Wéllia Pimentel Santos1
28 de maio de 2024
Historicamente as mulheres sempre travaram uma longa luta para terem direitos civis e políticos. No final do século XIX e ao longo do século XX, as mulheres foram obtendo a cidadania em diferentes partes do mundo, mas pensava-se que, só porque podiam votar e ter direitos políticos, isso não implicaria que as mulheres ocupassem espaços de tomada de decisões. Foi por meio da luta dos movimentos feministas, da reivindicação do direito ao voto e do ingresso da mulher no mercado de trabalho que modificou aos poucos sua posição na sociedade.
Basicamente, quando falamos do direito das mulheres, estamos nos referindo às leis que garantem direitos fundamentais como o direito à vida, à igualdade e a liberdade, os direitos civis e políticos. Essas garantias surgiram a partir da necessidade de olhar para as mulheres como um grupo específico que por muito tempo foi discriminado. Trata-se de reconhecer que historicamente elas tiveram que lutar por melhores condições de vida e pela conquista da sua cidadania.
Há quase 100 anos, as mulheres brasileiras podem votar e serem votadas nas eleições. Mas até hoje a participação de mulheres na política institucional é uma luta. E considerando que sejam a maioria da população, elas ainda ocupam aproximadamente apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional, e, dentre os 27 estados brasileiros, somente dois são governados por mulheres em 20232. Em um ambiente predominantemente masculino, em pleno século XXI, as mulheres ainda sofrem os mais diversos tipos de violência política, tais como interrupção de fala, ameaças, assédio, etc.
Neste sentido, a violência política de gênero é um dos principais obstáculos para que mulheres cis e pessoas transexuais deixem de ser minoria nas posições de poder, sendo que à medida que estas conquistam mais espaço na política, essa violência se intensifica.
Conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, a violência política contra a mulher passou a ser tipificada como crime em meados de 2021, após ter sido sancionada a Lei nº. 14.192. “Desde então, somente o Ministério Público Federal (MPF) contabilizou, até novembro de 2022, 112 procedimentos relacionados ao tema”. A instituição ainda explica que “em 15 meses, a cada 30 dias, ocorreram sete casos envolvendo comportamentos para humilhar, constranger, ameaçar ou prejudicar uma candidata ou mandatária em razão de sua condição feminina” (CNJ, 2023). E, para muitas dessas mulheres, a violência política acaba minando a implementação de seus mandatos e de sua liberdade de expressão.
Considerando as muitas inquietudes que essa problemática apresenta, o estudo em foco se pautou em algumas perguntas iniciais para a análise: que tipo de violência é essa que estamos falando? Que mensagem é essa que se produz quando parlamentares mulheres são atacadas e respostas não são dadas?
Neste ínterim, tais perguntas são norteadoras para que pensemos na violência política como um problema central de violência contra a mulher, já que disseminam práticas que não acolhem as mulheres vítimas de violência, logo, a violência política deve ser vista da mesma maneira. Vale ainda notar que essa violência não atinge somente mulheres em cargos políticos ou candidatas, ela também acontece contra servidoras, jornalistas, defensoras de direitos humanos, ativistas e eleitoras, além de atingir indiretamente familiares e pessoas próximas dessas mulheres.
Fato é que o Brasil vem se tornando nos últimos anos um laboratório de violência política contra as mulheres, utilizada corriqueiramente como estratégia de marketing político ou eleitoral. Manhanelli (2011:26) destaca que o marketing político “está relacionado com a formação da imagem do político em longo prazo. A preocupação do marketing eleitoral, por sua vez, é com o curto prazo”. O autor complementa que para isso, “estratégia e tática são montadas de forma que, no momento da eleição, o candidato obtenha o maior número de votos possível e atinja seus objetivos. O fator crucial é o tempo”.
Os tipos de ataques que acompanhamos têm suas próprias características nesse novo momento em que nas redes sociais, as notícias falsas se tornam ferramentas para afastar e atacar a imagem e as políticas desenvolvidas por mulheres, mas isso acontece também dentro dos próprios parlamentos. Sobre esse fenômeno emergente das fake news inserido nas redes sociais e nos processos eleitorais, o acesso à informação passou a disseminar na política o ódio a grupos e minorias (CAMARGO, et al, 2020).
