Karen Fernandez[1]
É com frequência que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) exalta sua admiração e seu amor pelos Estados Unidos, bem como o lugar privilegiado que o país terá, ao longo de seu governo, nas relações com o Brasil[2]. As repetidas frases de exaltação da grande potência, o pressuposto de que ela constitui um modelo a ser seguido e a perspectiva de aprofundamento, sem qualquer ponderação, das relações entre Brasil e Estados Unidos no contexto dos recentes cortes anunciados pelo governo brasileiro, nas áreas de Educação e de Ciência, Tecnologia e Inovação[3], impõem a necessidade de se refletir sobre como os Estados Unidos financiam suas atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), bem como sobre o lugar da ciência e da inovação no seu desenvolvimento. Os mais apressados talvez digam que nos Estados Unidos quem financia P&D é o setor privado, o que em parte é verdade, e provavelmente emendariam a crítica ao modelo brasileiro especialmente pela sua dependência de recursos públicos.
Segundo a National Science Foundation, cujos dados mais recentes datam de 2015, os Estados Unidos destinam em média 2,8% do Produto Interno Bruto (PIB) para P&D, algo em torno de US$ 495,1 bilhões[4]. Deste total, 71,9% dos recursos para P&D nos Estados Unidos vêm da indústria, 13,1% das universidades, 11% do governo federal e 4% de organizações sem fins lucrativos[5].
É importante notar que, embora a maior parte dos investimentos em P&D seja proveniente do setor privado, são as universidades, com recursos públicos[6], e os laboratórios federais que realizam Pesquisa Básica, cujos resultados não são imediatos, são aqueles com maior potencial inovador[7]. Ainda de acordo com a National Science Foundation, em 2015, foram aplicados US$ 83,4 bilhões em Pesquisa Básica, dos quais 49,1% vieram das universidades, 26,1% do setor privado, 12% do Governo Federal, 12,6% de organizações sem fins lucrativos[8].
A lógica se inverte quando se trata de Pesquisa Aplicada e Desenvolvimento. Do total de US$ 97,1 bilhões destinados para Pesquisa Aplicada, 58,1% dos recursos originaram-se no setor privado, 18% nas universidades, 17% no Governo Federal, e 6,3% nas organizações sem fins lucrativos. Em relação a Desenvolvimento, foram investidos US$ 314, 5 bilhões, dos quais 88,2% provenientes do setor privado, 8,8% do Governo Federal, 2% das universidades e 1% de organizações sem fins lucrativos[9].
O contraste com o cenário brasileiro é notável tanto do ponto de vista dos recursos empregados, como do ambiente institucional necessário ao processo de inovação. Nos Estados Unidos, as atividades de P&D estão atreladas a uma ampla política, que envolve significativa coordenação e intervenção pública. O governo estabelece os setores prioritários, concede recursos e subsídios, usa seu poder de compra e coordena as ações dos atores envolvidos nesse processo, como investidores, empreendedores, indústria, universidades, laboratórios federais, instituições de pesquisa, entre outros.
A partir da literatura sobre Sistemas Nacionais de Inovação, Charles Edquist (2005) mostra que fatores econômicos, sociais, políticos, organizacionais e institucionais influenciam no desenvolvimento, difusão e uso das inovações. Segundo Jan Fagerberg (2005), na maior parte dos casos, as ações inovadoras das empresas dependem significativamente de fontes externas e estão inseridas em uma ampla estrutura que envolve processos políticos, infraestrutura de pesquisa pública (universidades, institutos de pesquisa, apoio de fontes públicas), instituições financeiras, capacitação e habilidades dos recursos humanos, entre outros. Tal ambiente é relevante seja para inovação incremental, seja para radical; e quanto mais radical a inovação for, maior a possibilidade de seu sucesso depender de mudanças sociais e organizacionais e de grandes investimentos em infraestrutura. Portanto, o ambiente nacional é fundamental.
