Ronaldo Tadeu de Souza[1]
“German emigration after 1933 and the development of political theory in the United States – does this comprise a single topic? Indeed, it does! “
Peter Graf Kielmansegg
Já se disse que a filosofia nasceu no mundo grego antigo, particularmente em Atenas. No belo ensaio que escreveu acerca das origens do pensamento humano na Grécia, Jean-Pierre Vernant argumenta: foi na fresta aberta pela queda da realeza micênica e a irrupção da polis entre os séculos VIII e VI (A.C.) que ocorreu o nascimento de uma modalidade peculiar de compreender a nossa existência. Quando as pessoas não mais se voltaram para o palácio onde se encontravam a realeza, os seus escribas burocráticos e a aristocracia guerreira para intermediar os modos de ação e de entendimento sobre a vida, teve início um dos maiores acontecimentos da civilização ocidental (Vernant, 2008). Era no espaço público, agora, que as questões e respostas deveriam ser lançadas para a discussão racional sobre o que fazer diante de certas circunstâncias existenciais. Com efeito, com o “advento da polis, nasc[eu] a filosofia” (idem, p. 141). Duas outras áreas das humanidades, que se pode afirmar derivaram da filosofia, tiveram um local geográfico bem definido de nascimento: a economia despontou na Inglaterra nos textos de Adam Smith (e há quem diga nos de Thomas Hobbes e John Locke) e a sociologia apareceu na França nos textos que compunham os Cursos de filosofia social positivista de Augusto Comte e veio a se consolidar com a obra de Èmile Durkheim e a criação, por ele e seus seguidores, dos primeiros cursos universitários de sociologia. (A sociologia teve um segundo nascimento na Alemanha com Georg Simmel e Max Weber.)
Na aurora do século XX, desta vez não no continente europeu, outra disciplina das humanidades teve a sua certidão de nascimento localizada num espaço geográfico delimitado – com certa precisão. A ciência política e seu subcampo (ou área específica de investigação), a teoria política, ganharam vida nos Estados Unidos ente os anos de 1900 a 1950. Entretanto, há uma peculiaridade na conformação dessa disciplina eminentemente norte-americana ou estadunidense, se se preferir. Se na filosofia, na economia e na sociologia as disputas sobre a definição, núcleo epistemológico e objeto de estudo não ultrapassaram as fronteiras de onde haviam originado tais modos de pensamento, na ciência política ocorreu algo diferente. É que o subcampo de teoria política – notemos que a ciência política é estruturada por três áreas de pesquisa e conhecimento, a saber, o estudo das instituições políticas, tendo no predomínio dos métodos, técnicas de compreensão empírico-positivista e a estatística seus ethos fundamentais; as relações internacionais, imprescindíveis em um país que se tornaria a maior potência político-estatal-econômico-cultural da era moderna; e a própria teoria política – foi trazida ao solo americano pela filosofia continental. Precisamente, a teoria política chega aos Estados Unidos pelas mãos e mentes dos emigrados alemães, vindos de uma Europa esfacelada e traumatizada por duas Guerras Mundiais, pela experiência dos fascismos italiano e alemão e do estalinismo. Vejamos um pouco mais de perto e, brevemente, essa particularidade da teoria política como área constitutiva da disciplina de ciência política.
Os locais da certidão de nascimento
Quais foram os aspectos históricos, por um lado, e quais os padrões substantivos- estilísticos-institucionais que caracterizaram e marcaram a teoria política, por outro? Para responder às duas indagações voltemos 1) ao contexto da Alemanha das primeiras décadas do século XX, 2) às interpretações de John Gunnell, historiador da ciência política norte-americana e 3) brevemente ao contexto das Lectures Walgreen da Universidade de Chicago nos anos 1950.
