André Viola[1]
O tumulto político que assolou a península itálica entre o que se convencionou chamar de trecento e quattrocento aliado com uma renascença do estudo dos clássicos greco-romanos possibilitou o surgimento de reflexões aprofundadas sobre as formas de governo. Dentre as tendências políticas associadas ao resgate do estudo dos clássicos está o resgate do pensamento republicano, uma vez que, no momento em que o diálogo com os clássicos era recuperado (com destaque para Cícero), a República Florentina passava por um processo de consolidação oligárquica que vinha desde a Revolta dos Ciompi, o que fez com que os intelectuais da época se interessarem pelo elo entre cultura clássica e participação republicana (Bignotto, 1991).
Em particular, no âmbito da cidade de Florença, desenvolveu-se uma corrente de pensamento intitulada “humanismo cívico”, a qual buscava concentrar seus esforços intelectuais na associação entre teoria e prática política, o elogio da “libertas” e da “vita civile” e a condenação da tirania e seus excessos (Bignotto, 1991). Isso se deu tendo em vista a constante ameaça ao “vivere libero” dos florentinos tanto internamente, pela ascensão da família de’Medici, como externamente, pelas constantes ameaças dos reinos estrangeiros (França e Espanha), os ducados do Norte da Itália (em especial a Milão dos Visconti e dos Sforza) e do Papado, o qual exercia um poder temporal considerável na época.
Foi nesse período que eruditos como Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Leon Battista Alberti e Giovanni Cavalcanti exploraram temas caros a essa escola de pensamento, tais como a relação entre “fortuna” e “virtù”, a necessidade de uma vida ativa em oposição a uma vida contemplativa e, sobretudo, a ideia de liberdade em contraposição à tirania.
A liberdade adquire contornos importantes. De acordo com Bignotto (1991), ela podia assumir duas naturezas: em primeiro lugar se tem a ideia de liberdade como oposição entre repúblicas e outras formas de governo, buscando uma estabilidade e independência com relação a outros estados. Essa ideia viria a caracterizar a balança de poder que ia se desenhando na Itália desde a época das guerras entre Florença e Milão do tirano Giangaleazzo Visconti pelo comerciante florentino Gregorio Dati, e que se estende com uma série de alianças que Florença irá realizar com outras cidades livres como Gênova, com a finalidade de se proteger das tiranias (Baron, 1955). O segundo sentido de liberdade está relacionado com a natureza da constituição política de um estado, onde se tem uma clara relação entre virtù (entendida como participação nos negócios públicos) e a liberdade política dos cidadãos.
No início do cinquecento, Florença atravessa um novo período de turbulência política que irá evidenciar a importância da influência do “humanismo cívico” do quattrocento e ao mesmo tempo enfraquecer as suas bases. Em 1494 ocorre a queda do governo dos Médici devido à invasão francesa na península itálica chefiada por Carlos VIII, o qual buscava reconquistar o Reino de Nápoles das mãos dos espanhóis da dinastia de Aragão, e a subsequente instauração de uma República que iria durar até 1512.
Tentou-se restabelecer um governo republicano baseado em uma memória idealizada das instituições que existiram no passado da cidade, o que acabou por aumentar as tensões e conflitos, uma vez que os florentinos se depararam com uma cidade altamente complexa e desigual (Gilbert, 1965). Assim, desencadeou-se nesse período uma série de lutas entre facções[2] com o objetivo de descobrir a “melhor forma de governo” capaz de materializar o sonho de liberdade da cidade (Bignotto, 1991). Todavia, essas ferozes lutas internas foram as principais responsáveis pelo enfraquecimento das instituições florentinas, o que irá abalar as estruturas do humanismo cívico (a confiança na ação política baseada no conhecimento dos clássicos e na experiência) e dar base a uma nova forma de se pensar a política, pautada no realismo. De acordo com Gilbert:
As lutas políticas em Florença durante o regime republicano foram de decisiva importância para o desenvolvimento de uma nova abordagem para a política e a história, porque as questões básicas subjacentes às questões contínuas da vida política florentina não podiam ser resolvidas dentro da estrutura de suposições tradicionais. As conquistas dos pensadores políticos e historiadores florentinos do século dezesseis derivaram das suas tentativas de tornar a estrutura conceitual adequada à realidade política; os seus esforços geraram uma nova maneira de pensar sobre a política e a história. (Gilbert, 1965, p. 27-28. Tradução nossa)
Com o fim deste breve retorno republicano em 1512 e a restauração do governo dos Médici se tem um duro golpe à visão de mundo do humanismo cívico. A ideia de força passou a ser o motor decisivo da política pelas jovens gerações de aristocratas que haviam vivido o período anterior ao retorno dos Médici. Essa adesão à ideia de força não foi repentina, uma vez que o desamparo da Itália diante das invasões estrangeiras desde 1494 tinha sido uma demonstração do papel decisivo da força na política (Gilbert, 1965).