Se do ponto de vista do ambiente institucional, a realidade brasileira é permeada por obstáculos que envolvem dificuldades de coordenação e de indução da conduta dos atores por parte do governo federal, além da própria desconexão dos planos de Ciência, Tecnologia e Inovação do conjunto das ações econômicas e a consequente fragilidade das políticas nesta área, no que diz respeito ao montante despendido o cenário também não é animador. Em 2015, o Brasil investiu 1,3% do PIB (R$ 80,5 bilhões) em P&D, dos quais 52,2% foram recursos públicos e 47,8% privados[10]. Para se ter a dimensão dos efeitos dos recentes cortes de 31,4%[11] no orçamento geral do Ministério da Educação, de 30% nos recursos da pasta destinados às universidades e de 41,9% no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI), 60% dos dispêndios do governo federal em P&D são destinados ao Ministério da Educação (MEC) e 16,5% ao MCTI[12]. Portanto, estes dois ministérios concentram mais de 75% dos recursos do governo federal direcionados para P&D[13]. A dimensão dos cortes nessas duas pastas afetará gravemente as possibilidades de se fazer pesquisa científica no Brasil. As universidades são outro ator chave[14]. Além do desenvolvimento das pesquisas propriamente ditas, são as instituições de ensino superior que provêm infraestrutura de pesquisa, formam recursos humanos e constituem verdadeiros “repositórios” de pessoal qualificado. É claro que as universidades não são as únicas responsáveis, nem são sozinhas capazes de fazer decolar o desenvolvimento científico e tecnológico do país; mas, no caso brasileiro, o seu sucateamento afasta qualquer possibilidade de avanço. Também diferentemente dos Estados Unidos, não contamos com uma rede ampla de laboratórios federais[15] realizando pesquisas.
Os próprios cortes são sinais do lugar pouco privilegiado que a Ciência, Tecnologia e Inovação ocupam na estrutura governamental brasileira. E aqui vale destacar novamente a experiência estadunidense. No contexto da crise de 2008, o governo federal ampliou os recursos para P&D compensando a redução dos investimentos privados em razão da depressão econômica. Ainda que se tratasse de um governo democrata, que implementou políticas anticíclicas para debelar a crise, o reconhecimento da importância da inovação, do desenvolvimento científico e tecnológico e, por conseguinte, dos investimentos públicos em pesquisa não está sujeito a controvérsias que impliquem corte abrangente e abrupto de recursos. Desde o final da década de 1980, os recursos se mantêm relativamente constantes[16].
Donald Trump pouco tratou da questão da inovação e do desenvolvimento científico e tecnológico durante sua campanha e chegou a fazer críticas aos investimentos nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH)[17]. Em sua primeira proposta orçamentária propôs cortes de 5% em P&D, mas foi derrotado no congresso[18]. Além disso, um memorando enviado do Escritório Executivo da Presidência para os chefes dos departamentos e agências executivas tendo em vista o orçamento para P&D no ano fiscal de 2019 afirmava que a liderança dos Estados Unidos nessa seara é fundamental para a realização de prioridades nacionais, como segurança nacional, crescimento econômico e criação de empregos. Nele foram apresentadas às agências as prioridades do governo, sem mudanças significativas nas áreas definidas como prioritárias, apesar da maior ênfase em defesa e segurança[19]. O fato é que os desembolsos para P&D oscilaram de US$115,6 em 2017 para US$ 114,3 em 2018. E a estimativa é de que aumente para US$ 129,8 bilhões em 2019 e US$ 134,6 em 2020[20].
A tentativa de aproximação da realidade estadunidense do contexto brasileiro não sugere que tenhamos que seguir o modelo dos Estados Unidos, até porque a literatura sobre sistemas de inovação nos mostra que não é possível definir um sistema de inovação ideal a ser copiado. Para além do modelo a ser implementado no Brasil, não há dúvida de que o desenvolvimento científico e tecnológico e a proeminência econômica de um país exigem altos níveis de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e formação de recursos humanos. No Brasil, ainda é a universidade o ator fundamental neste processo.
[1] Professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisadora do INCT-INEU.
[2] APÓS Bolsonaro abrir mão de benefício na OMC, Trump apoia entrada do Brasil na OCDE. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/apos-elogios-e-concessoes-de-bolsonaro-trump-apoia-entrada-do-brasil-na-ocde.shtml Acesso em: 16 maio 2019.
BOLSONARO: ‘Não teremos só laços de amizade com os EUA, mas negociações’ Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-nao-teremos-so-lacos-de-amizade-com-os-eua-mas-negociacoes/ Acesso em: 16 maio 2019
‘ESTAMOS sendo muito bem recebidos aqui’, diz Bolsonaro em Dallas. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/estamos-sendo-muito-bem-recebidos-aqui-diz-bolsonaro-em-dallas,8ad79e81a13e8e82d05128fe4636ce47nb8hpjb9.html Acesso em: 16 maio 2019
[3] Os cortes atingiram 30% das verbas de custeio das Universidades e 41,9% dos recursos do Ministério das Ciências e Tecnologias (MCTIC). Disponível em: OS PRIMEIROS efeitos da asfixia financeira de Bolsonaro sobre as ciências do Brasil. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/politica/1556819618_348570.html
[4] Disponível em: https://www.nsf.gov/statistics/2017/nsf17311/pdf/tab1.pdf Acesso em 17 maio 2019
[5] Disponível em: https://www.nsf.gov/statistics/2018/nsb20181/assets/1038/tables/tt04-03.pdf Acesso em 17 maio 2019.
