Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque[1]
Leia a primeira parte do texto aqui.
Cães?
Em “Simians, Cyborgs, and Women” (2018), Haraway usa de metáfora para pensar “mundos possíveis”. A chamada para artigos (COWAN; RAUL; LEBLANC, 2020) do periódico feminista Catalyst: feminism, theory, technosciencie convocou, em 2020, especialistas, artistas, estudantes e interessados em geral para pensarem juntos, dentre tantas coisas, como as múltiplas histórias de metáforas, ‘positivas’ ou ‘negativas’, influem no modo como a linguagem nos ajuda a perceber o mundo. O texto da chamada, sugere que é a partir da metáfora que o ser humano pode imaginar um mundo ocupado apenas por homens e cães, sendo, também, por intermédio da metáfora, que a palavra “cães” pode ser substituída por “mulheres”, sem que haja alterações discrepantes no discurso. Com exceções óbvias: onde me referi objetivamente às mulheres e aos cães, e não quando fiz uso intencional ou dúbio de linguagem subliminar.
Caso, não tenha ficado evidente, ainda são as mulheres, assim como os cães pastores, que recebem salários menores que os homens ao executarem o mesmo trabalho. São elas que cuidam da casa e salvaguardam os filhos, e são sobrecarregadas de trabalho doméstico não-remunerado. São as mulheres que são “domesticadas” desde criança a proteger e cuidar de filhos ─ recebem bonecas e réplicas de utensílios de cozinha como presentes ─, a serem submissas e aceitarem ao status quo ─ os meninos são desafiados com carrinhos, bonecos e armas de guerra, às vezes quase enxotados para brincarem na rua. São reprimidas e treinadas para aceitarem, não reclamarem, a recorrerem ao coquetismo e validarem diariamente sua “autoestima”, afetada por inúmeros traumas, ofensas, acusações e cobranças sociais estabelecido por uma estética fascista (WHITAKER, 1988, p. 50-52).
Algumas, por conta da dependência financeira, são obrigadas a se submeterem a uma vida de maus-tratos, lambendo, como cães, a mão de seus algozes. Foram e são proibidas de gerar renda em trabalho remunerado fora de casa (FRIEDRICH, 2017), onde estão condenadas a cuidarem dos filhos e da casa.
A estrutura patriarcal está enraizada no imaginário ocidental, desde a mitologia greco-romana, bem como na judaico-cristã, sem contar nas outras heranças culturais que formam a identidade do povo brasileiro. São várias retóricas e incontáveis discursos… Como não acreditar? Como fugir deles?
A vida de mulheres e de cães se confunde com o uso de metáforas, e, por sorte, é também por conta das metáforas, que, não podemos jamais esquecer, existem aqueles cães que além de morderem e ferirem seus “donos”, desobedecem-nos. Sem contar, aqueles que os caçam e os devoram. Existem cães selvagens que jamais serão domesticáveis. Existem, aqueles cães que correm com as mulheres, e vice-versa.
Em “Mulheres que correm com lobos” (ESTÉS, 2018), o subtítulo ressalta algo importante para o imaginário ocidental: o arquétipo, no caso o da mulher selvagem. No “Capítulo 8: A preservação do self: a identificação de armadilhas, arapucas e iscas envenenadas” (ESTÉS, 2018, p. 246-292) desse livro, o arquétipo da mulher brava é descrito como “aquela que um dia viveu num estado psíquico natural ─ ou seja, em perfeito estado mental selvagem ─ e que depois se tornou cativa de alguma reviravolta dos acontecimentos, passando, assim, a ser excessivamente domesticada e amortecida nos seus instintos próprios” (ESTÉS, 2018, p. 246). Essa mulher brava, segundo Estés, caso tenha a oportunidade de “voltar à sua natureza selvagem original, quase sempre ela é vítima de todos os tipos de armadilhas e venenos” (ESTÉS, 2018, p. 246). Armadilhas e venenos que estão fixados desde os mecanismos mais singelos da vida em sociedade, como os presentes da primeira infância até os mais essenciais, como a linguagem.
É, também, por meio de uma análise linguística específica, que se percebe a associação de comportamentos tipicamente caninos com o dos homens. Grupos de homens são popularmente chamados de “matilha”. Em algumas subculturas misóginas, o termo “macho alfa” é amplamente difundido como sinônimo do que antes, minha avó conhecia como, “homem com H maiúsculo”; enquanto o termo “macho beta” destina-se ao homem que não sucumbiu a uma acepção de masculinidade tida como aceitável e padronizada.