Nesse contexto intelectual de crise do pensamento político pautado no humanismo cívico e na crise da liberdade política florentina surge como representativa a figura de Nicolau Maquiavel.
Pensador emblemático, muito se discorreu sobre seus reais intentos. De um lado, existem aqueles que o consideram o fundador de uma ciência da tirania, como é o caso do francês Innocent Gentillet, que em seu “Discours sur les moyens de bien gouverner” (1576) o considera responsável por todos os males políticos da França de sua época.(Gentillet, 1974, apud Giorgini, 2004) Essa visão negativa ecoara mais adiante no tempo na obra do filósofo alemão Leo Strauss, que considera Maquiavel um “professor do mal”, dedicado à arte da sedução de leitores incautos, cujos ensinamentos considerados imorais e irreligiosos estariam na raiz da própria ideia de tirania contemporânea (Strauss, 2015). Do outro lado se tem aqueles que consideram-no como um pensador republicano e defensor da liberdade, como é o caso do jurista Alberico Gentili, que em seu De Legationibus (1585) o elogiou enquanto grande defensor da república e opositor da tirania (Viroli, 1998).
De fato, a “tirania” é uma temática controversa nas obras do secretário florentino. Muitos autores observaram o tratamento reservado ao termo em suas obras. Ora se tem uma ausência do termo “tirania”, como n’O Príncipe, mesmo quando se descrevem as ações de figuras históricas que demandariam o uso de tal termo[3], tais como Agátocles, Hierão de Siracusa e Oliverotto Euffreducci da Fermo (Pedullà, 2018; Giorgini, 2004; Ranum, 2020; Strauss, 2015), ora o termo se encontrava com bastante frequência como nos Discorsi e também na sua História de Florença.
Para compreender melhor o pensamento de Maquiavel sobre a tirania, é mister compreender o seu pensamento sobre as dinâmicas políticas e institucionais dos regimes políticos. Já no primeiro capítulo d’O Príncipe Maquiavel rompe com a tradição aristotélica de divisão tripartite das formas de governo e suas degenerações[4] dividindo estas apenas em duas: as repúblicas e os principados. As repúblicas estariam associadas à liberdade, ao passo que os principiados estariam submetidos ao poder de um príncipe (Maquiavel, 2001). Essa definição é, em seguida, expandida para uma divisão tripartite das formas de governos já no capítulo 9, onde se tem o “principado, liberdade ou licença” (Maquiavel, 2001). Esta última está melhor descrita no capítulo 2 do livro I dos Discorsi, onde a licença estaria associada à desordem e anarquia que degenera os governos populares, situação esta onde os cidadãos vivem “conforme o seu capricho” e as leis não são mais respeitadas. Nesse quadro, os cidadãos pensam em seus interesses ao invés do bem comum, o que os faz retornar “ao império de um só” (Maquiavel, 1979).