Dentre os diversos exemplos de violência midiática contra mulheres em cargos políticos é possível evidenciar que o Brasil teve por quase dois mandatos a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) na chefia do Poder Executivo(2011 a 31/08/2016). No entanto, entre 2015 e 2016, com o processo de construção do impeachment contra a ex-presidente, houve um aumento dramático da misoginia. Isso porque o impeachment se deu por razões políticas, por meio de um projeto de privatizações, e uma de suas formas de popularização ocorreu a partir de estereótipos de gênero, da institucionalização do ódio contra as mulheres. As alcunhas de violência partiam da imagem da Dilma desequilibrada, a Dilma que não transava, a Dilma que era mal amada, histérica, etc. (REVISTA AZMINA, 2021).
Exemplo notório dessa violência se refere às inúmeras declarações machistas feitas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), uma especificamente durante conversa com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada em Brasília em dezembro de 2020. Ao responder a um apoiador que afirmava não ter havido tortura no Brasil durante o regime autoritário, Bolsonaro não só concordou que as pessoas se vitimizam como voltou a minimizar a ditadura evocando a figura da ex-presidente Dilma Rousseff, e brincando com o fato da ex-presidente ter sido torturada pelo regime militar. Bolsonaro alegou duvidar da tortura sofrida pela parlamentar e disse aguardar até hoje o exame de raio-x de Dilma que comprovaria as lesões. Em depoimento ao conselho de direitos humanos de Minas Gerais onde aconteceu a violência, Dilma contou detalhes das sessões de tortura que incluíram socos, choques elétricos e até pau-de-arara.
Em resposta, a ex-presidente escreveu uma nota intitulada “índole de torturador”. Entre outros pontos, Dilma Rousseff4 afirmou que, a cada manifestação pública como esta, Bolsonaro se revela exatamente como é: o indivíduo que não sente qualquer empatia por seres humanos, a não ser aqueles que utiliza para seus propósitos, e que “é triste, mas o ocupante do Palácio do Planalto se comporta como um fascista, e revela com deboche e gargalhadas de escárnio a índole própria de um torturador, ao desrespeitar quem foi torturado, escolhe ser cúmplice da tortura e da morte”.
Outro exemplo de violência política de gênero se deu quando o ex-presidente Bolsonaro (PL) insultou novamente ex-presidente Dilma durante um discurso5 em cerimônia de lançamento do Programa Renda e Oportunidade, no Palácio do Planalto, em Brasília na data de 25 de março de 2022. O mandatário comentava dívidas deixadas por governos do Partido dos Trabalhadores (PT), como na Petrobrás e no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e então ironizou “a última governadora era de Minas Gerais, ou melhor, a última presidente, ou ‘presidanta’ era de Minas”, disse Bolsonaro fazendo uma menção jocosa à forma como Dilma gostava de ser tratada: “presidenta”.
No contexto internacional, temos exemplos como o do ex-presidente norte-americano Donald Trump6 que em 2017, enquanto potencial candidato presidencial, compartilhou o tweet de um fã que dizia “Se Hillary Clinton não pode satisfazer seu marido, o que a faz pensar que pode satisfazer a América?”
O parlamentar sempre fez questão de deixar clara sua aversão ao gênero feminino, e dentre as várias situações que sua misoginia se manifestou publicamente houve outra situação em que Trump avançou na disputa pela nomeação presidencial insultando Carly Fiorina, concorrente na corrida eleitoral republicana, alegando que a concorrente era feia demais para ser presidenta.
Outro homem que guarda semelhanças com o ex-presidente norte-americano é o político russo Vladimir Vladimirovitch Putin que há décadas é considerado uma das figuras mais influentes da política mundial devido a sua busca pelo poder, não só econômico e social, mas também territorial. Neste ínterim, após ter legalizado a violência de gênero na Rússia, Putin, numa saudação televisionada pelo Dia Internacional das Mulheres em 2017, reproduziu estereótipos clássicos do machismo ao ratificar que o espaço destinado historicamente as mulheres diz respeito ao âmbito privado, demonstrando assim o papel que o capitalismo reserva às mulheres:
Numa de suas afirmações, o presidente7 justifica abertamente que o trabalho doméstico e os cuidados da família recaiam sobre as mulheres, como uma espécie de “papel natural” do qual não podem, nem devem, escapar: “Ao cuidado de seus filhos e netos, de sua família, não tem dias livres. Inclusive hoje, em seu dia, estão ocupadas com seus assuntos e fazeres. Tem tempo para tudo, e muito frequentemente pensamos como fazem tudo. O mais importante é que as amamos e as valorizamos“. Finaliza o presidente em seu discurso que “as mulheres precisam do respaldo do homem. Faremos todo o possível para que nossas queridas mulheres sorriam mais”.
