Andrei Koerner[1]
Um escândalo total! Um absurdo! Abuso, arbitrariedade, violência! Como qualificar de outra maneira as primeiras revelações do site The Intercept Brasil das mensagens entre o então juiz Moro e os procuradores responsáveis pela Operação Lava-Jato? Quais as suas implicações? O teor das mensagens não representa propriamente uma novidade para quem conhece o “mundo” do direito e do Judiciário ou tem informações isentas sobre a campanha de moralização da política nos últimos anos.
O conteúdo das mensagens é muito grave e sua publicação deve ter desdobramentos jurídicos e políticos relevantes. Do ponto de vista rigoroso de um Estado democrático de direito, as consequências jurídicas, numa indicação não exaustiva, compreenderiam: a saída imediata de Sérgio Moro do Ministério da Justiça segundo o princípio da moralidade e a abertura de investigação criminal e administrativa contra o magistrado parcial; a quebra de seu sigilo, dentre outras medidas, para examinar a extensão de sua colaboração indevida com os procuradores, policiais, desembargadores e outras autoridades, sem excluir a apuração de vínculos ilícitos com outros envolvidos. O mesmo deve acontecer com os procuradores, que devem ser imediatamente afastados de suas funções e investigados. Não se exclui a aplicação das leis sobre o crime organizado, cogitando-se os procedimentos da delação premiada compatíveis com o Estado democrático de direito. Outras consequências devem ser a anulação de todos os atos praticados pelo juiz parcial e pelo grupo de procuradores, a imediata liberdade de todos os detidos, acusados, processados ou condenados por ele, assim como a suspensão das demais medidas preventivas que sofreram, além da restituição dos bens confiscados e as indenizações cabíveis. Outras ações imediatas devem ser a investigação da manipulação exercida pelo grupo, em virtude de suas motivações facciosas, sobre o processo eleitoral de 2018 e ações para corrigir os efeitos das ilegalidades cometidas, sem excluir a possibilidade de anulação do pleito e a convocação de novas eleições presidenciais.
Desde as revelações, as reações do atual presidente da República e de outros líderes políticos, dos generais no governo, de integrantes da cúpula do Congresso, do Judiciário e do Ministério Público Federal (MPF), da mídia e das redes sociais revelam uma operação conjunta para evitar quaisquer consequências remotamente similares às cogitadas acima. Eles poderão ser bem-sucedidos no imediato, o que permitirá a continuidade da Operação Lava-Jato. As autoridades judiciais não serão responsabilizadas pelos ilícitos que cometeram. As sentenças judiciais e todos os outros atos serão mantidos. Manter-se-á a justificativa de que “o saldo da operação é bom para o país” e se pretenderá continuar a luta contra a corrupção, apesar de ser feita por atores suspeitos e com meios ilegais.
Mas a Operação Lava-Jato está moralmente desacreditada porque todos sabemos que ela cometeu graves injustiças. Ela deve ser extinta porque, se continuar sem que se tirem as consequências jurídicas dos ilícitos que foram revelados, a consequência será o aprofundamento da crise da democracia e do Estado democrático de direito. As esperanças de redenção pelo combate à corrupção, alimentadas de forma massiva nos últimos anos, tornar-se-ão, elas mesmas, objeto de descrédito e desalento. Será confirmado o dito popular que desqualifica a luta contra a corrupção no Brasil por ser…. corrupta.
Poderíamos invocar a história para trazer exemplos de políticos e intelectuais desiludidos, de manifestações de humor cáustico e sarcasmos na opinião pública, de insatisfações e rebeliões populares. Poderíamos lembrar passagens como a de Rui Barbosa, que se confessava quase envergonhado de agir honestamente em meio à violência e corrupção política, ou de João Mangabeira que acusava o Supremo Tribunal Federal (STF) de ter sido o poder que mais falhou na República, porque jamais houve uma maioria de ministros com o brio necessário para afastar conveniências, afrontar perigos e fazer valer o direito.
A história constitucional pode nos ajudar a refletir sobre três pontos, tornados polêmicos nos últimos tempos. O primeiro é a intervenção ativa do STF nas regras e procedimentos partidários e eleitorais, com os quais afastou-se da posição de árbitro e investiu na “reforma dos costumes políticos”, quebrando a posição do Judiciário no pacto político resultante da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932. O segundo é a relativização, pelo STF, das garantias da oposição política e da contestação social, atingidas por medidas seletivas de prevenção contra movimentos e protestos, pela execução antecipada de sentenças condenatórias de oposicionistas sem trânsito em julgado e por ações seletivas voltadas a impedi-los do livre acesso à opinião pública e às eleições. Enfim, a inação do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) face a ações que bloqueiam, impedem ou de qualquer forma dificultaram a atuação dos oposicionistas. Eles tornam desiguais as condições da competição eleitoral e fazem com que, de forma injustificada e seletiva, as ações de contestação social sejam mais arriscadas e custosas.
