Jorge Henrique Oliveira de Souza Gomes[1]
O Supremo Tribunal Federal (STF) se depara, atualmente, com um trade-off de difícil resolução: caso tenha uma postura tímida em relação aos arroubos autoritários do presidente Jair Messias Bolsonaro, porá em xeque sua missão institucional de instância contramajoritária e guardião das minorias, gerando possíveis consequências danosas para o destino do país. Por outro lado, caso opte pela constante confrontação direta e pela proatividade escancarada, arcará com um desgaste ainda maior de sua imagem pública, bem como com o aumento das acusações de politização, sem contar o risco de esticar demais a corda e instigar saídas inconstitucionais por parte dos atores mais radicais do ruidoso panorama político nacional. Esse segundo cenário também acarretaria resultados deletérios em termos de instabilidade e violência institucional. Como sair dessa encruzilhada? Afinal, qual o papel do mais alto tribunal do país à luz da teoria e da empiria?
Em primeiro lugar, é essencial lembrar algo consensual para os estudiosos do tema, mas que ainda causa alguma surpresa ou até indignação na população em geral: Tribunais Constitucionais, ministros, juízes e mesmo o Judiciário em geral são atores políticos (BRINKS e BLASS, 2019; VANBERG, 2015). Eles agem estrategicamente, interagem com o ambiente ao seu redor e calculam ações com base em reações futuras (LOPES, 2019; BRINKS e BLASS, 2019; HELMKE e ROSEMBLUTH, 2009).
Autocontenção, aquiescência e recuos, em alguns momentos, podem ser estratégicos. Em 1995, a Suprema Corte alemã, uma das mais poderosas do mundo, foi solenemente ignorada pelo parlamento da Bavária, região católica do sul do país, em relação à decisão judicial que ordenou a retirada de crucifixos nas escolas públicas. A despeito da decisão legal, o entendimento regional foi de que as cruzes representam uma expressão cultural majoritária e inofensiva. O Judiciário alemão decidiu não mexer nesse vespeiro e, no geral, os crucifixos continuam povoando as escolas da região. Segundo Vanberg (2005), confrontar as Cortes e até resistir às suas decisões, em alguns momentos, pode ser politicamente vantajoso para o parlamento ou para o Executivo a depender dos casos. Nesse sentido, é essencial saber quando e como agir, algo que vai muito além do conhecimento meramente bacharelesco, estritamente constitucionalista e jurídico dos manuais de Direito.
O entendimento e a divulgação da faceta política das Cortes, entretanto, também gera dificuldades, já que tende a hiper-normalizar entendimentos legalmente heterodoxos, jogadas excessivamente políticas e timings flagrantemente arbitrários, como vem destacando Conrado Hübner Mendes (2021) em relação ao STF. Contudo, análises/denúncias normativas ou tão somente jurídicas, conquanto necessárias, perdem de vista o caráter político do STF e das Cortes Constitucionais mundo afora.
A compreensão de instituições políticas, como o STF, transpõe uma leitura meramente legalista e baseada em critérios objetivos. A complexidade da atuação dos tribunais constitucionais reside precisamente no seu caráter jurídico-político. Nesse sentido, a separação entre política e direito tende a se mostrar cada vez mais problematizável e cinzenta. James Madison, um dos artífices do sistema de freios e contrapesos, indo além de Montesquieu, propôs um sistema de separação de 3 Poderes Políticos, não 2 Poderes políticos e um técnico/ neutro. O próprio método de escolha dos ministros do STF (que segue o padrão hegemônico de escolha dos membros da grande maioria das Cortes Supremas do mundo) evidencia a lógica política e mesmo ideológica da cúpula do Poder Judiciário, algo totalmente esperado. Visões de mundo diferentes, relativas aos diversos governos, devem ser contempladas em um tribunal que irá tratar de questões políticas.
A leitura constitucionalista, mormente de matriz liberal, tende a enxergar, no entanto, as Cortes como um contraponto técnico a decisões majoritárias estabanadas, apaixonadas, irracionais e mesmo ameaçadoras (AVRITZER e MARONA, 2014). Os teóricos como Ronald Dworkin, John Rawls e Samuel Freeman, percebem a democracia como um “esquema procedimental incompleto” (DWORKIN, 1978), que demanda a tutela de juízes “iluminados” detentores de conhecimentos avançados e distantes das pressões populares que conspurcam e corrompem os políticos tradicionais. Essa visão tradicionalista entra em choque com a realidade, onde juízes operam acordos, interagem com um “público” e, obviamente, erram. O que esperar, destarte, das Cortes Constitucionais e do STF?
Em geral, quando optam pelo conflito direto contra o executivo, as Cortes tendem a perder. Foi o caso, na Rússia, com Boris Yeltsin e mesmo nos EUA, no conflito com Franklin D. Roosevelt. Nos famosos escritos Federalistas, Alexander Hamilton caracteriza o Judiciário como o Poder menos perigoso, pois as Cortes não teriam poder de taxar, criar leis, comandar exércitos ou forças coercitivas. Entretanto, o STF brasileiro é uma das Cortes mais poderosas do mundo e isso decorre de escolhas do próprio legislador constituinte (ABRANCHES, 2018; CARVALHO, 2009).
