Fabiana Cristina Severi[1]
Júlia Marçal Silva[2]
O uso de uma perspectiva feminista na tomada de decisões judiciais pode fazer alguma diferença? Se sim, onde e que tipo de diferença ela poderia trazer? Na descrição ou análise dos fatos, na forma de se apreciar as provas, na construção da argumentação, no resultado ou nas conclusões? Existem técnicas ou metodologias para tomada de decisões judiciais que podem ser consideradas tipicamente feministas? O uso de tal abordagem traz riscos à imparcialidade ou à neutralidade das decisões judiciais?
Esse conjunto de perguntas tem orientado o desenvolvimento dos “Feminist Judgments Projects” (Projetos de Julgamentos Feministas) entre acadêmicas de diversas regiões do mundo e, mais recentemente, também no Brasil. A ideia principal dos projetos é, por meio de redes colaborativas de acadêmicas e juristas feministas, reescrever decisões judiciais de casos significativos em seus países, utilizando-se, para isso, metodologias e abordagens jurídicas feministas.
A experiência pioneira foi concebida por um grupo de acadêmicas, advogadas e ativistas feministas canadenses, o “Women’s Court of Canada Project” (Projeto Tribunal Canadense de Mulheres), em 2006. A intenção era mostrar que as decisões da Suprema Corte do Canadá poderiam ter sido legitimamente escritas de modo diferente e que os julgamentos feministas poderiam estar ao lado dos julgamentos originais, ou até mesmo superá-los em persuasividade (KOSHAN, 2018). Elas reescreveram seis casos significativos na história da jurisprudência canadense em matéria de igualdade de direitos, e o esforço resultou na produção de um material que tem funcionado como teorias jurídicas paralelas sobre direito à igualdade, que podem ser utilizadas na argumentação da Corte canadense em casos reais (RÉAUME, 2018).
Desde então, a ideia de construção de redes colaborativas de acadêmicas feministas para a reescrita de decisões judiciais tem sido desenvolvida em diversos países e regiões, como Inglaterra e País de Gales, Irlanda e Irlanda do Norte, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, México, África, Índia, Paquistão e Escócia. Em cada região ou país, o projeto tem assumido características próprias e buscado incidir política, teórica e pedagogicamente de diferentes maneiras.
No projeto britânico, por exemplo, publicado em 2010, foram reescritos 26 casos, a partir da colaboração entre acadêmicas, juízas e comentadoras feministas. Os temas envolveram direito de família, direito de propriedade, direito contratual, direito penal, provas processuais, direito público e questões sobre igualdade e não discriminação. As decisões reescritas demonstraram como a abordagem feminista pode proporcionar uma outra maneira de pensar sobre os casos, transgredindo os papéis de gênero comumente aceitos na jurisprudência e como o uso de tal abordagem não é incompatível com os valores judiciais de independência e imparcialidade e racionalidade. Ao contrário, elas acabam por valorizar mais a justiça e redesenhar, criticamente, os contornos sobre o próprio sentido de justiça (HUNTER; McGLYNN; RACKLEY, 2010).
De acordo com Rosemary Hunter, Clare McGlynn e Erika Rackley (2010), os projetos são informados por algumas preocupações chaves no campo dos estudos sobre direito, gênero e feminismo. Uma delas, de caráter teórico, diz respeito à forma como o direito não só reproduz e reforça estereótipos e normas de gênero, mas também como ele é um discurso poderoso que constrói gênero, na maioria das vezes de modo bastante prejudicial às mulheres e a outras categorias sociais subalternizadas.
Os projetos, então, buscam introduzir diferentes relatos de gênero que desafiam as formas dominantes no senso jurídico comum (HUNTER; McGLYNN; RACKLEY, 2010). A partir disso, Rackley (2012) aponta que o importante não é avaliar se os julgamentos reescritos estão corretos ou melhores, mas evidenciar que, mesmo dentro dos limites legais, diferentes resultados e argumentos são, ao menos, possíveis e que juízes com distintos pontos de vista chegarão, às vezes, a conclusões diferentes.
