de pensar a política. Infelizmente, as correntes liberais mais em evidência hoje seguem o impulso da despolitização, e seus críticos se aproximam, mais ou menos explicitamente, de soluções autoritárias.
Em um contexto internacional em que, como na Guerra Fria, as democracias liberais disputam seus valores com regimes autocráticos, torna-se tentador, para muitos, igualar os dois campos, pois ambos violam direitos humanos, sem colocar em primeiro plano a comparação dos regimes políticos.
Neste contexto, é necessário retomar o liberalismo aroniano e sua coragem de se engajar em combates duvidosos.
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Raymond Aron: Filósofo e sociólogo francês, nasceu em 14 de março de 1905, em Paris. Um dos principais pensadores liberais do século 20, foi um crítico implacável do comunismo e dos intelectuais que aderiram a ele de modo acrítico. A rivalidade entre Aron e o filósofo Jean-Paul Sartre, por exemplo, ficou célebre nos conturbados anos 1960. Aron escreveu extensa obra, na qual se destacam os livros O Ópio dos Intelectuais (1955), seu principal trabalho, Paz e Guerra Entre as Nações (1962), As Etapas do Pensamento Sociológico (1967) e Pensar a Guerra: Clausewitz (1976). Morreu em 17 de outubro de 1983.
- Doutor em ciência política pela USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É autor de “Quando É Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio” (Appris, 2021). E-mail: felipe@freller.net ↩︎
Referência imagética: Trikosko, M. S. [photographer]. Prof. Raymond Aron, leading French analyst. Interview. April 9, 1974. [Photograph] Retrieved from the Library of Congress. <https://www.loc.gov/item/2018662220/>. Acesso em: 4 fev. 2024.