No capítulo 40 do livro I dos Discorsi, Maquiavel analisa a ascensão do tirano Ápio e o decenvirato em Roma para descrever as causas das tiranias. Maquiavel conclui que as tiranias, no geral, se originam do desacordo entre o desejo do povo de não ser dominado e o desejo da nobreza de dominá-lo, o que impossibilita a instauração de leis e instituições que protejam a liberdade. Mais além, de acordo com Maquiavel:
Quando o povo se equivoca ao ponto de projetar um cidadão para que possa combater o objeto de seu ódio, este favorito, se for habilidoso, não deixará de se transformar num tirano, servindo-se a princípio da força popular, para destruir a nobreza; e só após a destruição desta procurará oprimir o povo, que será escravizado sem saber a quem recorrer para defendê-lo. (Maquiavel, 1979, p. 138)
Daí poderia se concluir que o povo é um agente da corrupção, uma vez que permite em nome de seus interesses, que um indivíduo monopolize o poder em proveito próprio (Bignotto, 1991). Todavia, essa visão é apenas parcialmente verdadeira, pois ao mesmo tempo que, em Maquiavel, as tiranias surgem pelo desejo do povo de ser livre e o desejo dos nobres de governá-los, temos que nos lembrar que esse mesmo embate de humores (umori) também está na origem do principado e da liberdade, como mostrado no capítulo 9 d’O Príncipe (cf. Maquiavel, 2001, p.43).
Assim, o conflito dos humores do povo e dos nobres está na origem tanto da liberdade como da tirania. No capítulo 4 do livro I dos Discorsi, o secretário florentino faz uma ruptura drástica com a tradição política do humanismo cívico e faz um elogio ao conflito social entre o povo e os nobres (tumulti), o qual, segundo ele, está na origem da grandeza e da liberdade de Roma, uma vez que contribuiu para o surgimento de leis e instituições que asseguram a liberdade (“todas as leis para proteger a liberdade nascem da desunião”).
Dessa forma, Maquiavel vai nas bases institucionais de um estado (as leis) para descrever os conflitos sociais como uma faca de dois gumes: leis que são capazes de canalizar os humores do povo e da nobreza mantém a cidade livre e poderosa, mas na ausência de boas leis o conflito social cessa a busca pelo bem comum, o que gera perda de liberdade. A tirania seria, portanto, “o resultado negativo do conflito de facções” (Giorgini, 2004, p.7, tradução nossa)
Fica clara a oposição teórica na obra de Maquiavel: a oposição entre “sociedades livres” e “sociedades corrompidas” (Bignotto, 1991), ou, como enunciado na História de Florença, a oposição entre “ordem” (ordine) e “desordem” (disordine) (Maquiavel, 2007). Essa diferenciação fica evidente no livro 4 da História de Florença, no qual, reafirmando ideias presentes nos Discorsi, o secretário florentino afirma que:
As cidades, sobretudo as que não são bem ordenadas e são administradas com o nome de república, mudam frequentemente de governo e estado, não variando entre a liberdade e a servidão […] mas sim entre servidão e licença.[…] A verdade é que só quando ocorre (o que é raro) o surgimento de algum cidadão sábio, bom e poderoso, que ordene as leis capazes de aquietar os humores dos nobres e do povo ou de impedi-los de agir mal, é possível considerar livre tal cidade e estável e firme o seu estado.[…] Semelhantes leis e ordenações dotaram muitas repúblicas antigas cujos estados tiveram vida longa; semelhantes ordenações e leis faltaram e faltam a todas as repúblicas, cujos governos variaram e variam frequentemente do estado tirânico ao licencioso, e deste àquele. (Maquiavel, 2007, p. 221-222)
Essa sistematização corrobora com a tese defendida por Viroli (1998), para quem o republicanismo de Maquiavel estaria marcado por uma defesa do “Rule of Law”, entendido como o governo das leis justas (i.e., as que buscam o bem comum). Assim, justifica-se a preocupação de Maquiavel com a questão da segurança, ou seja, como prevenir a usurpação de uma constituição e a imposição de interesses facciosos.
No capítulo 2 do livro I dos Discorsi, Maquiavel endossa a anacyclosis (ἀνακύκλωσις) de Políbio para explicar o surgimento do governo republicano. Em seu início, Roma é uma monarquia com os Tarquínios, em seguida, a monarquia degenera em tirania, esta é derrubada devido à resistência dos aristocratas e se transforma em uma oligarquia, a qual é resistida pela plebe, o que faz com que se tenha uma república com uma constituição mista.
Tal constituição é considerada a forma perfeita de se governar uma cidade, uma vez que a mesma engloba todos os elementos desta, equilibrando os seus humores por meio da incorporação de seus conflitos e mesclando em suas instituições elementos das três formas de governo: os cônsules representando a monarquia, o senado representando a aristocracia e o tribuno da plebe representando o povo (Maquiavel, 1979).