Outra preocupação diz respeito à questão da diversidade judicial. Há um campo muito vasto de estudos e debates que associam a qualidade da resposta judicial à composição plural e diversa das carreiras que compõem o Poder Judiciário. Mesmo assim, os esforços para implementação de ações contra a baixa presença de mulheres e de outras categorias ainda minoritárias neste Poder ainda são muito conservadores e incapazes de alterar o perfil ainda predominantemente masculino, branco, cisgênero e cristão em quase todos os tribunais ocidentais. Ao invés de continuar à espera da maior diversidade e dos impactos dela na realização da justiça, os projetos de julgamentos feministas expressam o exercício de “uma agência coletiva” de acadêmicas que tomam a prática jurisdicional “em suas próprias mãos” e procuram demonstrar, “na prática”, os efeitos que perspectivas plurais podem ter no processo de tomada de decisão (HUNTER; McGLYNN; RACKLEY, 2010).
Os projetos, além dos propósitos acadêmicos, são uma espécie de intervenção política, voltada a desafiar a constante exclusão das mulheres da subjetividade jurídica – como juízas, como doutrinadoras, como sujeitos de direitos nos processos judiciais. Eles tensionam o poder e a autoridade jurídicas não a partir do distanciamento teórico, mas no terreno próprio da prática judiciária e na forma de “paródia e, portanto, subversivo” (HUNTER; McGLYNN; RACKLEY, 2010, p. 8).
No Brasil, o feminismo tem sido cada vez mais abordado no campo do direito, mas quase exclusivamente enquanto movimento social. Há cada vez mais acadêmicas interessadas em compreender, por exemplo, o papel histórico dos movimentos sociais feministas e antirracistas no fortalecimento de um projeto jurídico de justiça social e democratização das instituições jurídicas e políticas brasileiras. Já enquanto perspectiva teórica ou vertente de pensamento jurídico crítico, ele é menos conhecido nos currículos acadêmicos de formação jurídica no país, mesmo em áreas do direito em que a produção acadêmica brasileira se encontra mais adensada há tempos, como é o caso da criminologia feminista (SEVERI, 2018).
A Lei Maria da Penha foi um dos primeiros estímulos jurídico-legais para que mais profissionais e acadêmicas se engajassem com a leitura e produção teórica feminista sobre o direito, pois ela passou a exigir o uso da abordagem de gênero na análise dos casos relativos à violência doméstica contra as mulheres. Foi ela também que ofereceu os eixos e diretrizes principais do que podemos chamar de técnicas ou metodologias de uma abordagem feminista ou de gênero a ser empregadas na análise do direito ou na tomada de decisão.
Algumas dessas técnicas seriam: 1. a centralidade na escuta da mulher em situação de violência e no atendimento a elas na condução da resposta judicial; 2. a exigência de se evitar reproduzir estereótipos de gênero prejudiciais às mulheres na condução dos casos; 3. a necessidade de não julgar as mulheres que procuram a justiça pelas escolhas que elas fazem e que, por vezes, são distintas daquelas que os agentes do sistema de justiça envolvidos no caso teriam feito; 4. a necessidade de se analisar os casos considerando, simultaneamente, o contexto mais geral de desigualdades que afetam as mulheres e as particularidades do caso em si; e 5. a exigência de que a resposta judicial seja resultante de uma atuação em rede de atendimento, em que o Judiciário não é o protagonista principal, mas (apenas) um dos agentes responsáveis por garantir às mulheres e meninas condições o exercício do direito a viverem uma vida livre de violências.
A pouca visibilidade das teorias e abordagens jurídicas feministas nos currículos de formação jurídica convive com a baixa presença de mulheres nas diversas profissões jurídicas, públicas ou privadas. No caso da magistratura, alguns estudos recentes têm sinalizado para uma diminuição do ingresso de mulheres na carreira nos últimos anos, algo que contraria as expectativas nutridas desde os anos 90 de que teríamos, paulatinamente, um crescimento no percentual de mulheres e de pessoas pertencentes a outras categorias também sub-representadas ingressando no Poder Judiciário (BONELLI; OLIVEIRA, 2020).
