Stephany D. Pereira Mencato[1]
Em um ensaio bibliográfico publicado recentemente[2] busquei compreender como neoliberalismo e gênero se entrelaçam, acentuando as desigualdades de gênero, afetando mulheres e corpos feminilizados. Nele destaco os riscos que emergem dos discursos nos quais se prega, sem crítica, a autonomização total das mulheres, construindo-as como empresárias de si, possuidoras de liberdade total de escolha entre o mercado e a vida doméstica na sociedade de livre mercado.
A questão então levantada foi: como o neoliberalismo se entrelaça e acentua as desigualdades de gênero, afetando sobremaneira as mulheres e os corpos feminilizados? Para responder tal questão me fundamento em Wendy Brown (2015; 2006), uma das principais pesquisadoras sobre feminismo e neoliberalismo contemporâneos, com marcada contribuição na reflexão teórica política contemporânea, bem como em Margareth Rago e Pelegrini (2019), e Johana Oksala (2019).
O primeiro passo do artigo foi compreender o que se denomina como “racionalidade neoliberal” e como esta se vincula aos processos de “economização da vida”. O neoliberalismo, segundo Brown (2019), pode ser definido enquanto uma coletânea de políticas econômicas voltadas à promoção sem restrições do livre mercado internacional, seus fluxos e acumulações de capital. Ele seria responsável por promover baixas tarifas e impostos, privatizações de bens e serviços públicos, desregulamentações de atividades industriais e, por fim, um sistemático desmonte do Estado de bem-estar social e do trabalhismo organizado.
A racionalidade neoliberal está ligada a governamentalidade enquanto geradora de individualidades, formas de conduta, ordens de sentido e valor social, definição que emerge do pensamento de Foucault (2008). Na sua obra se aponta o neoliberalismo como o regime em que busca-se compreender o modo pelo qual seria possível regular o poder político, seu exercício, tomando por base uma economia de mercado.
Wendy Brown (2019) vale-se do pensamento foucaultiano para empreender uma análise de problemas contemporâneos de sociedades sob o efeito de décadas de governamentalidade neoliberal. Como destaca Pelegrini (2019, p. 198) a preocupação da autora é com o desfazimento dos laços políticos em uma sociedade onde os cidadãos, antes de sujeitos possuidores de direitos, são tomados como sujeitos-empresa, em perpétua concorrência, percepção que afetaria profundamente as políticas públicas e a direção do Estado.
Enquanto forma de raciocínio político contemporâneo, o neoliberalismo articula o significado e a natureza do político, do social e do sujeito e vem usurpando outras formas possíveis de racionalidades governamentais, que poderiam ter vieses mais democráticos. Isso ocorreu com a expansão do neoliberalismo pelo globo ao longo do último século, fazendo-se presente nos mais diversos países, mesmo que com características e modos distintos em cada um. Isso porque o neoliberalismo se adapta às realidades de cada Estado, sua inventibilidade e capacidade de usurpação são partes de sua caracterização central.
O neoliberalismo está, desse modo, para além da facilitação econômica do mercado global, caracterizado como definidor do Estado, e sua interpretação nos termos mercadológicos. Diferencia-se então o neoliberalismo de uma ideologia, distorção ou mitificação da realidade. Como expõe Brown (2019), ele é produtivo, formador do mundo, capaz de colocar cada esfera e empenho humano sob um viés econômico. Na sociedade neoliberal, a lógica do cidadão de direitos – aquele do modelo de sociedade liberal clássica, marcadas pelo contrato social, pelos planos de governo com foco na justiça social, e com mercados orientados pelas necessidades dos Estados – passa a ser substituída pela lógica da cidadania sacrificial.
O objetivo da racionalidade governamental neoliberal, como apontou Foucault (2008), é tão e somente fazer com que o mercado seja possível. Não se fala mais em trocas de mercadorias e sim nos mecanismos da concorrência, a sociedade se submete às dinâmicas concorrenciais, se propaga cada vez mais a sociedade empresarial e o sujeito-empresa, o indivíduo empresário de si mesmo. Enfim, o homo oeconomicus, da empresa e da produção, substitui o cidadão de direitos, ainda que ecos desse permaneçam em cartas de direitos.
Na racionalidade neoliberal generalizada, seus princípios não governam somente por meio do Estado, mas em todos os locais onde a vida, o desejo e a decisão humana se formam. Uma marca crucial dessa racionalidade governamental é o que Brown (2018) chama de economicização da vida, processos por meio dos quais se observam a conversão de domínios, a transformação de atividades e sujeitos não econômicos em econômicos, e afeta todas as esferas da vida.
