Andréia Fressatti Cardoso[1]
Paulo Bittencourt[2]
As eleições de 2022, desde seu início, são marcadas pela existência de dois campos com interesses e projetos de país distintos; o que se acentuou com o segundo turno dos cargos executivos, em especial o de presidência da República. Se, de um lado, há um voto que se diz em defesa da tríade “Deus, pátria e família”, de outro, temos a preocupação com a continuidade do regime democrático e a defesa dos direitos dos cidadãos. Com esta última em mente, o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e o Coletivo USP pela Democracia promoveram um debate com o tema “As Eleições de 2022 e a Democracia”. O evento foi realizado no dia 18 de outubro de 2022, com transmissão via YouTube. Participaram André Singer (FFLCH/USP) e Maria Victoria Benevides (FE/USP), e a mediação ficou a cargo de Ana Estela Haddad (FO/USP).
O debate foi iniciado com a intervenção de Singer, que apontou para elementos estruturais enraizados na cultura política brasileira, já identificados em 1967 por Antônio Cândido, como o personalismo autocrático e outros componentes fascistas. Essa reflexão, por sua vez, vem do dilema proposto por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, em que este, ao se questionar sobre a possibilidade de uma vivência democrática no Brasil, assinala a presença de um elemento político personalista de claro viés autoritário. Ainda que Cândido tivesse escrito durante o período ditatorial, alguns desses elementos, que já vinham de outros períodos, permaneceram e, em parte, auxiliariam na compreensão do atual momento eleitoral que vivemos.
Por esse motivo, Singer acredita ser fundamental o debate proposto pelo evento. Segundo ele, as eleições de 2022 atualizam de forma dramática a pergunta posta por Holanda. Singer identifica a existência de impulsos democráticos que quase resolveram as eleições no primeiro turno; contudo, há uma parcela da sociedade brasileira que mantém um impulso autoritário e personalista que deslocou a decisão final do pleito para o segundo turno. Esse impulso se torna ainda mais digno de atenção quando temos em mente que se trata de um governo que já fora eleito em 2018 sem esconder seu viés autocrático, que se manteve ao longo dos quatro anos de governo. A essa experiência de quatro anos, Singer classifica de “autocratismo de viés fascista”.
Se o Datafolha indica ainda uma diferença de 5% para o campo progressista, Singer nota como ela é expressiva nos eleitores que estão na base econômica do país, indicando uma importante diferença de classe entre os campos em disputa pelas eleições presidenciais de 2022. Há uma preferência pela democracia neste grupo, expressa em um voto que pretende defender os processos institucionais e o retorno de suas demandas à agenda política; possivelmente, uma esperança de serem incluídas, novamente, na agenda pública com Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Haverá, com efeito, o desafio de inseri-lo uma vez mais na vida política caso o candidato Lula saia vitorioso do pleito; contudo, essa informação delineia a diferença entre esses eleitores e o atual bloco que ocupa o poder. Nesse sentido, o grande desafio, invocando-se Celso Furtado, é o de romper com as seculares estruturas econômicas anacrônicas do país, que perpetuam o seu subdesenvolvimento.
Parte dessa estrutura anacrônica deve-se ao fato de a riqueza do país ser remetida ao exterior, e isso não se dá senão com a anuência de grupos que colocam o projeto autocrático como um projeto político competitivo. Identificado como um bloco agro-militar-religioso favorável ao atual presidente da República, trata-se de um grupo composto por diferentes interesses econômicos e morais, estes últimos em suposta defesa da tríade “Deus, pátria e família”. Com eles estão também o chamado Centrão – que atualmente possui a chefia da Câmara dos Deputados – e o orçamento secreto, que permite que este bloco avance seus projetos.
Ainda que cause estranheza a oposição entre este bloco no poder e uma preferência das classes mais baixas pela democracia, Singer indica que há três processos estruturais que apoiam esse conflituoso projeto. O primeiro deles é uma longa desindustrialização do Brasil, promovida já na Ditadura Militar (1964-1985) e que permitiu a ascensão do agronegócio e transformação do Brasil em um grande produtor de commodities rurais. É sintomático desse processo o fato de que as áreas em que o presidente venceu no primeiro turno desenham um bolsão do Rio Grande do Sul ao Nordeste, englobando partes do Norte e do Centro-Oeste brasileiros. Esse território tem sido muito próspero dada a recente valorização das commodities, o que explica o sucesso eleitoral que o incumbente obteve junto ao setor agropecuário.