(Alemanha). Assim, antes de chegarem aos Estados Unidos nos anos 1940, os emigrados forjaram sua cultura filosófica e teórica no mundo germânico (Alemanha e Áustria) das primeiras décadas do século XX. Ali, Leo Strauss, Eric Voegelin e Hannah Arendt foram impactados pelo renascimento da filosofia prática aristotélica (Berti, 1997). Buscar uma “estreita união entre a filosofia e a prática” (idem, p. 230), entre a especulação conceitual e a ação política, foi uma perspectiva comum a Strauss, Voegelin e Arendt ao se voltarem para a filosofia política de Aristóteles. Com o intuito de repensar os problemas mais significativos da era moderna (o Estado, a técnica, a razão, a democracia de massas, os partidos políticos, as ciências sociais positivas e revolução) os três teóricos viram no “retorno” (idem, p. 231) à Grécia antiga a possibilidade de tanto criar modalidades compreensivas e interpretativas para criticar seu tempo como para construir os alicerces de “uma nova filosofia [ou teoria] política” (ibidem). De modo que, a retomada da “noção grega de polis, […] ao tipo de práxis política a ela vinculada” (ibidem) e as observações críticas (sobretudo as platônicas) foram decisivas para tais autores refletirem acerca da existência humana em circunstâncias de crise, e com isso conformarem o que nós conhecemos hoje como teoria política.
Mas se estas circunstâncias estiveram em volta dos emigrados alemães, havia uma outra e, talvez, mais plena de sentidos, na maneira ao qual Strauss, Voegelin e Arendt (re)fundaram a teoria política. Neste contexto específico, a filosofia prática não chegou como uma flecha vinda da Política e da Ética a Nicômaco de Aristóteles diretamente para Direito natural e história, A nova ciência da política e A condição humana. O arco que lançou aquela, uma das razões aristotélicas, a razão prática (Berti, 1997), nos três teóricos, havia sido o de Martin Heidegger. Foi o autor de Ser e tempo que nos seus cursos (frequentados com entusiasmo por jovens judeus-alemães) nas universidades de Freiburg e Marburg quem disseminou com erudição e eloquência impactante a importância, no interior do corpus filosófico de Aristóteles, dos textos da Política e, principalmente, da Ética a Nicômaco. Heidegger não concordava com a tradição ocidental de privilegiar a substância metafísica (Wolin, 2015) na obra do estagerita, algo que enfatizado pela cultura religiosa do medievo tardio; isso significava, de certa maneira, cindir o pensamento de Aristóteles – o Aristóteles da Metafísica e da Física e o Aristóteles da Política e da Ética a Nicômaco.
Com efeito, interpretando a ponderação aristotélica sobre subordinar a filosofia prática à “esfera da filosofia primeira” (Wolin, 2015, p. XXIX) Heidegger desenvolveu a noção de que a própria práxis possuía significado autêntico em si (Thanassas, 2012; Volpi, 1992); e nesse aspecto, na medida em que a prática tem seus modos de ser em si independente das metafísicas universais, o passo para estruturar uma filosofia do ser-no-mundo (a gênese da concepção de existência qua existência) com modulações teóricas e conceituais estavam dados. Strauss e Arendt, ao assistiram às “aulas e seminários sobre o tema da ‘interpretação fenomenológica de Aristóteles’” dados pelo mestre de Heidegger, eVoegelin, que circulava por estes ambientes e já problematizava a razão e a ciência moderna (Wolin, 2015) metafisicamente orientadas, receberam as lições do mestre de Messkirch e Todtnauberg – e acrescentaram nelas preocupações com a política. Nos Estados Unidos os Heidegger’s children [“os filhos de Heidegger”] transfiguraram o que aprenderam em Freiburg e Marburg em teoria política.
(John Gunnell). A característica do fazer teoria política inaugurado por Leo Strauss, Eric Voegelin e Hannah Arendt, apresenta modulações epistemológicas distintivas que marcariam fortemente esta área de estudo e pesquisa. Ora, era natural que sendo exposta pra o público americano como modalidade de reflexão sobre as instituições políticas e a sociedade moderna (em crise para eles) e tendo sido impulsionada pelo arco heideggeriano da filosofia prática, a teoria política sedimentada e/ou consolidada na América tivesse traços fortes e eminentemente peculiares. Alguns modos da atividade (e investigação) da teoria política representam um tipo de estilização de temas antes vistos como padrões e convencionais; dentre eles, a leitura da tradição do pensamento político ocidental de Platão a Marx e Nietzsche – vistos e analisados agora por técnicas hermenêuticas de leitura de textos. Além disso, a leitura que estabeleceram se diferenciava da que era feita até então por articular na mesma estrutura de significados e entendimentos: especulação copiosamente excêntrica com a sedimentação da ideia que há uma tradição do pensamento e/ou filosofia política ocidental que à qual seria preciso voltar sistematicamente para entender os problemas de então (os problemas de guerras, crises e revoluções no dizer de Arendt). Isto é o que John Gunnell nomeou de “mito da tradição” (1978) criado por Strauss, Voegelin e Arendt.
