Paulo Bittencourt[1]
Partindo do meu interesse nas teorias das Relações Internacionais, e considerando o papel importante que Hans Morgenthau ocupa neste campo, o objetivo deste texto é apontar alguns dos pressupostos do autor germânico para a elaboração de seu ponto de vista sobre a política. A partir disso, viso demonstrar como sua visão é passível de uma crítica na chave daquilo que Quentin Skinner chamara, em 1969[2], de mitologias. Ora, tendo em vista que Morgenthau elabora sua visão da “política entre as nações” a partir da teoria política, e tendo em vista também que a história das ideias políticas – ou melhor, dos argumentos e reformulação dos argumentos políticos visando a sua legitimação (PALONEN, 1997) – é a preocupação principal de Skinner em Meaning and understanding in the history of ideas, não me parece descabido combinar esse interesse pessoal ao objeto de estudo dos autores em questão.
Dilemmas of politics, livro de 1958 de Morgenthau, parte do pressuposto de que há “ensinamentos tradicionais” que devem ser considerados para se tratar de assuntos contemporâneos (MORGENTHAU, 1958, p. 1). O “dilema” que dá origem ao livro em questão se encontra justamente neste pressuposto: o quanto dos “ensinamentos tradicionais” são “verdades perenes” da política, e o quanto é fruto de interesses e circunstâncias particulares? O autor parte, pois, de uma crença de que há problemas políticos que são encontrados em todas as sociedades, em todos os períodos históricos. Tais problemas devem por elas ser encarados, buscando-se uma solução – novamente, a partir dos ensinamentos perenes que não devem ser confundidos com interesses e circunstâncias particulares: “este livro assume (…) não apenas o valor contínuo da tradição do pensamento político para o mundo contemporâneo, como também a necessidade de restauração de seus elementos atemporais” (MORGENTHAU, 1958, p. 3, grifos meus). Como objetivo do livro, o autor diz buscar uma avaliação crítica de tentativas de se recriar um sistema relevante de pensamento político, sistemas que foram aos poucos erodidos ao longo de dois séculos – por meio, entre outros, da teoria política de Rousseau, da filosofia de Nietzsche e da psicanálise freudiana (MORGENTHAU, 1958).
Um dos exemplos de que Morgenthau se vale para explorar a questão das “verdades perenes” é, interessantemente, Maquiavel. Digo que seja interessante porque é justamente um dos autores de maior interesse de Quentin Skinner – e, apesar de eu não ser capaz de dizer com precisão se Morgenthau teve algum contato com a obra de Skinner (embora eu suponha que não), um trecho é importante para compreendermos como Morgenthau lê o florentino:
(…) Maquiavel era um filósofo político versado na tradição antiga, (…) sua investigação empírica é delimitada dentro de uma estrutura filosófica que se baseia sobre os pilares da fortuna e da virtu, conceitos que vêm diretamente da antiguidade clássica, e que seu trabalho, longe de ser ‘diretamente empírico’, é um protesto filosófico contra a tradição escolástica (…). O propósito deles [Maquiavel, Rafael e Michelangelo] era filosófico e não meramente descritivo (MORGENTHAU, 1958, p. 20-21, grifo meu).
O primeiro ponto a se analisar, a partir do excerto, é o fato de as categorias de virtu e fortuna virem diretamente da antiguidade clássica para o pensamento de Maquiavel, como se não houvesse, em cada um dos casos, um uso específico e retórico destas categorias. Nesse sentido, seria necessário averiguar de que maneira os leitores dos clássicos da Antiguidade na Florença Renascentista liam os conceitos de virtu e fortuna, e em que sentido Maquiavel poderia ter inovado tais usos, ou mantido o significado original. De qualquer maneira, parece impreciso dizer que as categorias vieram “diretamente” da Antiguidade clássica e correspondam, pois, a categorias que se prezem à candidatura de “verdades perenes” da política.