A incidência dessa violência política, que indica tanto uma realidade nacional quanto internacional, ocorreu de forma recorrente em relação à ex-deputada federal Manuela D´Ávila (PCdoB), que também foi candidata à vice-presidente na chapa de Fernando Haddad (PT) no ano de 2018. Manuela foi considerada uma parlamentar de muita visibilidade e constantemente vem sendo alvo de ataques incessantes, tais como xingamentos, ameaças, disseminação de fake news. A ex-parlamentar divulgou no mesmo ano uma captura de tela no qual tanto ela quanto a filha de 6 anos são alvo de xingamentos e ameaças de morte e estupro(REVISTA AZMINA, 2021).
Camargo et al ao observarem o potencial lesivo da fake news sobre os processos democráticos de eleição de representantes, reforçam que o poder da mídia digital “pode e deve ser exercido sob o manto da liberdade de expressão, mas pelo viés do exercício da consciência crítica, buscando a verdade da responsabilidade com o outro, com a coletividade e com um mundo mais justo e solidário” (CAMARGO et al., 2020:133).
Outro exemplo mais recente de violência política de gênero como estratégia de marketing eleitoral refere-se à performance do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) que utilizou a tribuna do plenário da Câmara dos Deputados para fazer um discurso de teor transfóbico, durante sessão no Dia Internacional das Mulheres (8/3/23). O deputado8, então, vestindo uma peruca loira, em parte do seu pronunciamento transfóbico, ironizou as mulheres trans e afirmou que, com o adereço, se “sentia mulher”. E completou seu discurso alegando que: “as mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres”.
Neste ponto, retomamos questões que estão relacionadas às reflexões propostas anteriormente: por que a discriminação e os estereótipos de gênero constituem formas de discriminação? A realidade evidente se deve ao fato de que na realidade brasileira existem muitos comportamentos machistas que foram normalizados e já nem questionamos se estão corretos, e por isso é importante fazer esse exercício de conscientização.
Segundo Gonçalves, ainda que a positivação sobre tal problemática tenha sido um grande avanço na realidade brasileira, “constatou-se não ser suficiente apenas enunciar os direitos das mulheres, pois isso não os garantia de fato”. Isso porque, conforme preconiza a autora “a mera previsão em estatutos normativos não implica no seu imediato reconhecimento, na prática. Há questões de ordem política, social e cultural que dificultam a sua concretização” (GONÇALVES, 2013:32).
É importante ressaltar que o ano de 2020 foi, talvez, um dos anos mais desafiadores dentro do período democrático. Considerando a pandemia, tivemos avanços ainda que tímidos, mas também significativos em relação ao aumento da participação de mulheres na política, e não apenas no Poder Executivo municipal, mas também em diversas casas legislativas pelo Brasil. Foram eleitas mulheres negras, muitas das vezes, as primeiras, de modo inédito, em seus municípios, mulheres transexuais, que por sua vez, também foram vítimas de uma série de ataques que traziam ameaças às suas vidas.
Há inúmeros outros exemplos recorrentes dessa dinâmica social complexa, que envolve nossa cultura machista e patriarcal, que ao contrário do que possa parecer, não são termos anacrônicos, relativos a épocas remotas ou superadas. Neste viés, obviamente essa forma de construir a mulher não perpassa somente pelo ambiente político, é possível ver essa retração também no nosso cotidiano machista, como a mulher que trabalha no ambiente empresarial bem como muitos outros espaços que sempre tentam desqualificar sua intelectualidade, seu potencial, fundando-se no mito da inferioridade da mulher no intuito de deslegitimá-la.