Simultaneamente, no momento em que o discurso neoliberal geral parece se firmar sobre a propagação da liberdade, clamando a emancipação dos indivíduos das redes de regulamentação e intervenção estatal, “ele envolve e vincula esses mesmos indivíduos em toda esfera e instituição neoliberalizada da qual participam. Apontando a conduta empreendedora em todos os lugares, ele constrange o sujeito a vestir-se à moda do capital em todos os lugares” (BROWN, 2018, p. 7). A racionalidade neoliberal refaz o humano, agora como partícula do capital, sujeito em simultâneo, definido como membro e enquanto uma empresa, conduzido, em ambas as esferas, por estratégias de governança, regulamentações. A governança não é o mesmo que o neoliberalismo, mesmo convergindo diretamente com este. Ela é a sua forma administrativa central. Sem a governança, o neoliberalismo seria impensável nos moldes como se estabeleceu contemporaneamente.
É por meio das distintas estratégias de governança que a racionalidade neoliberal consegue dar vazão aos seus ideais, convertendo o trabalhador, o consumidor, o cidadão de direitos e ativista em partículas isoladas de capital humano. Desse modo torna-se autoinvestidor, empresário de si mesmo, empresa individual, não somente indivíduos mais fáceis de governar, como parte de um projeto geral de crescimento e desenvolvimento econômico infindável, sem limites, em nome do qual ele próprio poderá ser sacrificado e se sacrificará de bom grado.
Como aponta Brown (2018, p. 8) “ao mesmo tempo, o sujeito, tomado como capital humano por empresas e macroeconomias, acaba por ficar inteiramente preso às necessidades, trajetórias e contingências dessas entidades e ordens” e assim a liberdade típica dessa racionalidade fica reduzida ao direito cruel do auto-empreendedorismo sem quaisquer garantias ou proteções, e a igualdade universal dá lugar a uma sociedade de competição individualista sem precedentes.
Essa liberdade esvaziada combinada com o menosprezo e a desconsideração do social por parte da governabilidade neoliberal transforma-se em fazer ou dizer o que se quer, sem considerações acerca dos efeitos disso socialmente, culminando como efeito no cenário violento que observamos contemporaneamente, onde genuinamente muitos não se importam com as vulnerabilidades ou destino de outros humanos, outras espécies ou mesmo do planeta.
Nesse cenário, os corpos feminilizados, atravessados por marcadores e significações de gênero, são expostos sobremaneira às desigualdades inerentes ao sistema neoliberal. Brown (2015) cita exemplos nos quais ocorrem a redução, privatização e desmantelamento de infraestruturas públicas de apoio familiar, infantil e de idosos, que atribuem a responsabilização individual particularmente e de modo desproporcional sobre as mulheres, responsabilizadas em maior grau e penalizadas com a diminuição do acesso ao mercado frente à imposição de uma responsabilidade que transcende a si mesmas.
É apontado desse modo que “o familismo é um requisito essencial, e não uma característica incidental da privatização neoliberal de bens e serviços públicos” (BROWN, 2015, p. 105, tradução livre). Isso ainda que inicialmente o neoliberalismo pareça valorizar uma suposta autonomização das mulheres no plano de suas subjetividades, enquanto indivíduos, incitando-as a se tornarem empresárias de si mesmas, livres para consumirem e assumirem todos os riscos de seus passos na sociedade de livre mercado. Como enfatizam também Rago e Pelegrini (2019), oculta-se, dessa forma, toda a carga que se impõe sobre elas por esse mesmo sistema.
O que se vê é uma acentuada desigualdade nas estruturas de gênero, fortalecidas em um cenário crescente de despolitização, desmonte e desregulamentação do Estado, onde indivíduos são responsabilizados e “obrigados a sustentar a si mesmos, num contexto em que poderes e contingências limitam radicalmente sua habilidade de fazê-lo” (BROWN, 2018, p. 41). Neste cenário, se o indivíduo é culpabilizado sistematicamente pelas desgraças do todo, a mulher o é ainda mais, em decorrência do alto grau de responsabilidades que lhe é transferido frente aos processos de privatização sistemáticos, e isso independentemente de atuarem conforme as normas da governamentalidade ou não.
Os processos de precarização, fragilização econômica e social que afetam sobremaneira, ainda que não unicamente, as mulheres, se dão em decorrência direta da governamentalidade neoliberal. Assim, são ocultos e invertidos, passando a ser justificados por supostas desigualdades e inferioridades naturais do gênero. Estas seriam decorrentes de uma natureza imutável, originada no sexo biológico, e justificadas pela existência divina de machos e fêmeas, diferenciação esta apontada como única responsável pelas mazelas femininas, e sobre a qual o sistema enquanto Estado e mercado nada, ou muito pouco, podem fazer a fim de romper com esse cenário.