Roma representaria o modelo de república perfeita pelo fato de ter sido capaz de canalizar os humores da cidade por meio de suas leis e da instituição de um governo popular bem ordenado, resolvendo seus problemas pela disputa (disputando). Florença, por sua vez, seria o exemplo de uma república corrupta e mal ordenada, onde se teria uma divisão entre o povo e a aristocracia que abriu o caminho para a tirania, sendo os conflitos resolvidos pelo combate (combattendo). Assim, os conflitos sociais são benéficos na medida em que as leis incorporam as reivindicações de todos os grupos presentes na cidade, como em Roma, mas são prejudiciais quando impõem a dominação de um grupo sobre o outro, como em Florença (Viroli, 1998).
Desta forma, o governo misto é aquele onde as leis e as instituições condicionam os cidadãos a serem virtuosos, tal como o caso romano ou os Estados livres alemães do século XVI, sendo o vivere libero caracterizado pela participação de todos os cidadãos na formação das leis que regulam a comunidade política e no respeito às mesmas. A liberdade, no pensamento republicano de Maquiavel, é igualada ao autogoverno (Giorgini, 2004).
A defesa de um governo misto onde a desunião entre o povo e a nobreza estaria na base das boas leis está também na base da crítica que o secretário florentino tece à Sereníssima República de Veneza, considerada na época o modelo de república bem ordenada para a maioria dos humanistas e aristocratas florentinos que frequentavam os Orti Oricellari (Bignotto, 1991; Viroli, 1998; Gilbert, 1977).
De acordo com o capítulo 6 do livro I dos Discorsi, Veneza não poderia ser um exemplo de república uma vez que, a fim de garantir a sua estabilidade, excluiu grande parte de sua população (popolani) do governo, delegando o processo decisório da república aos aristocratas (gentiluomini). Essa concordia[5] veneziana gera dois problemas fundamentais: em primeiro lugar, condiciona a mesma a não se expandir uma vez que o povo, desarmado, não seria capaz de preservar as conquistas ou de se defender de eventuais agressores, e, em segundo lugar, no caso em que conseguissem se manter sem guerras, o ócio geraria discórdia interna (Maquiavel, 1979).
Assim, configura-se uma preferência de Maquiavel pelas repúblicas de cunho democrático como no caso romano (governo largo) em oposição às repúblicas de cunho aristocrático como no caso veneziano (governo stretto) (Bignotto, 1991). A aparente paz (pax), que repúblicas como Veneza desfrutavam, nada mais era do que a dominação clara de um grupo sobre o outro, o que impede a verdadeira liberdade e virtù de florescer.
A passagem de uma República livre para uma tirania se dá pelo processo de corrupção de uma sociedade. Assim o regime deixa de ter como objetivo o bem comum, o qual, assim como em Salústio, é o que garante o bom governo sendo exclusivo da forma de governo republicana. Tem-se em Maquiavel um elogio ao viver livre (vivere libero) e ao viver civil (vivere civile) republicano em oposição à tirania e ao governo de um só (unica autorità). A arena política, então, é o palco onde “grandes feitos” são realizados, e a tirania o que previne os cidadãos de realizar qualquer coisa grandiosa (Giorgini, 2004).
O problema da ação e da virtù a ela inerente se põem tendo em vista a tendência de corrupção do corpo político. Para frear a degeneração de um estado Maquiavel defende a ideia de que se faz necessário um retorno constante ao princípio das repúblicas, uma vez que “é evidente que quando tais entidades não se podem renovar, perecem” (Maquiavel, 1979, p. 309).
Essa renovação pode ser dada ou por via de instituições que permitam a renovação frequente deste princípio fundador ou por meio da sabedoria de um homem. No caso de Roma, é célebre o episódio presente no capítulo 3 do livro III dos Discorsi, no qual o cônsul Brutus presidiu o julgamento de seus filhos, os condenou à morte e assistiu à execução dos mesmos devido ao fato de que eles haviam conspirado contra a república. Esse caso nos mostra a necessidade de exemplos que demonstrem a importância da coisa pública (res publica) acima dos afetos personalistas, e inspirem o temor pelas leis. Brutus foi considerado por Maquiavel “o pai da liberdade” em Roma por ter compreendido que o afeto público deveria substituir os afetos pessoais.