A masculinidade tóxica que, metaforicamente, sustenta uma sociedade em que mulheres são confundidas com “cães de companhia” ou são relegadas à função de serem “as melhores amigas dos homens”, “as mantenedoras e protetoras do lar”, “as cuidadoras das crianças”, “as que ganham menos, mesmo fazendo o trabalho duro no pasto”, “as que se mantêm lindas e em forma física, para não perderem a disputa com seus iguais”, “que são tratadas como mercadoria”, etc…
Uma sociedade hipotética, em que mulheres aprenderiam, desde sua primeira infância, a serem subservientes e que uma das suas principais razões de existir está no cuidar. Não é por acaso, que a “família tradicional brasileira” (branca, hétero e monogâmica), presenteia suas meninas com bonecas e réplicas de utensílios de cozinha. Frases do tipo: “─ Pode ser, fale o quanto e quando desejar, só não vale abandonar o cachorro na estrada e seguir o carro”, usada como metáfora para o abandono de diálogo e desprezo, revela não quem recebe os carrinhos de presente, mas quem foi ensinado, que abandonar um ser vivo à sorte é algo aceitável e natural. Afinal, já não serve mais, qualquer coisa depois compra outro… Cansei de brincar com ele, agora que passou a latir quando tem fome, não quero mais!
Gradativamente, algumas mulheres se organizaram e tencionaram a ordem dominante e opressiva. Enquanto os homens fizeram o que?
Alguns, também comovidos pela dura realidade que oprime as mulheres e pela tomada de consciência que seus privilégios as causam, recorrem, ao que Bell Hooks, denomina como “Masculinidade feminista” (HOOKS, 2018, p. 103-108). Alguns desses homens antissexistas, camaradas do feminismo, ainda como membros de uma matilha, reúnem-se para desconstruir, pensar e discutir sua masculinidade. Há iniciativas como a do Projeto Terapretas, que oferece, em um ambiente virtual, o Grupo Acolhimento para Homens, ou a iniciativa da Casa do Povo em São Paulo/SP, que oferece quinzenalmente ao público a oportunidade de discutirem sobre os efeitos da masculinidade tóxica para os próprios homens, são exemplos, que devem ser seguidos por instituições mundo a fora , assim como, as reuniões semanais do Coletivo Fala Homem, em que os encontros são mediados por psicólogas mulheres, contribuindo não apenas para mais um caso esporádico de esforço para conscientizar homens, mas também para se estabelecer
Uma visão feminista que adere à masculinidade feminista, que ama garotos e homens e exige, em nome deles, todos os direitos que desejamos para garotas e mulheres, pode renovar o homem norte-americano. Principalmente, o pensamento feminista ensina a todos nós como amar a justiça e a liberdade de maneira a nutrir e afirmar a vida. Claramente, precisamos de novas estratégias, novas teorias, diretrizes que nos mostrarão como criar um mundo em que a masculinidade feminista prospere.” (HOOKS, 2018, p. 108)
Leia-se “homem ocidental” em lugar de “homem norte-americano”.
Mulheres não podem mais serem convencidas que lhes é natural a subalternidade. Afinal, embora, possam ser por alguns confundidas como tal, elas não são cães!
Se não acredita em mim, constate com Donna Haraway, ela estudou tanto o feminismo e os cães, quanto é mulher… uma grande mulher, aliás. Inclusive, uma mulher que o mundo precisa ler e conhecer!
*Este texto não reflete necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências:
COWAN, T. L (ed.); RAUL, J. (ed.); LEBLANC, L. (ed.). Catalyst: feminism, theory, technociencie –
Special Section: Metaphors as Meaning and Method in Technoculture. – Vol. 8 No. 2 (2022). Toronto: University of Toronto, 2022. Disponível em: https://catalystjournal.org/index.php/catalyst/issue/view/2650 Acesso em 03 dez. 2022.
COWAN, T. L (ed.); RAUL, J. (ed.); LEBLANC, L. (ed.). Catalyst: feminism, theory, technociencie –
Call for Papers: Metaphors as Meaning and Method in Technoculture.Publicado em 07 jun. 2020.
Toronto: University of Toronto, 2020. Disponível em: https://catalystjournal.org/index.php/catalyst/announcement/view/763 Acesso em 03 dez. 2022.
FEDERICH, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
HARAWAY, D.J. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.
HOOKS, B. O feminismo é para todos: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
WHITAKER, D. Mulher e homem: o mito da desigualdade. ─ 3ª ed.─ São Paulo: Editora Moderna, 1988.
[1] Doutorando em Artes pela Universidade Estadual Paulista; Professor pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. fellipe.eloy@unesp.br ou fellipe@sme.prefeitura.sp.gov.br
Fonte Imagética: Foto de Marek Szturc na Unsplash. Disponível em: https://unsplash.com/pt-br/fotografias/8Ou3EZmTMWA. Acesso em 24 jan 2023.