Para Morgenthau, há uma verdade objetiva na política. Esta é uma afirmação recorrente no texto em questão. Para ele, o cientista político tem um papel ambivalente em seu meio social. Este cientista, ao mesmo tempo em que deve superar as limitações características da própria sociedade em que ele está imerso (e que limita seu acesso às “verdades” dos assuntos políticos), sofre também a pressão que a sociedade exerce sobre ele na busca de prestígio – o que também limita suas possibilidades de busca da verdade, pois a sociedade atua vigorosamente para esconder as realidades (“verdades”) que a sustentam: “a verdade da ciência política é a verdade sobre o poder, suas manifestações, suas configurações, suas limitações, suas implicações, suas leis” (MORGENTHAU, 1958, p. 28). Há um “véu ideológico” que deixa turvas as verdadeiras engrenagens das relações de poder existentes numa sociedade. E, nesse mesmo sentido, portanto,
uma ciência política que é honesta em seu compromisso moral deve ser no mínimo uma empreitada impopular. Na melhor hipótese, ela não pode evitar ser uma força subversiva e revolucionária em relação a certos interesses escusos – intelectuais, políticos, econômicos, sociais em geral (MORGENTHAU, 1958, p. 29, grifos meus).
Assim sendo, na visão de Morgenthau, uma ciência política que faça jus a suas pretensões científicas e a seu objeto de análise deve levar em conta: 1) a importância da filosofia política para o estudo científico da política; 2) a identidade da teoria política e da ciência política; e, enfim, 3) a habilidade da ciência política em comunicar a verdade objetiva e geral sobre os assuntos políticos (MORGENTHAU, 1958, p. 32)[3]. Dos três pontos, gostaria apenas de adicionar detalhes ao segundo, que trata da identidade entre teoria e ciência políticas. Para Morgenthau, a diferenciação entre estes dois campos, característica da academia estadunidense, é “desastrosa”, porque “tornou a teoria política estéril ao remover seu contato com os assuntos políticos contemporâneos, e tende a esvaziar a ciência política de seu conteúdo intelectual” (MORGENTHAU, 1958, p. 34). Fica mais claro, contudo, a visão que Morgenthau tem da teoria política a partir do seguinte excerto:
a ciência política, como qualquer ciência, pressupõe a existência e acessibilidade a verdades objetivas e gerais. Se nada que é verdadeiro sem relação ao tempo e ao espaço pudesse ser dito sobre assuntos políticos, então a própria ciência política seria impossível. Contudo, toda a história do pensamento político é um monumento vivo a tal possibilidade. Para nós, a relevância dos pensamentos, considerados verdadeiros, de cientistas políticos do passado, refletindo sobre assuntos políticos sob as mais diversas circunstâncias históricas aponta-nos para a existência de uma gama de verdades objetivas e gerais que são acessíveis a nós da mesma forma que eram aos nossos predecessores. Se assim não fosse, como nós poderíamos não somente compreender como também apreciar os insights políticos de um Jeremias, de um Kautilya, um Platão, um Bodin, um Hobbes? (MORGENTHAU, 1958, p. 36, grifos meus).
Para Morgenthau, o elemento unificador da política é a luta pelo poder (struggle for power). Ainda que o poder possa se adaptar e mudar de imagem em diferentes períodos históricos, a busca por este elemento é uma verdade objetiva e geral: “ao tornar o poder seu conceito central, uma teoria da política supõe que apenas as relações de poder controlam a ação política” (MORGENTHAU, 1958, p. 39). Nesse sentido, uma teoria política não somente explica e dá conta dos elementos fundamentais da análise política, como também contém um elemento normativo, um “mapa da cena política com o propósito de não apenas compreender tal cena, como também de apresentar o caminho mais seguro e curto para um objetivo posto” (MORGENTHAU, 1958, p. 40).
Estes breves excertos não tratam, como se pode ver, de explorar nenhum autor específico: eles tratam mais da própria visão de Morgenthau sobre o que considera como teoria política, e qual sua relação com a ciência política. Mais especificamente, esta brevíssima retomada nos aponta para como deve ser lida a teoria política para Morgenthau e, sobre isso, o autor é claro: os textos do passado são diretamente acessíveis a nós, e contêm, guardadas as devidas proporções contingenciais da história, “verdades perenes” sobre o poder e as relações de poder existentes nas sociedades. É nesse sentido que Kautilya, nos séculos IV e III a.C. na região do que viria a ser a Índia, Hobbes na Inglaterra do século XVI e Maquiavel no Cinquecento florentino podem nos auxiliar na reflexão dos problemas do presente. Eles servem como lanternas que iluminam as “verdades perenes” de todas as sociedades e contribuem assim para a reflexão sobre nossos próprios problemas.