O segundo processo estrutural (e, aqui, Singer faz referência ao trabalho da cientista política Marina Basso Lacerda, pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC/FFLCH/USP) aponta para como a ditadura militar apostou na confissão evangélica diante da perda de base da igreja católica ao tomar posições mais progressistas. Esse longo investimento de setores mais conservadores nessas confissões parece estar dando resultados inéditos no Brasil. Não há registro anterior no país do empenho de pastores no sentido de orientar e até mesmo pressionar seus fiéis a um voto à direita. Na proporção atual, isso é completamente inédito e quase completamente voltado à direita.
O terceiro processo estruturante é o processo de militarização da sociedade brasileira, que decorre de uma crise contínua da segurança pública, que já tem aproximadamente quarenta anos. Há indícios de que nesse setor, com um vínculo bastante cultivado pelo atual presidente, existe uma coincidência (para não dizer orientação) na direção do voto para o mesmo. Ao fim, Singer apontou para a importação do Trumpismo para o Brasil que, dada a presença desses elementos estruturais e as raízes autoritárias do país, encontrou campo fértil para se desenvolver e se promover nos cargos políticos.
Em seguida, Benevides passou a sua intervenção, retomando e concordando com os pontos apresentados por Singer, mas destacando que este talvez seja o pleito eleitoral mais importante da história do Brasil. Assim como Singer, Benevides retoma uma vez mais Antônio Cândido, ao se questionar sobre a possibilidade de uma vida democrática na sociedade brasileira. Mais do que campos adversários, nota-se que há um tratamento distinto das eleições neste ano: se um lado as visualiza como um “plebiscito” para aceitar um ditador em potencial, de outro há a defesa de um voto pela sobrevivência da nação e da sociedade democrática. Há um risco à democracia que é inegável no atual pleito.
Apresentando a democracia a partir de seus elementos (o Estado de direito, a participação da sociedade democrática, a pluralidade e o conflito, e o reconhecimento e respeito aos direitos humanos e fundamentais – que no Brasil incluem direitos sociais e econômicos), Benevides destaca como a situação democrática no país não poderia ser pior atualmente. Depois de quatro anos, ela também nota a presença do que Singer chama de “autocratismo de viés fascista”, evidenciado no desmonte institucional e na retórica anti-intelectual e de ressentimento. Para além disso, há também um completo desdém pelos direitos humanos e por grupos vulneráveis: mulheres, pretos, pobres, quilombolas, povos originários, crianças.
Benevides considera que essa situação de ausência de prumo democrático piora quando tomamos em conta a conjuntura internacional: as democracias estão sendo enfraquecidas no mundo. Os mesmos assaltos à democracia podem ser encontrados nos manuais de Steve Bannon e de outros nomes da alt-right, com quem o grupo hoje no poder possui estreita relação. Com a nova extrema direita (na Suécia e na Itália, e que ameaça chegar ao poder na França), e com a guerra na Ucrânia, vemos que nos últimos dez anos houve uma regressão democrática em trinta países, o que leva a um percentual importante da população mundial não estar mais vivendo sob democracias plenas. Na Hungria, por exemplo, há um controle do executivo sobre o legislativo e o judiciário.
O sucesso do atual presidente brasileiro é notável em dois campos: na Internet, em especial nas redes sociais, e entre os evangélicos. Deixando um pouco de lado o primeiro elemento, é interessante como se fortaleceu uma espécie de nacionalismo cristão, profundamente reacionário e que se alimenta do sentimento antipetista e de um argumento da necessidade de moralização da sociedade. Quando se olha com mais atenção esse grupo evangélico, percebemos que a adesão à igreja evangélica é muito mais do que uma adesão religiosa estritamente espiritual. É uma adesão social, afetiva e emocional. Quando se trata do neopentecostalismo, a religião é um princípio organizador da vida dos fiéis. A religião faz parte da vida e, portanto, a orientação política faz parte dessa vida. O voto em Bolsonaro é, utilizando as palavras de João Coutinho, um voto convicto na tríade de “Deus, pátria e família”, trinca esta que, para além da estrutura ética, é vista como devendo também compor a política. Um outro elemento que Benevides destaca é a militarização da educação, com a multiplicação de colégios cívico-militares por todo país.
