Sofia Pieruccetti Gutierrez[1]
O Cedec promoveu no dia 6 de maio de 2022 o evento de lançamento do Acervo Digital do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). Participaram do evento os pesquisadores do Cedec e idealizadores do projeto Andrei Koerner (IFCH/Unicamp) e Antonio Sérgio Carvalho Rocha (Unifesp), João Paulo Berto (CMU/Unicamp), responsável pela estrutura arquivística do Acervo Digital, e Walquiria Domingues Leão Rego (IFCH/Unicamp), pesquisadora entrevistada pelo projeto.
A apresentação do Acervo Digital foi realizada por Koerner,o primeiro expositor. Trata-se de uma plataforma de acesso livre que contém dois tipos de materiais: 1) entrevistas com pesquisadores, intelectuais e ativistas sobre o fazer acadêmico, com ênfase em pesquisas sobre política brasileira e 2) depoimentos de protagonistas sobre o processo de transição política no Brasil e os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), resultados da pesquisa “Memória da Constituinte”, coordenada por Antônio Sérgio Carvalho Rocha e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Ainda que a defesa da Constituição Federal de 1988 seja o fator de coesão do Acervo Digital, há uma diversidade de formações e perspectivas teórico-metodológicas entre os pesquisadores entrevistados pelo Cedec, o que confere abrangência ao projeto. A reunião de experiências e diagnósticos visa fomentar novas possibilidades de diálogos e agendas de pesquisa sobre a democracia constitucional brasileira.
Koerner destacou que o intuito do projeto é contribuir com o modo de pensar a pesquisa em Ciências Sociais, para que as reflexões produzidas na atualidade possam ser embasadas em um sólido entendimento do passado e capazes de propor medidas assertivas para o futuro. Como a experiência democrático-constitucional de nosso passado recente pode ser direcionada? Como analisar as tensões da curta trajetória democrática no Brasil? Como é possível pensar a (re)construção da ordem constitucional democrática brasileira? Quais os efeitos desse contexto de ruptura sobre as nossas formas de atuação política em defesa da democracia? O Acervo Digital oferece insumos para o avanço de tais questões, com informações e análises sobre temas como teoria democrática, Estado de direito e desenvolvimento, estruturantes da democracia constitucional brasileira.
O desenvolvimento do Acervo teve início no Cedec, a partir do segundo semestre de 2019. A equipe responsável por concretizar o Acervo Digital era formada por grupos de pesquisadores associados ao INCT-Ineu e ao trabalho “Memória da Constituinte”. Ao longo de 2020 e 2021, foi implementada uma versão piloto do projeto do Acervo, o que permitiu aperfeiçoar a proposta inicial, implantar o site, realizar as primeiras entrevistas e validar a sua metodologia, entre outros pontos. Atualmente, a execução do projeto é feita em parceria com o Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (CMU/Unicamp) e o Ceipoc-IFCH/Unicamp. A estas instituições somou-se o Laboratório de Estudos Constituintes (LECs) da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp-Guarulhos, com perspectivas de novas parcerias no futuro.
A exposição seguinte, de Rocha, resumiu os anos de pesquisa coordenando o projeto “Memória da Constituinte” que integra o Acervo Digital. O pesquisador divide o trabalho em três grandes fases: 1) a inicial, de construção do objeto de investigação; 2) a de consolidação, que ocorreu a partir do convênio com a Universidade Presbiteriana Mackenzie; e 3) a atual, que culminou com a organização do Acervo Digital.
Na fase inicial da pesquisa, após um levantamento inicial de dados, o Processo Constituinte foi definido como o objeto da investigação. A abordagem metodológica escolhida foi a história oral, com a técnica das entrevistas em profundidade. Os pesquisadores envolvidos passaram então a desenvolver uma sistemática para tratar o material coletado, que consistia em elaborar roteiros de entrevistas que circulavam entre os membros da equipe e eram enviados preliminarmente para o depoente. Após a entrevista e a transcrição bruta das falas, omitiam-se as perguntas e o texto era reformulado e encaminhado para a autorização do depoente. De maneira geral, três perguntas orientaram as entrevistas: em que medida a Constituinte foi um evento imprescindível para que o Brasil voltasse à democracia? Por quais motivos adotou-se no Brasil o formato de um Congresso Constituinte? De que forma explicar os resultados no texto da Constituição Federal de 1988?