A magistratura brasileira continua, então, predominantemente composta por homens, brancos, heterossexuais, casados, católicos e com, ao menos, um parente próximo que também atua no Poder Judiciário. E a hipótese de que a maior diversidade na composição do Judiciário pudesse, de alguma forma, impactar na forma de se produzir justiça ou de se analisar, ao menos, casos em determinados temas, por exemplo, ligados aos direitos das mulheres, é cada vez mais difícil de ser empiricamente testada no país (KAWHAGE, 2017).
O Projeto brasileiro, com o título “Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Feministas”, é inspirado e orientado pelas experiências em outros países, e pretende colaborar com esses dois desafios, de fortalecimento da produção acadêmica brasileira sobre críticas jurídicas feministas e de análise sobre o seu uso na tomada de decisões judiciais. Ele busca construir um novo tipo de diálogo sobre feminismo, gênero e decisões judiciais no Brasil, partindo de esforços colaborativos entre acadêmicas e estudantes de diversas regiões do país e do trabalho de reimaginação.
Ele teve seu início em setembro deste ano, a partir do Workshop promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, nos dias 09 e 10[3]. No primeiro dia, conhecemos melhor as experiências dos projetos de julgamentos feministas existentes a partir das participações das pesquisadoras Rosemary Hunter, Erika Rackley e Julie McCandless. No segundo dia, fizemos uma breve apresentação sobre as linhas gerais do projeto brasileiro. Também foi possível ouvir a experiência de acadêmicas brasileiras que já desenvolveram experiências parecidas por aqui, por exemplo, na Fundação Getúlio Vargas[4] e na elaboração de um número especial da Revista Estudos Feministas[5] sobre o tema.
Entre professoras, pesquisadoras e estudantes de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, o projeto brasileiro conta com a participação de uma rede com mais de 60 participantes de instituições públicas e privadas de todas as regiões do Brasil[6]. Fizemos um esforço ativo para que o projeto pudesse ser desenvolvido por um grupo o mais plural possível, considerando marcadores identitários e a origem territorial das integrantes.
Em cada instituição, as responsáveis pela condução da reescrita estão livres para escolher os casos e planejar o trabalho de reescrita. Ela pode ocorrer como parte de projetos de ensino, de extensão e /ou de pesquisa. Também pode se desenvolver no ambiente das clínicas de práticas jurídicas, em grupos ou em disciplinas. O projeto deve durar até agosto de 2022. Até lá, realizaremos workshops e atividades formativas que possam compartilhar resultados, favorecer o debate crítico e produzir impactos junto a outras categorias profissionais do direito.
As decisões a serem reescritas ainda estão sendo escolhidas. Elas podem ser de qualquer instância judicial ou administrativa, desde que não estejam em segredo de justiça. Alguns dos temas já elencados pelas participantes são, por exemplo, ideologia de gênero; violência doméstica; estupro; assédio sexual; direitos sexuais e reprodutivos; discriminação interseccional; violência e discriminação contra mulheres indígenas e migrantes; direitos da pessoa com deficiência; trabalho reprodutivo, violência de gênero no âmbito educativo; direitos de mulheres trans e travestis; crimes da ditadura; moradia e maternidade e prisão.
Conforme explicam Bridget Crawford, Kathryn Stanchi e Linda Beger (2018), os julgamentos reescritos podem abranger diferentes teorias e métodos feministas, sem que o desacordo sobre o raciocínio ou implicações da decisão a faça menos feminista. No caso do nosso projeto, buscaremos privilegiar o adensamento das abordagens e métodos derivados de perspectivas feministas e antirracistas brasileiras, em diálogo crítico com a produção internacional.
Ao final, os resultados desta iniciativa devem compreender, além de artigos científicos e publicações em congressos, a organização de um livro com as decisões reescritas, combinadas com capítulos analíticos sobre experiência brasileira e aspectos teórico-metodológicos emergentes do debate produzido por tal experiência.