[6] Nos Estados Unidos, a participação do setor privado nas pesquisas realizadas na Universidade varia entre 5% e 7% das pesquisas realizadas. OS IMPACTOS do investimento. Revista Pesquisa Fapesp. Edição 246, agosto 2016. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/2016/08/18/os-impactos-do-investimento/ Acesso em 20 maio 2019.
[7] De acordo com Freeman e Soete, a P&D formal é decisiva em sua contribuição para inovações radicais. Já as inovações incrementais se desenvolvem na fábrica e eram promovidas por engenheiros de produção, por técnicos e pelo chão de fábrica. FREEMAN, Chris; SOETE, Luc. A economia da inovação industrial. Tradutores André Luiz Sica de Campos e Janaína Oliveira Pamplona da Costa. Campinas, Editora da Unicamp, 2008, p. 515.
[8] Disponível em: https://www.nsf.gov/statistics/2018/nsb20181/assets/1038/tables/tt04-03.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[9] Disponível em: https://www.nsf.gov/statistics/2018/nsb20181/assets/1038/tables/tt04-03.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[10] MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, 2018. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores_CTI_2018.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[11] BLOQUEIO na educação é o maior desde 2016. O Globo, 15 maio 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/bloqueio-na-educacao-o-maior-desde-2016-23668620 Acesso em 24 maio 2019.
[12] MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, 2018, p. 36. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores_CTI_2018.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[13] Apenas como curiosidade, depois do MEC e do MCTI, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é o órgão que mais recebe recursos do governo federal para P&D. A ele são destinados 12%. É seguido pelo Ministério da Saúde com 8,9%, pelo Ministério da Defesa com 1,3%, pelo Ministério das Comunicações (0,9%) e pelo Ministério do Meio Ambiente (0,2%). Os dados são de 2016. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, 2018, p.36. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores_CTI_2018.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[14] Em 2015, as Universidades, com cursos de pós-graduação stricto sensu, receberam R$ 22,3 bilhões. Este é um indicador aproximado, utilizados pelo MCTI, para calcular os dispêndios de P&D das instituições de ensino superior MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, 2018, p. 49. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores_CTI_2018.pdf Acesso em 20 maio 2019.
[15] Os principais laboratórios federais estão vinculados ao Instituto Nacional de Saúde – NIH, à Fundação Nacional de Ciência – NSF, ao Departamento de Defesa, ao Departamento de Administração do Espaço e da Aeronáutica – NASA, ao Departamento de Energia e ao Departamento de Agricultura.
[16] Disponível em: https://www.nsf.gov/statistics/seind14/index.cfm/chapter-5/c5h.htm#s1 Acesso em 23 maio 2019.
[17] PRESIDENT-ELECT Trump’s Positions on Technology and Innovation Policy information technology & innovation foundation, novembro, 2016 Disponível em: http://www2.itif.org/2016-trump-on-tech.pdf?_ga=2.129908811.614860365.1508266664-1012761265.1508266664 Acesso em 23 maio 2018.
[18] EQUILÍBRIO no Parlamento. Revista Pesquisa Fapesp. Edição 261, nov.2017. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/11/24/equilibrio-no-parlamento/ Acesso em 23 maio 2018.
[19] Memorandum for the heads of executive departments and agencies M1730, August 17, 2017. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/sites/whitehouse.gov/files/ostp/fy2019-administration-research-development-budget-priorities.pdf
[20] Disponível em https://www.whitehouse.gov/omb/historical-tables/ Acesso em 23 maio 2019.
Referências bibliográficas:
EDQUIST, Charles. Systems of innovation: perspectives and challenges. FAGERBERG, Jan; MOWERY, David; NELSON, Richard. The Oxford Handbook of Innovation. New York: Oxford University Press, 2005; p. 184-185.
FAGERBERG, Jan. Innovation: a guide to the literatura. FAGERBERG, Jan; MOWERY, David; NELSON, Richard. The Oxford Handbook of Innovation. New York: Oxford University Press, 2005.
Referência imagética:
Tatiana Rappaport. (http://www.observatoriodoclima.eco.br/600-cidades-marcham-pela-ciencia/ Acesso em 26 de maio de 2019)