Para Skinner, nada há de mais a-histórico e equivocado do que essa forma de se lerem os textos do passado. Aqui, não busco compreender a metodologia de Skinner, senão demonstrar como a leitura de textos do passado é passível de equívocos de acordo com o que o autor britânico chama de “mitologias”. Acredito que muito da leitura de Morgenthau seja construída a partir destas mitologias – como, aliás, o próprio Skinner menciona, apesar de eu haver colocado uma lupa sobre o caso específico de Morgenthau, ampliando-o.
O ponto inicial de Skinner é que, mesmo que se passe a uma análise meticulosa exclusivamente dos textos de um único autor, é quase inegável que os autores e autoras da teoria política, ainda que comprometidos com uma tradição intelectual específica, lidam com o emprego de vocabulários característicos e relativamente estáveis – “do contrário, não teríamos qualquer forma – sequer justificativa – para delinear e falar a respeito de, por exemplo, das histórias do pensamento na ética ou na política como um campo reconhecível de atividades” (SKINNER, 2002, p. 58). Vocábulos políticos apresentam estabilidade, ao passo que conceitos são sempre submetidos a diferentes conteúdos, condicionados às discussões políticas em que são mobilizados[4].
Uma expressão fundamental para Skinner, aqui, é a de prioridade dos paradigmas. Para o historiador das ideias, a aplicação da “sabedoria atemporal” de “ideias universais” não passa de uma “interpretação livre” do passado, porque o pesquisador ou a pesquisadora que se vale dessa forma de leitura e estudo dos textos do passado aplica, ainda que inconscientemente, paradigmas do próprio contexto em que esta pesquisadora está inserida, e que não é, necessariamente, comum ao contexto intelectual em que estava imerso o texto (e os autores ou autoras) que lhe é objeto de estudos. O pesquisador do presente é dominado por um ordenamento mental (mental set) que lhe faz ver aplicações no presente de ideias do passado que são essencialmente inaplicáveis ao contexto em que se encontra atualmente. Essas histórias intelectuais não são, para Skinner, propriamente histórias intelectuais, senão mitologias. É da prioridade dos paradigmas, ou seja, do fato de que os historiadores das ideias estarão inevitavelmente dispostos a determinadas interpretações, buscando características sobre as quais os autores estudados supostamente deverão ter trabalhado, que se originam as duas mitologias a seguir (SKINNER, 2002, p. 72).
A primeira dessas mitologias é a mitologia da doutrina: “é um passo perigosamente pequeno entre estar sob a influência (ainda que inconscientemente) de um paradigma, e ‘descobrir’ as doutrinas de um dado autor em todos os temas fundamentais” (SKINNER, 2002, p. 59). Dentre as muitas formas que esta mitologia assume, uma delas é a de que ressalvas ou trechos esparsos de determinados autores sejam convertidos em sua doutrina sobre um tema sobre o qual se espera que ele trate (SKINNER, 2002, p. 60). Nesse sentido, é perigosa a tentação do anacronismo, que faz com que algum autor (do passado) explore um tema sobre o qual ele não pode (no passado) ter se preocupado. O original é importante para esclarecer este ponto: “a given writer may be ‘discovered’ to have held a view, on the strength of some chance similarity of terminology, about an argument to which they cannot in principle have meant to contribute”[5].
É também perigoso, dentro da citada mitologia, encontrar uma suposta doutrina de determinado autor de maneira muito simples em textos clássicos: “se o autor buscasse articular a doutrina que se lhe credita, por que é que ele falhou tão grandemente em fazê-lo, de modo que é deixado ao historiador a tarefa de reconstruir suas alegadas intenções por meio de pistas e palpites?” (SKINNER, 2002, p. 62). Outro aspecto importante da mitologia das doutrinas é aquele que se manifesta no próprio campo do estudo da “história das ideias”, já que, neste caso, uma vez que o historiador busca uma determinada ideia, como se fosse imanente na História, a linguagem torna-se semelhante àquela da descrição de um organismo vivo, fazendo, pois, que o pressuposto de que as ideias dependem de um agente seja deixado de lado, e a ideia tome “vida própria”, por assim dizer. Em resumo:
a primeira forma, então, da mitologia das doutrinas pode ser resumida em consistir, de diferentes formas, na confusão de algumas ressalvas incidentais ou pulverizadas de um teórico clássico com sua “doutrina” sobre um dos temas que o historiador está disposto a esperar. A segunda forma (…) envolve o erro oposto. Um teórico clássico que falha em enunciar uma doutrina reconhecível sobre um tema obrigatório é criticado por não elaborar sua própria tarefa (SKINNER, 2002, p. 64).