Antes da Constituição de 1988 o STF não possuía a mesma estatura institucional que ostenta hoje. Na Ditadura Militar, por exemplo, Ministros foram cassados e aposentados compulsoriamente. Tais medidas soam impensáveis atualmente, mesmo com os vários ataques verbais e ameaças retóricas do Executivo. Entretanto, a ausência de um entendimento analítico e ponderado do viés político da Corte acaba por, além de confundir a população e gerar expectativas irreais a respeito dos Ministros, enfraquecer a própria noção de Independência Judicial tão duramente conquistada no Brasil. A falta de compreensão do perfil político dos Tribunais Constitucionais é uma dificuldade presente tanto em nichos progressistas quanto conservadores.
A relação de parte da opinião pública e do humor nacional em relação ao STF tem sido pendular. Durante as gestões petistas, para muitos, a Corte ganhou tons “heroicos” ao impor perdas significativas ao partido no famoso julgamento do Mensalão. Pela primeira vez, os ministros se tornaram mais conhecidos, comentados e populares. Ganharam força nessa época, por parte dos situacionistas, teses de soberania parlamentar, que defendem um Judiciário menos proativo como, por exemplo, no modelo Inglês ou Holandês. Alguns parlamentares governistas chegaram a defender uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) visando diminuir poderes do STF, a PEC 33 de 2011. A proposta teve uma recepção ruim por parte de associações de ofício e pela mídia em geral, tendo sido arquivada.
Nos setores mais progressistas da academia, a visão em relação ao STF costumava ser bastante crítica. Entretanto, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a Corte tem imposto perdas não-triviais ao governo, mostrando um grau elevado de coesão interna, inclusive (MELO, 2020). A defesa da independência judicial, dos freios e contrapesos e das instituições de controle está novamente em alta. Não obstante, atores outrora defensores do STF, que enxergavam ministros e juízes como verdadeiros “heróis de toga” debandaram e engrossam as fileiras dos críticos da Corte. Como explicar tal incoerência?
No mundo real não existem heróis, nem vilões. Tribunais Constitucionais se deparam com momentos históricos e janelas temporais que demandam diferentes linhas de ação. Gretchen Helmke (2004), por exemplo, destaca o conceito de “deserção estratégica”, no qual Cortes dependentes, em contextos de instabilidade política, decidem votar contra o governo antevendo futuras sanções caso a oposição chegue ao poder. No que tange ao Brasil, o STF é um tribunal considerado autônomo e bastante atuante (QUEIROZ, 2015; GOMES, 2018; CARVALHO, 2009). As decisões da Corte devem ser lidas não somente com base na sustentação jurídica e no mérito, mas com base na racionalidade própria da política.
Não devemos entender eventuais recuos táticos do STF apenas como “acovardamento”, nem as reações institucionais mais duras da Corte como ameaças à harmonia entre os poderes. O sistema de freios e contrapesos foi criado mirando precisamente o conflito e a competição, de modo que, no choque de ambições, inexista possibilidade de tirania de algum dos Poderes. A saída para a encruzilhada na qual está preso o STF reside no cálculo racional da Corte em relação tanto à manutenção e aprimoramento do Estado de Direito, quanto à sua sobrevivência pragmática como jogador relevante. Analisar e entender as características desse ator institucional como ele é, e não como ele deveria ser, é uma tarefa intelectual que fornece chaves importantes para o devido entendimento da política nacional.
Bibliografia:
ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
AVRITZER, L. e MARONA, M. Judicialização da Política no Brasil: ver além do Constitucionalismo Liberal para ver melhor. Revista Brasileira de Ciência Política. v. 15. 2014.
BRINKS, D. e BLASS, A. The DNA of Constitutional Justice in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
CARVALHO, E. Judicialização da Política no Brasil: Controle de Constitucionalidade e Racionalidade Política. Análise Social. Vol. XLIV (191). 2009.
DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge: Havard University Press. Cambridge, 1978.
HELMKE, G. Courts under Constraints – Judges, Generals and Presidents in Argentina. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
GOMES, J. Percepção da Independência Judicial na América do Sul: uma Análise Qualitativa Comparada. [Dissertação]. Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Graduação em Ciência Política. 2018.
LOPES, F. Dissent Aversion and sequential voting in brazilian Supreme Court. Journal of Empirical Legal Studies. 16 (4), p.933-954. 2019.
MELO, M. De 11 Ilhas a um Continente. Folha de São Paulo. 31 de Maio de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcus-melo/2020/05/de-onze-ilhas-a-um-continente.shtml . Acesso em: 29/09/2021.
MENDES, C. O STF come o Pão que o STF Amaçou. Folha de São Paulo. 06 de Abril de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/04/o-stf-come-o-pao-que-o-stf-amassou.shtml . Acesso em 29/09/2021.
QUEIROZ. L. O Silêncio dos Incubentes: fragmentação partidária e empoderamento judicial no Brasil. Tese. Universidade Federal de Pernambuco. 2015.
ROSENBLUTH, F. e HELMKE, G. Regimes and rule of law: judicial independency in comparative perspective. Annual Review of Political Science, Palo Alto, v. 12, p. 345-366. 2009. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev.polisci.12.04 0907.121521 Acesso em: 29/09/ 2021.
VANBERG, G. The Politics of Constitutional Review in Germany. Cambridge: Cambdrige University Press. 2005
VANBERG, G. Constitutional Courts in Comparative Perspective: a Theoretical Assessment. Annual Review of Political Science. 2015.
Referência imagética:
[1] Mestre em Ciência Política pela UFPE. E-mail para contato: jorge.oliveiragomes@ufpe.br