E conquanto tenham feito renascer a filosofia prática de Aristóteles na aurora e nos meados do século XX e compreenderam as exigências de um estudo da política mais atento à práxis dos homens vivendo em comum – as feições de reflexão especulativa estiveram sempre presentes nas elaborações dos três emigrados. Comenta Gunnell: “havia numerosos outros elementos antitéticos nos novos temas na teoria política, mas talvez o mais importante era a ressurgência do que […] tem sido chamado filosofia política especulativa” (1986, p. 14). O impulso para estes estilos (análise da tradição do pensamento político, reflexão especulativa e práxis) de fazer teoria política exercida por Leo Strauss, Eric Voegelin e Hannah Arendt tinha sido a “experiência prática do totalitarismo” (idem). Com a queda das sociedades e culturas europeias sob os regimes fascistas (Hitler e Mussolini) e stalinista (Stalin), indagações filosóficas – eram muito mais angústias existências – acerca do que havia ocorrido passaram a ocupar as considerações de muitos autores impactados pela situação histórica e política de então. Gunnell argumenta que, além e por causa tanto da conformação do mito da tradição e da reflexão especulativa, bem como da experiência totalitária, o trio germânico forjou uma teoria política, significativamente avessa ao liberalismo e à ciência moderna: o resultado desta constelação de ideias e problemas foi “um pessimismo histórico e [a] depreciação” (idem) de tudo o que estava associado de maneira indelével à sociedade moderna ocidental. Com efeito; Strauss, Voegelin e Arendt, “emigrados alemães, […] [que chegaram aos Estados Unidos nos anos [1940-1950] […] [procurando meios de sobrevivência e refletindo filosoficamente o destino do ocidente] […] impactaram a profissão e a disciplina de ciência política e particularmente […] os discursos da teoria política” (idem, p. 13) reconstruindo ou mesmo criando essa área de estudos e pesquisa.
(Institucional). Nos Estados Unidos, o espaço institucional que deu nascimento à teoria política (histórico-especulativa) como campo de investigação específico no âmbito dos departamentos de ciência política norte-americanos foi, de certa maneira, a Universidade de Chicago. Mais precisamente: a certidão de nascimento da teoria política data dos anos 1950, com as Charles Walgreen Lectures realizadas naquela universidade. Houve uma espécie de conjunção de interesses entre aqueles que proferiram as conferências Walgreen, as universidades e a política norte-americanas em momento peculiar. Ou seja, e como se afirmou há pouco, os emigrados alemães vindos de uma Europa esfacelada por duas Guerras Mundiais desejavam tanto refletir sobre o que havia acontecido, como buscavam abrir espaço profissional nas universidades americanas. Essas, por sua vez, receberam os mais eminentes filósofos, teóricos e ensaístas nos seus quadros docentes, tornando o ensino e pesquisa em humanidades altamente refinados, construídos com erudição inigualável.
Ademais, as universidades estadunidenses além de enquanto instituições de prestígio social, político e cultural se preocuparem com o destino da nação, e nesse sentido as considerações teóricas sobre o que havia ocorrido, em especial na Europa, resultando na crise das sociedades ocidentais, os nomes de pensadores e filósofos como Leo Strauss, Eric Voegelin, Hannah Arendt e Jacques Maritian eram muito bem vindos nos quadros da universidade. Com isso também a política norte-americana se beneficiava direta e indiretamente projetando sua cultura, agora legitimada ainda mais pela filosofia continental, para outras nações.