Do outro lado da moeda se tem o exemplo do gonfaloniere Piero Soderini de Florença, contemporâneo de Maquiavel e com quem o Maquiavel havia inclusive trabalhado (Gilbert, 1965). De acordo com a leitura de Maquiavel, Soderini não foi capaz de se desfazer dos “filhos de Brutus” (neste caso, os ottimati que se juntavam aos Médici para derrubar a república) e pensava que poderia contê-los dando-lhes vantagens. Além do mais, Soderini confiava demais na fortuna, acreditando que as vantagens distribuídas aos seus inimigos “invejosos” seria o suficiente para ascender sem qualquer tipo de desordem ou “gestos extraordinários”. Assim, por não ter sabido imitar o ato de Brutus e ter deixado o mal seguir o seu curso devido à sua inação, Soderini “perdeu ao mesmo tempo a pátria, o poder e a reputação” (Maquiavel, 1979, p. 318).
Faz-se necessário, assim, purgar os humores da cidade por meio da violência, como nos mostra o exemplo de Rômulo em Roma, que agiu violentamente matando seu irmão Remo em busca do bem comum, como foi demonstrado pelo fato dele estabelecer o Senado assim que completou o ato (Maquiavel, 1979).
Daí se depreende a razão do elogio de Maquiavel à instituição da ditadura em Roma no capítulo 34 do livro I dos Discorsi. De acordo com ele, a instituição da ditadura contribuiu para a grandeza de Roma uma vez que era um meio dentro da lei que a república tinha para se defender contra fatos extraordinários. O ditador tinha seu tempo limitado às circunstâncias excepcionais que o exigiam, a sua autoridade se limitava à tomada de medidas necessárias (muitas vezes violentas) para enfrentar um perigo determinando sem, no entanto, atentar contra as instituições (Maquiavel, 1979). Somente quando essa instituição foi usurpada pelos cidadãos com a finalidade de se manter no governo é que se tornou perigosa, como foi no caso de Júlio César, que se aproveitou da divisão entre plebe e os optimates pela questão das leis agrárias para conquistar a plebe e tomar o poder para si, tornando-se um tirano.
Todavia, não é toda violência que encontra o respaldo de Maquiavel, uma vez que esse uso é justificado somente quando a violência é utilizada tendo em vista o bem comum, mas se ela tem por objetivo destruir, a mesma tem que ser reprovada (cf. Maquiavel, 1979, p.49).
Dessa forma, se os “meios extraordinários” por vezes podem ser necessários para salvar uma república (e não somente repúblicas, mas também outras constituições como a exemplo da monarquia francesa, na qual o rei era contido pelas suas instituições – cf. Maquiavel, 1979, p.75), o uso banal e desregrado da força está nitidamente associado com a tirania.
Assim, pretendendo desconstruir a já mencionada ideia favorável que a juventude aristocrática de Florença tinha do uso da força, Maquiavel não se limita a um mero ataque à tirania como já fora feito pelos seus predecessores da intelectualidade florentina, mas, de acordo com Bignotto (1991):
Maquiavel escolhe uma via completamente nova, ao mostrar que não é o mal absoluto que deveria ser negado, pois ele tem um certo parentesco com a virtude, e sim o mal banal, que, pretendendo-se ao caráter exterior da violência, é incapaz de alcançar a grandeza. Os tiranos são criticados não pelo uso da força, mas pela mediocridade do uso que fazem dos meios extraordinários. (Bignotto, 1991, p. 103)
Considera-se tirano aquele que, aproveitando-se das divisões internas de uma constituição corrupta que não consegue canalizar essas divisões com suas leis, faz uso banal dos “meios extraordinários”, aplicando violência desmedida para fins pessoais, desvirtuando o “vivere civile” e o “vivere politico”. Nesse sentido, o tirano age no próprio interesse em oposição ao “bem comum” que deveria ser perseguido, destruindo toda liberdade de uma constituição política.