Referências:
BERGER, L.; CRAWFORD, B.; STANCHI, K. Feminist Judging Matters: How Feminist Theory and Methods Affect the Process of Judgment. University of Baltimore Law Review, Baltimore, v. 47, Iss. 2, p. 167-197, 2018. Disponível em: https://scholarworks.law.ubalt.edu/ublr/vol47/iss2/2. Acesso em: 28 maio 2021.
BONELLI, M. G.; OLIVEIRA, F. L. Mulheres Magistradas e a Construção de Gênero na Carreira Judicial. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 143-163, Jan./Abr. 2020. DOI http://dx.doi.org/10.25091/S01013300202000010006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/TX8RfQBFq9kvDTtKHdpbS7t/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 07 nov. 2021.
HUNTER, R.; McGLYNN, C., RACKLEY, E. Feminist Judgments: From Theory to Practice. Oxford, UK; Portland, Oregon: Hart Publishing, 2010.
KAHWAGE, T. L. Mulheres na magistratura paraense: uma análise das percepções das desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) sobre trajetória profissional e atuação jurisdicional voltada à efetivação dos direitos humanos das mulheres. 2017. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017. DOI 10.11606/D.107.2019.tde-06022019-101616. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-06022019-101616/pt-br.php. Acesso em: 7 nov. 2021.
KOSHAN, J. Impact of the Feminist Judgment Writing Projects: The Case of the Women’s Court of Canada. Oñati Socio-Legal Series, Online, v. 8, n. 9, p. 1215-1401, 2018. DOI https://doi.org/10.35295/osls.iisl/0000-0000-0000-0993. Disponível em: https://opo.iisj.net/index.php/osls/article/view/961. Acesso em: 09 ago. 2021.
RACKLEY, E. Why Feminist Legal Scholars Should Write Judgments: Reflections on the Feminist Judgments Project in England and Wales. Canadian Journal of Women and the Law, Toronto, v. 24, n. 2, p. 389-413, 2012. DOI https://doi.org/10.3138/cjwl.24.2.389. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/494188. Acesso em: 06 out. 2021.
RÉAUME, D. Turning Feminist Judgments into Jurisprudence: The Women’s Court of Canada on Substantive Equality. Oñati Socio-legal Series, Online, v. 8, n. 9, 1307-1324, 2018. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=3215739. Acesso em: 07 nov. 2021.
SEVERI, F. C. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. São Paulo: Lúmen Juris, 2018.
[1] Professora Associada ao Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Projeto “Reescrevendo decisões judiciais em perspectiva feminista no Brasil”, juntamente com os professores Caio Gracco Pinheiro Dias e Flávia Trentini, ambos da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. Atualmente, participa do Programa Sabático do Instituto de Estudos Avançados (2021-2022).
[2] Aluna de graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bolsista do Programa Unificado de Bolsas de Estudo para Apoio e Formação de Estudantes de Graduação (PUB-USP) (2021-2022).
[3] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=Tog15vk8xp0&list=PLpEIC3ZIVnRx9mW1OsySdGyaHDJrH_8-v. Acesso em: 07 nov. 2021.
[4] Ver: PENTEADO, T. Reescrita Feminista do Habeas Corpus N. 503.125/SP: Uma Análise da Adoção Informal e o Arrependimento Materno a partir de Perspectivas Feministas In: PÜSCHEL, F. (org.). Direito e Desenvolvimento na Prática: Novas Perspectivas para a Reflexão Jurídica. São Paulo: ALMEDINA, 2020. p. 215-229.
[5] O número da revista ainda não foi publicado.
[6] Algumas das instituições de ensino participantes: Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), UniRitter – RS, Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Centro Universitário de Brasília (UniCeub), Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Universidade Federal do Piauí (UFPI); Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE-UAST), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal da Bahia – UFBA, Núcleo Gênero e Direto da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP) e Programa Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Instituto de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – FND, IPPUR e NEPP-DH), Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP – FCHS) e Mackenzie -SP.