Ao estudar as relações entre gênero e neoliberalismo, conforme apontam as autoras, não basta observar a extensão da lógica empresarial a todos os âmbitos da vida social e às esferas pública e privada, pois “até mesmo os feminismos se veem fortemente ameaçados, já que as próprias pautas que defendem são capturadas pela lógica empresarial desse novo regime neoliberal” (RAGO e PELEGRINI, 2019, p. 10).
A governamentalidade neoliberal, além da crescente mercantilização, trouxe também a marquetização ao domínio privado, sendo cada vez mais dependente a economia global não apenas do trabalho das mulheres, mas da feminização do trabalho, posta com o crescimento da demanda por serviços de cuidado e ainda pela universalização no mercado de trabalho global das características historicamente associadas ao trabalho das mulheres: de precariedade, flexibilidade, natureza fragmentária, baixa posição e pagamento. O texto de Oksala (2019), aponta que uma análise unicamente em termos de gênero pode não traduzir completamente as formas de arranjo trabalhistas, por exemplo, trazendo os desafios de se pensar essa realidade como destacada por Wendy Brown (2015).
Frente a esse cenário, colocada a necessidade da resistência e o enfrentamento a uma extrema-direita raivosa crescente com discursos repletos de elementos fascistas e supremacistas, emerge a figura das contracondutas enquanto “possibilidades de construir inventivamente novas formas de se colocar no mundo, novas oportunidades de constituição da subjetividade, novas ideias para relacionar-se consigo e com os outros. Nesse sentido, é uma tarefa ao mesmo tempo, ética e política, individual e coletiva” (RAGO e PELEGRINI, 2019, p. 11).
Para Wendy Brown (2018) passa a ser imperativo que se marque o sujeito não marcado do neoliberalismo, se rompa com o linguajar neoliberal universalista, onde não se define o humano com base em características como gênero, raça, sexualidade ou qualquer outra posição subjetiva. É necessário portanto romper com as intersecções formuladas no seio do neoliberalismo e suas estratificações que marginalizam e estigmatizam.
* Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
BROWN, W. American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory. California, v. 36, n. 6, p. 670-714, dez 2006. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/20452506.>. Acesso em: 19 out. 2020.
BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. United States of America: zone books, 2015.
BROWN, W. Cidadania Sacrificial. Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Tradução de Juliane Bianchi Leão. PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS. ed. Brasil: ZAZIE Edições, 2018.
BROWN, W. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas ‘democracias’ do século XXI. In: RAGO, M.; PELEGRINI, M. Neoliberalismo, Feminismos e Contracondutas: Perspectivas Foucaultianas. São Paulo : Intermeios, p. 17-50, 2019.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica: curso dado no College de France (1978-1979). São Paulo: Martim Fontes, 2008.
OKSALA, J. O sujeito neoliberal do feminismo. In: RAGO, M.; PELEGRINI, M. Neoliberalismo Feminismos e Contracondutas: Perspectivas Foucautianas. São Paulo: Intermeios, p. 115-138, 2019.
PELEGRINI, M. Michel Foucault e a crítica feminista ao neoliberalismo. In: RAGO, M.; PELEGRINI, M. Neoliberalismo, Feminismos e Contracondutas: Perspectivas Foucautianas. São Paulo: Intermeios, p. 191-212, 2019.
RAGO, M.; PELEGRINI, M. Neoliberalismo, Feminismos e Contracondutas: perspectivas foucaultianas. São Paulo: Intermeios, 2019.
[1] Fanny Mencato, doutorande junto ao Programa de Doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Integração Contemporânea da América Latina (ICAL/UNILA). ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-7956-6274 / E-mail: fannymencato@gmail.com / CV lattes: https://lattes.cnpq.br/4877857853675754
[2] Artigo completo originalmente publicado no v. 31 n. 1 (2022) da revista Teoria e Pesquisa (UFSCar): Vozes e Temas Emergentes na Ciência Política Brasileira, DOI: https://doi.org/10.31068.310102, disponível em: https://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/view/943.
Fonte Imagética: Agência Brasil. Mulheres receberam 23,6% menos que os homens em 2015, aponta IBGE. 5 jul. 2017. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-07/mulheres-receberam-236-menos-que-os-homens-em-2015-aponta-ibge>. Acesso em: 30 jan. 2023.