A fase de consolidação inicia-se quando um dos depoentes, José Francisco Siqueira Neto, advogado trabalhista e professor, encampou o projeto e facilitou a formação de um convênio com a Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que passou a oferecer infraestrutura e contatos para a pesquisa. Na ocasião, 152 entrevistas foram realizadas. Além disso, ocorreram encontros sobre Processos Constituintes em perspectiva comparada com especialistas nacionais e internacionais. Atualmente, o projeto está na fase de armazenamento e divulgação do material coletado.
Especialista em arquivística, Berto realizou uma exposição voltada às questões metodológicas de organização dos acervos digitais, cuja relevância na atualidade é inegável. Ainda que uma série de processos devam ser obedecidos para a segura reprodução de mídias físicas para a forma digital, a criação de repositórios virtuais podem gerar incentivos no acesso a materiais, facilitando o uso por pesquisadores para além dos muros das instituições. No caso específico do Acervo Digital, a gestão do arquivo é realizada pelo software livre Tainacam. O repositório é composto por coleções de itens classificados de acordo com filtros específicos, de modo que há a possibilidade de customização de campos para facilitar os pontos de acesso. Berto concluiu observando que a inserção de coleções em bancos de dados digitais significa o começo de novas pesquisas sobre fontes primárias e secundárias.
Uma das entrevistadas pela coleção “Experiências de Pesquisa” do Acervo Digital, Leão Rego compartilhou o percurso da pesquisa “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania”[2]. O trabalho situa-se na perspectiva da Teoria Crítica Ética nos moldes de Adorno e Horkheimer, que renuncia aos modelos ideais de sociedade. Sobre as dificuldades metodológicas, indicou que, quando os sujeitos da pesquisa encontram-se em situação de vulnerabilidade, a situação requer da pesquisadora paciência, cuidado e escuta ativa. O tempo é um fator indefinido nesses casos, seja de duração das entrevistas ou de prazos para finalização do trabalho de campo. Muitas visitas são necessárias para estabelecer um contrato de confiança com os entrevistados, tendo em vista a natureza angustiante dos testemunhos necessários para a consecução dos objetivos de pesquisa.
Sobre a política brasileira e a democracia, o estudo investiga a pergunta: qual a importância que os entrevistados atribuem à política? Como resultado, Leão Rego apontou para uma percepção negativa das eleições e da política em geral. Refletiu sobre a pobreza enquanto um obstáculo para a democracia, na medida em que o sofrimento social é uma experiência social negativa bifronte, que pode levar o sujeito à rebelião ou à indiferença. A pesquisadora também mencionou a ascensão de uma religiosidade antidemocrática entre os sujeitos da pesquisa, o que sugere a vulnerabilidade das populações empobrecidas a discursos autoritários.
O evento foi encerrado com as perguntas daqueles que acompanhavam ao vivo no Youtube e com o lançamento de outra iniciativa do Cedec, o Podcast Lua Nova. Para o evento na íntegra, clique aqui: Lançamento – Acervo Digital Cedec
[1] Mestranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), bolsista CAPES, membro do Laboratório de Estudos sobre Política e Criminologia (Polcrim) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sofiapieruccettigutierrez@gmail.com.
[2] REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família–2a edição revista e ampliada: Autonomia, dinheiro e cidadania. SciELO-Editora UNESP, 2014.
Referências imagéticas:
Cartaz de divulgação do lançamento do Acervo Digital do Cedec. Disponível em <https://boletimluanova.org/acervo-digital-experiencias-de-pesquisa-e-diagnosticos-sobre-a-democracia-constitucional-brasileira/>. Acesso em 20 jun 2022.