De acordo com Skinner, as disciplinas de teoria política e moral, segundo os autores que lidam com elas (e com quem Skinner está debatendo), preocupam-se (ou pelo menos “deveriam se preocupar”) com padrões eternos ou, pelo menos, tradicionalmente verdadeiros, nos termos de Leo Strauss. E essa afirmação é fundamental para uma crítica contextualista ao pensamento de Morgenthau, também:
o estudo histórico da teoria política e moral é atualmente obcecada por uma versão monstruosa (mas altamente influente) deste erro. Estas disciplinas, somos lembrados, estão, ou deveriam estar, preocupadas com “padrões verdadeiros” eternos, ou pelo menos tradicionais. Dessa forma, pensa-se ser apropriado tratar-se a história destas disciplinas considerando o tom característico da reflexão contemporânea “sobre a vida e seus objetivos” “como um tom inferior”, e tomar-se como foco desta história a atribuição de culpa por este colapso. Assim, Thomas Hobbes, ou às vezes Nicolau Maquiavel, é tomado como culpado pelo início destas desobediências. Seus contemporâneos são louvados ou culpados essencialmente de acordo a terem reconhecido ou subvertido a mesma “verdade”. Leo Strauss, o principal proponente desta abordagem, “não hesita em afirmar”, ao confrontar-se com as obras políticas de Maquiavel, que elas merecem ser denunciadas como “imorais e irreligiosas”. Ele também não hesita em assumir que tal tom de denúncia é apropriado a seu objetivo proposto de buscar “compreender” as obras de Maquiavel. Aqui, o paradigma determina a direção de toda a investigação histórica. A história apenas pode ser reinterpretada se o paradigma for abandonado (SKINNER, 2002, p. 64).
Este ponto guarda um diálogo importante com o relato que fizemos do texto de Morgenthau, quando o autor afirma que os “padrões verdadeiros” (que Barbosa traduz como “normas verdadeiras”, veja Skinner, 2017), eternos ou pelo menos tradicionais (todo este léxico é facilmente encontrado no texto de Morgenthau) foram erodidos ao longo de duzentos anos pelos trabalhos de autores como Rousseau, Freud, Nietzsche e Kierkegaard.
Essa mitologia toma uma forma especial, contudo, quando faz determinados autores dialogarem com doutrinas que eles mesmos não discutiram (SKINNER, 2002, p. 64-65), de modo que parece atribuir os preconceitos do próprio historiador a nomes com maior autoridade intelectual, como os clássicos do passado: “a História se torna, pois, peças que pregamos nos mortos” (SKINNER, 2002, p. 65). Enfim, uma outra forma que esta mitologia tem é o fato de tomar-se, a priori, um determinado texto como sendo uma obra minuciosamente sistemática e bem-acabada de um autor, como se fosse sua contribuição mais sólida à disciplina a que são ligados. Aqui, novamente, nos deparamos com a pergunta colocada por Skinner: a de se “qualquer um destes autores de fato pretendeu, ou podia ter pretendido, fazer o que são castigados por não terem feito” (SKINNER, 2002, p. 67).
O segundo tipo de mitologia de que o autor trata é a mitologia da coerência. Nela, o historiador das ideias políticas pode se sentir tentado a dar uma coerência a textos de um mesmo autor/a que são inconsistentes entre si mesmos. Nesse sentido, “tal perigo se exacerba pela notória dificuldade de se preservar uma ênfase e tom adequados em uma obra quando a parafraseamos, e pela tentação consequente de encontrarmos uma ‘mensagem’ que pode ser abstraída e prontamente comunicada” (SKINNER, 2002, p. 67).
A prioridade dos paradigmas também é problemática mesmo com o estudo dos argumentos internos de algum trabalho específico, nos afirma Skinner: nesse sentido emerge a mitologia da prolepse, em que o estudioso parece “mais interessado na significância de um dado episódio do que em seu significado para o agente em determinado momento” (SKINNER, 2002, p. 73). Neste caso, não se deixa espaço para “a análise do que o autor [estudado] pode ter pretendido ou querer ter dito” (SKINNER, 2002, p. 72). Há aqui uma assimetria entre o episódio em si e o significado que um observador lhe atribui (SKINNER, 2002, p. 73):
o sinal mais seguro, de forma breve, de que estamos na presença da mitologia da prolepse é que a discussão estará aberta ao tipo mais rudimentar de crítica que pode ser feita contra formas teleológicas de explicação: o episódio deve esperar pelo futuro para conhecer seu significado (SKINNER, 2002, p. 74).