Os riscos da reeleição são, assim, resumidos na continuidade do desmonte das instituições democráticas, a exacerbação dos conflitos com o Poder Judiciário, o potencial de ampliação das políticas de armamento da população (e a consequente escalada da violência), e a ameaça amplificada aos direitos humanos e fundamentais, ao meio ambiente e à tolerância e ao pluralismo. Se uma imagem pode ser feita dos quatro anos do governo é a de exclusão dos grupos que são contrários a seu projeto de poder, de promoção da violência contra a democracia e suas instituições e de desmatamento e ameaça à biodiversidade nacional. Além disso, Benevides acrescenta o aumento do isolamento do Brasil nas relações internacionais – nas quais já assume a figura de um pária – e a cumplicidade com o Centrão e a chamada “velha política”.
Como ações de curto prazo, resta exigir das autoridades o controle do processo eleitoral, pela proibição de fake news e limitação do poder econômico e político do incumbente, mas também a atenção e proteção à imprensa e aos institutos de pesquisa, alvos de ataques constantes dos apoiadores do atual presidente. Aos progressistas, cabe compreender a ausência de uma noção clara de democracia para o povo e buscar “furar sua bolha”, levando o diálogo e procurando entender os processos políticos pelos quais passamos.
O debate posterior refletiu muitos dos comentários feitos no YouTube durante as intervenções. A distância da classe social entre os dois campos adversários foi ressaltada diversas vezes, apontando-se também para sua consequente distância cultural. A grande desigualdade social e econômica do Brasil é um dado relevante nas análises políticas e deve ser uma das preocupações dos candidatos. Todavia, nota-se um certo horror à igualdade nos campos mais à direita, o que pode explicar a exclusão de parte da população dos projetos de governo que promovem. Além disso, apontou-se para o risco de remoção da laicidade do Estado, pois, ainda que a maioria da população se identifique como cristã, uma parte não o é; e quais seriam as ações impostas sobre aqueles que não se identificam com a religião cristã? Há um risco evidente às minorias quando se promove a tríade “Deus, pátria e família”, uma vez que seus elementos não são unânimes e a figura da “família” aventada não corresponde à realidade das famílias (no plural) brasileiras.
O momento de realização deste debate é importante por uma série de fatores que perpassam e extrapolam a proximidade do segundo turno das eleições. O primeiro deles é a possibilidade da tomada de decisão informada acerca daquilo que de fato está em jogo nas eleições de 2022. Há, de um lado, uma busca pela manutenção de direitos que foram adquiridos e de restauração daqueles que nos últimos quatro anos foram sendo incessante e paulatinamente desmontados. Também a preservação da democracia e de suas instituições. Por outro lado, temos um projeto político que busca, justamente, avançar sobre essas conquistas tentando convencer que esse desmonte se dá em nome de uma suposta “liberdade”, que desconhece os limites que se impõem pela própria instauração da ideia de sociedade.
Nesse sentido, um outro aspecto importante de um debate como este é o fato de termos substância para classificar e, na medida do que nos é possível, enfraquecer narrativas que se sustentam e espalham facilmente com a presença de fake news. Quando colocamos em tela os longos processos que se desenvolvem há alguns anos, e como eles se intensificaram nos últimos quatro, temos uma real dimensão daquilo que temos diante de nós, e do que o pleito de 2022 pode, de fato, significar. Como destacou Benevides, o voto em 2022 nos parece, de fato, ser um voto de sobrevivência: sobrevivência dos direitos, da participação popular e, essencialmente, da própria democracia, pela qual tão arduamente se batalhou no final do século passado.
Em época de processos globais de autocratização, é necessário, mais do que nunca, estarmos “atentos e fortes” às tentativas de mudança institucional que possam, de alguma forma, cercear as liberdades (essas sim, liberdades de fato) democráticas que a sociedade brasileira por tantos anos lutou. Se, por um lado, é fácil adentrar na rota da autocratização através da democracia, por outro não sabemos quão difícil pode ser sair desse caminho pela expansão de liberdades democráticas posteriormente. A suspeita é a de que seja extremamente difícil. Na dúvida, o ideal é manter as liberdades que temos e combater assédios autocráticos com mais democracia, e nunca com menos.
[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa FAPESP (processo n. 2020/14387-8), e membro da equipe do Boletim Lua Nova. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
[2] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa CAPES, membro do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (NUPRI/USP), e membro da equipe do Boletim Lua Nova.
Fonte Imagética: Cartaz de divulgação do Debate “As Eleições de 2022 e a Democracia”. Disponível em <https://cenedic.fflch.usp.br/>. Acesso em 19 out 2022.