A autora Heleieth Saffioti (1987), observando a sociedade brasileira, percebe a ação desse tipo de discursos naturalista e biologicista direcionados às mulheres, retratando-as como seres emocionais e hormonais A autora argumenta que, na realidade, tais discursos não são algo natural, mas sim cultural, naturalizados socialmente de modo a deixar implícito o que se espera ou não dessa mulher. De acordo com a autora, por detrás desses estereótipos de gênero o que se percebe é o uso de uma estrutura de poder que não é aceitável. Práticas recorrentes como estas, que até pouco tempo eram mais dissimuladas e quase entendidas como arte no cenário político, eram assim invisibilizadas, o que leva a uma das principais barreiras para que as mulheres não apenas acessem quanto tenham grandes dificuldades para permanecer dentro da política.
Nesta seara, para compreender as nuances da violência contra as mulheres na sociedade brasileira, é fundamental atentar-se aos candidatos que utilizam de discursos de ódios, de divulgação de notícias falsas ou do que mais possa ser compreendido como uma ação nociva ao nosso espaço democrático, àquilo que afeta a participação dos grupos sociais em sua diversidade dentro do espaço político. Quando usamos a ‘lente’ da perspectiva de gênero estamos convencidos de que esse mundo tem que mudar, começamos a detectar e nos sentir afetados por falas estereotipadas, começamos a nos incomodar quando não há candidaturas iguais para homens e mulheres, e que isso implica que simplesmente estas não são reconhecidas nem por sua cidadania ou na mesma dimensão que os homens.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências:
CAMARGO, Amanda de Souza. et al. Democracia e política em tempos de fake news. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 36, n. 2: 127-136, jul./dez. 2020.
GONÇALVES, Tâmara Amoroso. Direitos humanos das mulheres e Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2013.
MANHANELLI, Carlos. Eleição é guerra – marketing para campanhas eleitorais. 3ª Ed. São Paulo: Summus, 1992.
REVISTA AZMINA; INTERNETLAB. MonitorA: relatório sobre violência política online em páginas e perfis de candidatas(os) nas eleições municipais de 2020. São Paulo, 2021.
SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. Coleção Polêmica. São Paulo: Moderna, 1987.
1 Mestre em Ensino em Saúde pela UFVJM e doutoranda em Ciência Política pela UFMG. Graduações concluídas em Serviço Social (DOCTUM/TO), Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (UFVJM) Letras-Inglês (UFVJM), Pedagogia (UNIFACVEST) e História (Estácio de Sá).
2 Brasil terá dois estados governados por mulheres em 2023. Nestas eleições, 38 mulheres concorreram ao cargo de governadora e 94 ao cargo de vice-governadora, mas só Rio Grande do Norte e Pernambuco serão comandados por candidatas vencedoras. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/brasil-tera-dois-estados-governados-por-mulheres-em-2023/. Acesso: 22 jun. 2023.
3 Violência política de gênero: Brasil registra sete casos a cada 30 dias. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/violencia-politica-de-genero-brasil-registra-sete-casos-a-cada-30-dias/. Acesso: 22 jun. 2023.
4 Índole do torturador. Disponível em: https://dilma.com.br/indole-de-torturador/. Acesso: 22 jun. 2023.
5 Discurso do presidente da República Jair Bolsonaro sobre programa Renda e Oportunidades. Disponível em: www.biblioteca.presidencia.gov.br. Acesso: 22 jun. 2023.
6 Político. Disponível em: https://twitter.com/politico/status/636463107838222336. Acesso: 22 jun. 2023.
7 Saudação machista de Putin no #8M: “As mulheres precisam dos homens”. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=13620. Acesso: 21 jun. 2023.
8 Importa salientar que o deputado federal foi condenado em (04/23) pela Justiça de Minas Gerais a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 80.000 por prática de transfobia contra a parlamentar transgênero Duda Salabert (PDT-MG). Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/nikolas-ferreira-e-condenado-por-transfobia-contra-duda-salabert. Acesso: 25 abr. 2023.
Referência imagética: Congresso Nacional iluminado de laranja em alusão à cor da campanha de 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres (Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados), Notícias CNJ. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/violencia-politica-de-genero-brasil-registra-sete-casos-a-cada-30-dias/>. Acesso em 15 mar 2024.