Esse entendimento de Maquiavel sobre a tirania joga luz sobre a ambiguidade moral do autor. Para ele, há uma diferença prática entre um tirano “vulgar” e um princípe forçado a usar um “remédio amargo” (austeriores medicinae) (Pedullà, 2018). Um tirano vulgar usa a violência para conquistar o poder para si, tendo péssimo caráter e demonstrando qualidades negativas como a covardia (como no caso de Gian Paolo Baglioni, tirano de Perúgia), além de viver em um estado constante de alerta e medo pela sua vida.
Figuras históricas como Oliverotto da Fermo e Agátocles de Siracusa n’O Príncipe; Pisístratos,Clearco e César nos Discorsi e Gualtieri de Brienne na História de Florença representam modelos de “tirano” ou “príncipe mal” pelo fato de usarem da violência para fins escusos e egoístas, aproveitando-se da corrupção do corpo político para tomar o poder absoluto em suas mãos.
Do outro lado da moeda se tem o príncipe forçado a usar a força para garantir e manter o bem comum. Dentre eles se tem a figura enigmática de Cesare Borgia, o “Duque Valentino”, filho do papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia). No capítulo 7 d’O Príncipe, Maquiavel afirma que Borgia é o modelo para os príncipes novos, uma vez que o mesmo teria sido capaz de unificar a Romanha[6] sobre o seu poderio e pacificar a região, empregando em suas conquistas todos os meios necessários para se manter no poder, incluindo até mesmo saber se desfazer de amizades.
Neste quesito dois casos são notórios: o assasinato dos Orsini, Vitellozzo Vitelli e Oliverotto da Fermo em Senigália por suspeitar da infidelidade destes e a execução de Ramiro de Lorca[7] na praça de Cesena, homem que havia sido posto pelo Valentino para pacificar a Romanha e havia se excedido na crueldade de sua função, de tal modo que Borgia se desfez dele para mostrar que se qualquer dano fora feito ao povo romanholo, a culpa fora de Ramiro.
Esse elogio ao Valentino levou alguns intérpretes como Pedullà (2018) a considerar que ele seria um modelo de príncipe pelo fato de que foi capaz de usar meios considerados tirânicos tendo o bem comum como finalidade.
Todavia, outras interpretações baseadas em uma leitura retórica do capítulo argumentam no sentido contrário. Cesare Borgia seria uma farsa, tendo sido capaz de manter suas conquistas apenas no período em que o pai viveu (logo, dependente da fortuna alheia), além disso, sua autoestima desmedida fez com que ele não tivesse criado fundamentos para o seu poder e também fez com que fosse enganado pelo Papa Júlio II (Ostrensky, 2021). Assim, ele representaria um tirano incauto, que depende dos exércitos alheios e, quando confrontado com sua inevitável derrota, culpa a fortuna pela sua queda (Najemy, 2013; Ostrensky, 2021). Tendo isso em mente, somente uma ironia no texto justificaria a escolha do mesmo como modelo para os príncipes novos.
Dado o exemplo de Borgia, conclui-se que no fundo o pensamento de Maquiavel se opõe de qualquer forma à figura do tirano (mesmo que ele não use explicitamente o termo para se referir a ele, como n’O Príncipe), sendo um defensor do modelo de governo repúblicano, no qual se teriam as condições para desfrutar da liberdade e da virtù. O tirano seria o efeito negativo da degeneração da matéria política causada pela corrupção; corrupção essa que, uma vez instalada, dificilmente torna-se reversível. Por essa razão Maquiavel afirma no capítulo 17 do livro I dos Discorsi, ecoando Salústio, que uma vez que o povo está acostumado a viver sob o poderio de um príncipe, dificilmente mantém a liberdade se por ventura vier a conquistá-la, pelo simples fato de que a corrupção está arraigada em seus ânimos.
Essa visão negativa da tirania e da corrupção está na raiz de sua preocupação com o futuro da Itália e da famosa exortação para liberar a península dos “bárbaros” no capítulo 26 d’O Príncipe. Como afirmado no capítulo 55 do livro I dos Discorsi, quando cita o exemplo dos estados livres alemães, a Itália está em um estado de degeneração tal que, se os estados alemães entrassem em contato com a mesma, seria rapidamente contagiada com tal corrupção. Desse modo, a salvação da Itália deveria vir de um cidadão capaz de limpar a corrupção e instaurar as bases de um governo que proporcionasse a virtù.