Ainda que uma análise se concentre, por outro lado, na descrição do conteúdo de um texto histórico, ela pode acabar incorrendo em problemas de compreensão daquilo que o texto quis dizer de fato, devido a problemas de descrição equivocada, que por sua vez se deve à compreensão incompleta dos processos históricos contemporâneos ao texto. Isso pode acontecer ainda que se tomem cuidados para que se evitem as mitologias previamente descritas. Esse problema fica ainda mais evidente em análises de culturas estrangeiras, em que os critérios de descrição e categorização do observador estarão mais aflorados: “o perigo à espreita é o de que o observador pode ‘ver’ algo aparentemente familiar enquanto estuda um argumento que não lhe seja familiar, e pode, em consequência, fornecer uma descrição equivocadamente reconhecível disso” (SKINNER, 2002, p. 74).
A este problema, Skinner atribui o termo de paroquialismo, que pode se manifestar de duas maneiras. A primeira forma de paroquialismo ocorre quando o observador equivocadamente remete um dado argumento a um argumento anterior, inferindo uma espécie de influência de trabalho(s) anterior(es) no texto por ele analisado. O problema aqui não está na força explicativa que a ideia de “influência” pode ter, mas sim no fato de que “é fácil usar tal conceito numa forma aparentemente explicativa sem que se considerem se as condições suficientes, ou pelo menos necessárias, para a sua aplicação foram encontradas” (SKINNER, 2002, p. 75). Nesse sentido, Skinner propõe uma série de testes (coerentes, mas absolutamente rígidos) para saber se podemos falar em “influência” de um autor sobre o outro:
Tal conjunto de condições deveriam incluir pelo menos as seguintes: (i) que é sabido que B estudou os trabalhos de A; (ii) que B não poderia ter encontrado doutrinas relevantes em nenhum outro autor senão em A; e, (iii) que B não poderia ter chegado às doutrinas relevantes independentemente (SKINNER, 2002, p. 75-76
Já a segunda forma de paroquialismo diz respeito ao fato de o observador valer-se de seu ponto de vista historicamente privilegiado, uma vez que tem conhecimento dos processos históricos, para inconscientemente fornecer o sentido de uma obra, de forma equivocada: “há sempre o perigo de que o historiador possa conceitualizar um argumento de tal forma que seus elementos estranhos se dissolvam numa familiaridade enganadora” (SKINNER, 2002, p. 76).
Os perigos sobre os quais Skinner refletiu ao longo do texto têm a ver com o momento em que os historiadores passam a dar menor importância a determinadas considerações gerais acerca da compreensão e do significado de afirmações (SKINNER, 2002, p. 77). A primeira consideração é a de que “a nenhum agente pode ser atribuído querer ter dito ou feito algo que eles jamais poderiam ser levados a aceitar como uma descrição correta daquilo que eles quiseram dizer ou fizeram” (SKINNER, 2002, p. 77). Um outro ponto que Skinner aborda é o fato de que o pensamento é uma atividade que exige esforço e, por isso, expõe uma série de dificuldades e problemas de modo que o pensar não se pode reduzir a tão-somente uma atividade com um propósito uniforme e padronizado (SKINNER, 2002, p. 79). Parece ser este ponto que é ignorado quando se embarca na mitologia da coerência, por exemplo.
O valor da compreensão das ideias políticas é a possibilidade de diálogo entre a análise filosófica e a evidência histórica (SKINNER, 2002, p. 87), e não a busca de “verdades perenes” nestes textos. Os textos estudados têm um contexto específico e são criados visando problemas particulares, de modo que apenas de forma ingênua eles podem ser descolados destes contextos e/ou transcendê-los (SKINNER, 2002, p. 88). Nas palavras de Skinner, empreendimentos como a busca de Morgenthau (1958) por “verdades perenes” da política não é senão uma “causa perdida”: “aprender com a história do pensamento que não há efetivamente conceitos perenes, senão apenas vários conceitos diferentes que surgiram de diferentes sociedades é aprender uma verdade geral não apenas sobre o passado, mas sobre nós mesmos” (SKINNER, 2002, p. 89).