Particularmente, as Walgreen Lectures expressavam, portanto, uma consagração acadêmica para os que ali expusessem parte importante de seu pensamento, ou mesmo um projeto teórico que seria desenvolvido adiante. Charles Walgreen havia sido um dos grandes empresários no ramo farmacêutico nos Estados Unidos; preocupado com a sorte do país, ele resolveu empregar parte de sua fortuna fazendo doações para a Universidade de Chicago. Daí a criação e surgimento da Fundação Walgreen que abrigaria as conferências anuais. Assim, o fim das Walgreen Lectures era se dedicar “ao estudo das instituições [políticas em geral] e americanas [em especial]” (Lastra e Morales, 2009, p. 15). Ademais, o que impulsionou a fundação e a Universidade de Chicago a promover os encontros a cada ano com nomes destacados do pensamento europeu emigrado foi a “Segunda Guerra Mundial” (Ibidem, p. 16) e a exigência de uma sociedade democrática para os homens que saíram do terror da “Guerra Total” (idem). Foi deste modo que Direito natural e história de Leo Strauss, A nova ciência da política de Eric Voegelin e A condição humana de Hannah foram pronunciados primeiro como conferências no projeto da Fundação Walgreen.
Após este momento, as três exposições para o público da universidade transformar-se-iam em obras fundadoras da teoria política. Ora, notemos os prefácios e agradecimentos dos três teóricos nos respectivos livros: Strauss diz “esta [obra] [Direito natural e história] é uma versão ampliada de seis conferências que ministrei na Universidade de Chicago em outubro de 1949, sob os auspícios da Fundação Charles R. Walgreen” (2014, p. ix); Voegelin agradece que o presente livro [A nova ciência da política] foi desenvolvido a partir de seis conferências sobre ‘A Verdade e a Representação’, dadas em 1951 sob os auspícios da Charles R. Walgreen Foundation” (1979, p. 13) e Arendt comenta que “o presente estudo [A condição humana] resultou de uma série de conferências realizadas [na] Charles Walgreen Foundation, em abril de 1956, na Universidade de Chicago, com o título de ‘Vita Activa’” (2001, p. 339). Se há qualquer dúvida (do quem, quando, como e por que) acerca do nascimento da teoria política no século XX enquanto área de estudo – os referidos prefácios e agradecimentos podem ajudar a dissolver aquela. Resta averiguar quais os sentidos de se fazer teoria política no atual contexto das pesquisas em humanidades em geral e em ciência política em particular – e o mais importante, da política (em crise) enquanto tal.
Bibliografia:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2001.
BERTI, Enrico. Aristóteles no século XX. São Paulo. Loyola, 1997.
GUNNELL. John. The Myth of the Tradition. The American Political Science Review, V. 72, N° 1, 1978.
_______________ Between Philosophy and Politics: The Alienation of Political Theory. Amherst. The University of Massachusetts. 1986.
LASTRA, Antonio y MORALES, Bernal Torres. Introdicción – Pistis, Noein: Uma Correspondência Truncada. In: Eric Voegelin – Leo Strauss Fe y Filosofia Correspondência. Madrid. Minima Trotta, 2009.
STRAUSS, Leo. Direito natural e História. São Paulo. WMF Martins Fontes Ltda, 2014.
THANASSAS, Panagiotis. Phronesis vs. Sophia: on Heidegger’s ambivalent aristotelinism. The Review of Metaphysics, nº 66 (September), 2012.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro. Difel, 2008.
VOEGELIN, Eric. A nova ciência da Política. Brasília. Editora da Universidade de Brasília, 1979.
VOLPI, Franco. Dasein as práxis: the heideggerian assimilation and the radicalization of the practical philosophy of Aristotle. In: MACANN, Christopher. Martin Heidegger: Critical Assessments. New York. Routledge, 1992.
WOLIN, Richard. Heidegger’s Children: Hannah Arendt, Karl Löwith, Hans Jonas, and Hebert Marcuse. New Jersey. Princeton University Press, 2015.
[1] Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPq-USP).