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a tirania em Maquiavel é um mal da sociedade a ser combatido antes que ele crie raízes e se torne irreversível. A liberdade, somente possível na forma de governo republicana, seria um bem a ser defendido a todo custo, mesmo que para tal defesa seja necessário recorrer à certas formas de violência, atos estes que seriam justificados por serem usados em nome do bem comum; ao passo que a violência vil do tirano sempre seria usada por proveito próprio, logo seria um sinal de corrupção e de ruína da liberdade.
*Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
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GILBERT, Felix Machiavelli e il suo tempo. Milano: Società editrice il Mulino, 1977
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MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1979
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NAJEMY, John. Machiavelli and Cesare Borgia: a reconsideration of Chapter 7 of “The Prince”. The Review of Politics, vol.75, no.4; pg.539-556, 2013.
OSTRENSKY, Eunice. Imitação e engano no Capítulo 7 d’O Príncipe: César Borgia como exemplo. Em: Política e contingência: Estudos em Teoria Política Moderna. Tese de Livre Docência da Universidade de São Paulo, 2021
PEDULLÀ, Gabriele. Machiavelli’s Prince and the Concept of Tyranny. In: Evil Lords: Theories and Representations of Tyranny from Antiquity to the Renaissance (pp.191-210). Oxford University Press.Oxford, 2018
RANUM, Orest. Tyranny from Ancient Greece to Renaissance France. Palgrave Pivot, 2020
STRAUSS, Leo. Reflexões sobre Maquiavel. São Paulo: É Realizações Editora, 2015
VIROLI, Maurizio. Machiavelli (Founders of Modern Political and Social Thought). Oxford: Oxford University Press, 1998
[1] Doutorando no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e mestre em Ciência Política pela mesma instituição. Email: viola1@usp.br. Agradeço à professora Dra.Eunice Ostrensky (USP) por ter sugerido a publicação do texto
[2] A saber, os Bigi (pró-Médici), os Bianchi (defendem a nova ordem apesar do passado pró-Médici), os Ottimati (possuem um projeto de república aristocrática) e o Povo (defendiam o não retorno do antigo estado das coisas) (Bignotto, 1991)
[3] Tendo em vista que O Príncipe foi endereçado à Lorenzo de’Medici (um “príncipe”, neto de outro Lorenzo de’Medici, “O magnífico”, o qual foi de facto senhor de Florença entre 1469 e 1492) Leo Strauss conclui que a razão da ausência da palavra “tirano” se dá pelo fato de que esta “é uma palavra dura demais para usar quando se está ao alcance de um príncipe” (Strauss, 2015, p.38).
[4] A saber, a monarquia, a aristocracia e a república, das quais derivam três formas corrompidas, a tirania, a oligarquia e a democracia. (Aristóteles, 1998)
[5] Aqui configura-se uma clara oposição ao pensamento republicano romano de Cícero, o qual defendia a concordia ordinum (entendida como a harmonia entre as diferentes classes da república) e uma república de cunho aristocrático, uma vez que entre os populares (indivíduos que defendiam os interesses do povo em oposição ao senado) e os optimates (os que favoreciam os interesses dos optimi, i.e., os nobres, os quais eram considerados os “melhores”) ele pendia para o lado dos optimates pela sua simpatia pelo senado e a sua ênfase na questão da propriedade (Cicero, 1991).
[6] Vale lembrar que a Romanha era famosa por sua corrupção, sendo a tirania dos governantes de suas cidades denunciada pelo poeta Dante Alighieri no Canto XXVII do Inferno, onde Guido da Montefeltro pede notícias da região (Alighieri, 2021).
[7] O seu nome fora escrito por Maquiavel como “Remirro d’Orco”. Considerando que “Orco” é “Ogro” em italiano, essa caracterização deixa subentendida a visão negativa que Maquiavel tinha dos que empregam meios tirânicos no poder.
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. Niccolò Machiavelli Uffizi. 2004. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/Niccol%C3%B2_Machiavelli#/media/File:Niccolo_Machiavelli_uffizi.jpg. Acesso em 10 abr 2023.