A história constitucional do Brasil, desde a situação de guerra civil endêmica na Primeira República, nos mostra que as elites políticas adotaram um pacto no pós-1930 segundo o qual o Judiciário independente e imparcial foi instituído para assegurar os direitos cívicos e políticos da oposição e da contestação social, a justiça eleitoral foi criada para organizar as eleições de modo a assegurar as condições de competição livre e com resultados respeitados, e, enfim, a cúpula do Judiciário federal – o STF, o TSE e o Tribunal Federal de Recursos – recebeu atribuições para ser a garantidora daqueles direitos contra desvios praticados pelos próprios juízes e tribunais inferiores. Esses pontos não são efeitos casuais, pois resultam de propostas conscientes e negociadas nas assembleias constituintes de 1933-4 e 1946, expressamente defendidas por juristas e líderes políticos.
Basta lembrar o argumento de Miguel de Seabra Fagundes, juiz aposentado próximo à União Democrática Nacional (UDN), contra a proposta de limitação da jurisdição ordinária do STF para enfrentar a crise do Tribunal decorrente do número excessivo de processos. Em conferência proferida em setembro de 1952, ele afirmava:
Certo os recursos ordinários em habeas corpus e mandado de segurança, nesses sobretudo, representam, nas tarefas pessoais dos ministros e do plenário do tribunal, um dos fatores mais absorventes, porém é preciso atentar em que, na devolução do conhecimento do mais alto tribunal do país dos pedidos denegados de proteção à liberdade e a direitos outros líquidos e certos, afetados pelos agentes do Estado, está um fator fundamental da eficiência do sistema de proteção dos direitos e públicos subjetivos do indivíduo. As condições do meio brasileiro aconselham reservar à instância federal, cujas condições teóricas de isenção e superioridade no julgar contra o Estado, impõem maior confiança nos jurisdicionados, a tarefa de dar a última palavra sobre direitos, cuja excelência levou a Constituição a ampará-los com duas vias processuais expeditas e sumaríssimas…
Tocar na jurisdição do Supremo nesse ponto seria desprestigiar, na confiança pública, não nos cabe dizer se com razão ou sem ela, esses dois remédios especiais, o segundo, sobretudo, destinado a desempenhar papel da maior importância na formação de uma consciência jurídica nos administradores, neste país em que a ordem constitucional e legal ainda se afigura a muitos como um artifício incômodo.[2]
A passagem revela o intento de manter a garantia dos direitos civis por meio de habeas corpus e mandado de segurança, apesar de o volume desses processos agravar a crise do STF. Isso porque aqueles direitos poderiam não ser respeitados pelos governos e administração dos estados e não seriam suficientemente protegidos pela justiça estadual (acrescentaríamos hoje nem pelos juízes federais de instâncias inferiores). O compromisso foi rompido em 1961-4 mas foi retomado em 1988, quando foi mantido o papel do STF de garantir que governantes, administradores e juízes respeitem o Estado de direito e velar para que os juízes sejam fiéis às atribuições que receberam das forças políticas para assegurar a resolução pacífica dos antagonismos políticos. Eles devem atuar como ”guardiões” do Estado de direito para assegurar as condições de competição política, manter o respeito às suas regras e proteger os direitos dos opositores políticos e contestadores sociais.
Essa é a maneira pela qual se solveu historicamente no Brasil o chamado paradoxo entre constitucionalismo e democracia, ou seja, a delegação a um terceiro não eleito de poderes necessários a fim de que sejam mantidas as condições para que a regra da maioria seja capaz de operar. Isso ajuda lembrar aos juristas de que nem o Judiciário nem as outras instituições judiciais emanam da nação; eles não precedem a política, não foram instituídos como guardiões ou promotores de valores transcendentes e só devem exercer seus poderes contra-majoritários em determinadas situações e condições. Ao exercer esse papel, o Judiciário pode ser autocontido ou ativista, deferente ou não em relação à maioria conforme cada caso se apresente do ponto de vista da realização da Constituição. Em outros termos, o Judiciário deve preservar o seu imperativo institucional de consistência e exercer os seus poderes de modo a garantir a realização da democracia e do estado de direito tal qual foram postos pelo poder constituinte.
A nossa história política nos oferece nulos ou raros precedentes de rigorosa responsabilização de autoridades políticas ou judiciárias que violaram os princípios elementares do Estado de direito. Mas ela também nos revela a necessidade de esses princípios pautarem a ação de lideranças, partidos e atores coletivos, de serem respeitados pelos governantes e assegurados pelas autoridades judiciárias, pois essa é condição para que os conflitos possam ser expressados como relações agônicas numa democracia. Aqueles princípios foram conscientemente pactuados depois de uma revolução política e uma guerra civil, e mais tarde reafirmados pelos que lutaram contra duas ditaturas. A grave violação dos direitos civis, cívicos e políticos de líderes partidários realizada pelos operadores da Lava-Jato faz parte de uma consciente ruptura do pacto. Cabe restaurá-lo, para que seja possível começar a reconstruir os seus princípios.
[1] Professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor-presidente do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC)
[2] Fagundes, Miguel Seabra. “A Organização do Funcionamento do Poder Judiciário”, em vvaa. Estudos sobre a Constituição Brasileira. RJ: Fundação Getúlio Vargas/Instituto de Direito Público e Ciência Política, 1954, pp. 149-58, a citação é da página 155.
Referência imagética:
Ilustração de Toni D’Agostinho, a quem a equipe editorial do blog Boletim Lua Nova agradece. Para conhecer mais seu trabalho, vejam: https://www.instagram.com/tonidagostinho/?hl=pt