Lenon Campos Maschette1
28 de março de 2024
Apresentação
Desde o final dos anos 1980, o tema cidadania vem gozando de crescente interesse e renovado prestígio. Com as inúmeras mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas do final do século XX, o conceito tornou-se elemento central em debates tanto no meio acadêmico quanto na arena política. Não só intelectuais têm repensado o tema, mas políticos têm ressignificado o conceito, tanto em termos ideacionais quanto práticos. Na Inglaterra, a relação entre Estado, sociedade civil e cidadãos tem sido profundamente transformada nas últimas décadas. Essas mudanças foram, em grande medida, influenciadas pela crítica da Nova Direita ao Estado de bem-estar social britânico e pela compreensão de cidadania associada ao “consenso” político do pós-guerra.
É nesse espaço que o livro se desenvolve. O autor examina a evolução da ideia de cidadania no seio do Partido Conservador britânico e o consequente impacto na própria concepção do termo. Numa análise detalhada e original, o autor analisa como os governos de Margaret Thatcher (1979-1990), John Major (1990-1997) e David Cameron (2110-2016) contribuíram para essas mudanças e influenciaram, definitivamente, os novos debates sobre a ideia de Estado, de sociedade civil e de cidadania.
Em termos gerais, a importância do presente livro está relacionada a três questões principais e pouco exploradas: primeiro, foi sobretudo a partir da década de 1980 que cidadania e sociedade civil emergiram, na Europa, como conceitos políticos centrais – e é surpreendente quão pouca atenção os historiadores têm prestado à relação entre o projeto de Thatcher e um novo modelo de cidadania; Em segundo lugar, foi principalmente a Nova Direita que mais influenciaria esse debate, ressignificando a natureza do Estado e sua relação com os indivíduos e a comunidade. Nesse sentido, foi o governo Thatcher que mais profundamente tentou romper com as ideias e práticas do welfare state, disputando conceituais e práticas políticas, incluindo aquelas relacionadas à cidadania. Tal como explicado no livro, Thatcher colocou questões que influenciariam todo o debate subsequente sobre cidadania. Assim, o livro analisa como, a médio e longo prazo, e num momento crucial, os Conservadores deram novos significados à relação entre o Estado, os cidadãos e a sociedade civil em detrimento das ideias e práticas implementadas pós Segunda Guerra Mundial. Por último, o livro também analisa cada um desses governos Conservadores individualmente, procurando compreender como cada um desses líderes redefiniram cidadania. Assim, o estudo examina a forma como essas administrações reconfiguraram a relação entre o Estado, os cidadãos e a sociedade civil ao responderem tanto as questões de longo prazo quanto às circunstâncias políticas, ideológicas, sociais, culturais e econômicas específicas de curto prazo.
Baseado numa abordagem ideológica que analisa uma ampla gama de fontes – tais como discursos, memórias, cartas, entrevistas, artigos, livros e documentos – o presente livro fornece ao leitor um rico contexto geral – especialmente político e ideológico – de cada governo Conservador, ao passo que relaciona esses contextos as questões, influências e tradições de médio e longo prazo que desempenharam fundamental influencia na administração desses primeiros-ministros.
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The British Conservative Party. Ideology and Citizenship, por Francisco Carlos Palomanes Martinho
Os estudos a respeito da direita política, no quarto de século que se inicia como o fim da Segunda Guerra Mundial, se dedicaram, privilegiadamente, às experiências nazifascistas e suas ramificações, tanto na Europa como na América Latina. Nos anos seguintes, sobretudo a partir da década de 1970, novos objetos de investigação, com o advento das ditaduras militares latino-americanas. Algumas pesquisas procuraram, ainda, analisar as experiências autoritárias de longa duração, como foram os casos de Espanha e de Portugal. Em outras palavras, a chamada direita liberal, democrática, foi relegada, nos trabalhos acadêmicos, quase que à marginalidade, malgrado a existência de uma ou outra publicação sobre este tema.
Na Inglaterra, a vitória de Margaret Thatcher em 1979, fez com que a preocupação com a direita liberal se antecipasse à maioria dos estudos europeus e americanos, de modo que desde a década de 1980 já se percebe uma produção acadêmica consistente e contínua. As sucessivas vitórias conservadoras nas décadas seguintes, incentivaram a continuidade desses estudos, tanto entre historiadores como sociólogos e cientistas políticos.
O trabalho de Lenon Maschette, que o leitor tem em mãos, vem se somar ao já amplo debate a respeito do fenômeno conservador inglês que marcou a História britânica nos últimos quarenta anos. Utilizando-se de uma vasta bibliografia e de ricas fontes primárias coletadas em arquivos britânicos, o autor produziu um trabalho inovador sob vários aspectos. Destacarei, brevemente, três deles; que me parecem os mais importantes.
Em primeiro lugar, a cidadania como tema central de investigação, analisada a partir do advento do conservadorismo, merecia um livro todo dedicado a ela. De qual cidadania estamos a falar? Quais as alternativas à cidadania universal do welfare state? Onde começa, e onde termina o papel dos indivíduos? Onde começa e onde termina o papel da chamada “sociedade civil”? E o que entendemos por “sociedade civil”? São questões que o autor procura problematizar em sua obra. Sem conclusões definitivas, posto que não há palavra final na História, o livro aponta caminhos para entendermos as diversas apropriações e usos políticos do conceito.
Em segundo lugar, embora seu objeto de pesquisa sejam os governos conservadores de Margaret Thatcher, John Major e David Cameron, o autor percebe a necessidade de dedicar um capítulo à governança trabalhista de Tony Blair. Na oposição por quase duas décadas, o agora chamado “Novo Trabalhismo” foi protagonista de uma profunda revisão, se o compararmos com o que foi o Partido Trabalhista das décadas de 1960 e 1970. Uma alteração de discurso e prática que, em larga medida, foi imposto pela própria
agenda conservadora. O livro já seria rico caso se dedicasse exclusivamente aos governos conservadores. Com a inclusão do governo trabalhista, torna-se imprescindível para compreendermos a combinação de velhas e novas agendas no quadro político da Inglaterra contemporânea.
Em terceiro lugar, o autor percebe as diversas facetas do conservadorismo britânico. Ou seja, o estudo de Lenon Maschette demonstra as tensões, as proximidades e os distanciamentos tanto na concepção de cidadania como – por consequência – na sua prática política, de cada governo conservador. Assim, o presente livro rompe com o senso comum que pensa o conservadorismo britânico a partir de uma perspectiva exclusivamente linear e homogênea. Como disse Marc Bloch, “comparar é também fazer um inventário das diferenças”. Lenon Maschette compara, e compara bem.
Bem informado, erudito e desafiador, é um livro necessário para a pensarmos a cidadania e a democracia no século 21, além das diversas facetas do pensamento de direita no mundo em que vivemos.
Francisco Carlos Martinho
Professor Titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
1 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e faz estágio de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Unicamp. É Pesquisador do INCT-INEU, do Ceipoc/Unicamp e da Rede “Direitas, História e Memória”. Atualmente é Pesquisador Visitante no Centre of Latin American Studies da Universidade de Cambridge.
Referência imagética: Capa do livro “The British Conservative Party: Ideology and Citizenship”, de Lenon Campos Machete. Disponível em <https://www.routledge.com/The-British-Conservative-Party-Ideology-and-Citizenship/Campos-Maschette/p/book/9781032496412>. Acesso em 26 fev 2024.