Alguns pontos emergem do cruzamento entre as leituras do texto de Morgenthau e o de Skinner. Os que pretendo fazer giram ao redor da legitimação de posições em um debate, que é um dos aspectos que mais interessam Skinner, segundo Palonen (1997).
O primeiro deles é que o texto de Morgenthau, para além de uma obra que trate sobre política, pode ser considerado como uma obra que busca colocar seus argumentos na mesa e legitimar seu ponto de vista. Se isso é verdade, remeter à busca, na teoria política, de uma “verdade” encontrada na tradição e, mais ainda, uma “verdade científica”, é um argumento potente de uma visão que se pretende legitimar. Isso toma ainda mais relevância quando nos lembramos que Morgenthau, uma vez vivendo nos Estados Unidos, tem um papel de destaque nas teorias de Relações Internacionais no país, mas não dentro de sua própria instituição, a Universidade de Chicago (HASLAM, 2006). Logo, se a ciência política que é comprometida com seus padrões científicos é necessariamente uma empreitada impopular, como propõe o próprio Morgenthau, logo seu pouco prestígio poderia ser um indicativo de sua rigidez de caráter e seu compromisso inquebrável com sua empreitada científica – em suma, sua capacidade de desvelar as verdades que a sociedade insiste em esconder.
Como também vimos, o léxico de Morgenthau está imerso numa tradição interpretativa que tem em nomes como o de Leo Strauss a semelhança na busca por uma “verdade” política imersa nas tradições de pensamento. Por outro lado, seu apelo à cientificidade de sua posição intelectual pode ser lida como uma busca de legitimação numa academia que passava pela ânsia de quantificação e cientifização do conhecimento no ápice da revolução comportamentalista nos Estados Unidos (década de 1950). Este debate está presente não somente no campo das ciências sociais de maneira mais geral, como também no campo específico das teorias de Relações Internacionais – da qual, certamente, Morgenthau estava a par.
Estas colocações precisam ser melhor averiguadas para posterior transformação em hipóteses de pesquisa. Contudo, não há dúvida de que a crítica de Skinner a estes posicionamentos nos ajudam a lançar tais questionamentos, abrindo-nos uma agenda de pesquisa ampla sobre os usos (e abusos?) de conceitos da teoria política como método de legitimação de posições nos debates políticos (e acadêmicos) de determinados momentos históricos.
* Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências:
HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude: o pensamento realista nas relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MORGENTHAU, Hans J. Dilemmas of politics. Chicago: Chicago University Press, 1958.
PALONEN, Kari. Quentin Skinner’s rhetoric of conceptual change. History of the Human Sciences, vol. 10, n. 2, p. 61-80, 1997.
SKINNER, Quentin. Visions of politics: vol. 1: regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
SKINNER, Quentin. Significado e interpretação na História das Ideias. Tradução de Marcus Vinícius Barbosa.Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 358 ‐ 399, 2017.
[1] Bacharel em Relações Internacionais e mestre em Ciências sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp. Doutorando em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DCP/USP). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (NUPRI/USP).
[2] Embora originalmente de 1969, o texto a que faço referência neste trabalho é a edição de 2002, no capítulo 4 de Visions of Politics (SKINNER, 2002).
[3] É interessante notar que, para Morgenthau, a “verdade objetiva” imersa no estudo da política pode ser encontrada não nas ciências empíricas, como é comum na academia hoje, mas na busca da verdade pautada pela filosofia. Isso indica o que descreverei adiante, sobre o mental set do historiador: estamos sempre lendo o passado com a mente em nossas inquietações presentes. Devo essa observação à professora Eunice Ostrensky.
[4] Devo à professora Eunice Ostrensky esta observação.
[5] Apesar da importância de apresentar o excerto original, proponho uma tradução livre que pode ajudar a algumas leitoras: “pode se ‘descobrir’ que um autor tenha sustentado um posicionamento, devido à força de alguma possível similaridade de termos, sobre uma discussão que ele não poderia, a princípio, ter tido a intenção de contribuir”.
Fonte Imagética: University of Chicago Photographic Archive, apf7-00835, Hanna Holborn Gray Special Collections Research Center, University of Chicago Library. Descrição: Hans Morgenthau, professor de Política Internacional na Universidade de Chicago, e co-fundador do Comitê de Relações Internacionais. Fotografia de Steve Aoki. Disponível em: <http://photoarchive.lib.uchicago.edu/db.xqy?one=apf7-00835.xml>. Acesso em: 5 nov. 2022.