Ronaldo Tadeu de Souza
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Entrevista com Thaís Klein: Psicanalista, Professora no Departamento de Psicologia da UFF (CURO) e no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica na UFRJ, é autora de Cartas a Um Velho Terapeuta, Ed. N-1.
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- Boletim Lua Nova-Cedec: Quando e como surgiu a ideia de escrever Cartas a Um Velho Terapeuta a quatro mãos?
Thais Klein: Essa é uma pergunta interessante, uma vez que acaba por localizar territorialmente a escrita desse livro. Os primeiros passos para o livro foram viabilizados por Jurandir Freire Costa, cuja disponibilidade para rejuvenescer admiramos, e que prefaciou o livro. Foi em um encontro entre psicanalistas cariocas e pernambucanos promovido por ele, na região serrana do Rio de Janeiro, em abril de 2024, que as cartas começaram a ser escritas antes mesmo que seus remetentes soubessem. Érico e eu logo nos demos conta de algo que não dizia respeito apenas àquele encontro, mas que figurava um contexto mais amplo da psicanálise: ele era a única pessoa negra que iria proferir uma palestra e eu, a única mulher nessa mesma posição. As quatro mãos que compõem a escrita do livro são compostas por gênero, raças e regiões do país diferentes — característica que nos permitiu conceber essa escrita a partir da diferença que consideramos intrínseca ao próprio coletivo. A ideia de escrever uma carta à obsolescência de certa forma de conceber a própria psicanálise partiu desse encontro.
- Boletim Lua Nova-Cedec: O livro tem como um dos seus pressupostos implícitos o diálogo crítico com o também psicanalista Contardo Calligaris, que escreveu Cartas a Um Jovem Terapeuta? Poderia explicar qual enfrentamento crítico que vocês fazem com uma figura intelectual que marcou um momento nos debates públicos nacionais, sobretudo na psicanálise e na psicologia?
Thais Klein: Acho que não se trata apenas de um pressuposto implícito, é uma brincadeira mesmo. E brincadeira para nós é coisa importante, a gente só brinca com o que respeitamos. Então, é preciso lembrar que partimos do reconhecimento e da relevância que Calligaris tem na psicanálise brasileira. Inclusive, quando pedimos para Jurandir, que era amigo pessoal de Contardo, escrever o prefácio do nosso livro, ele se lembrou que também foi convidado por Calligaris para escrever o prefácio de Cartas a um jovem terapeuta.
A dimensão crítica da brincadeira se dá primeiro com uma subversão de um certo tom professoral que muitos psicanalistas sustentam — resquícios de uma práxis cujo pai fundador permanece intocável. Na psicanálise, de uma maneira geral, é muito comum escrever aos jovens, aos candidatos — o que, da nossa perspectiva, se alia à ideia da transmissão e da formação do analista centradas em uma dimensão ditada pela instituição e calcificada com o tempo.
Já no início, com Winnicott, lembramos que só é possível inovar com a tradição, e é nesse sentido que sustentamos que nossas cartas são como um xirê no qual os mais velhos vão na frente. Não para ditar o ritmo, mas para abrir caminho. Escrever cartas, nesse contexto, é para nós um convite para rejuvenescermos juntas.
- Boletim Lua Nova-Cedec: Nas questões da formação dos e das profissionais de psicanálise e no enquadramento clínico dos tratamentos. Como resolver ou lidar com o problema da formação dos psicanalistas (e psicólogos) na universidade, nos vários fóruns de aprendizado, nos campos de estudo coletivo e nas escolas, que têm uma estrutura formativa profunda constituída pela teoria europeia de Freud, Lacan, Melanie Klein, Winnicott entre outros? E na conformação da clínica (os atendimentos), com a “cultura” do Divã, os “impulsos” processuais para a associação livre (a livre construção do discurso) para apreensão do inconsciente e desvelar o que afeta o indivíduo etc? Como enfrentar essas questões, na medida mesma em que se quer propor formas diferenciadas da prática psicanalítica?
Thaís Klein: Como eu estava dizendo na pergunta anterior, as cartas são justamente um convite para revisitar a psicanálise a partir de questões diante das quais ela vem sendo interpolada nos dias de hoje. Trata-se de um movimento na mesma direção tomada por Freud. Afinal, Freud não era psicanalista quando criou a psicanálise, ele estava às voltas com questões de seu tempo. É importante salientar que não se trata de uma interpelação feita apenas à psicanálise, mas à própria episteme moderna europeia em diferentes vertentes — e essas questões não são recolhidas pelos campos de saber de boa vontade; trata-se de um esforço empreendido pelos movimentos sociais, pelos efeitos complexos das políticas de ação afirmativa e pela visibilização de corpos antes excluídos e massacrados pela práxis ligada à episteme moderna.
Se a psicanálise, enquanto herdeira do pensamento moderno europeu, cometeu silenciamentos graves, não ser interpelada por essas questões não é apenas perpetuar esses assassinatos, mas cometer um verdadeiro suicídio, uma vez que a psicanálise se mantém viva quando recria a si mesma diante das questões às quais é interpelada. Esse convite para o movimento abarca todas as dimensões da psicanálise: a formação do analista, a dimensão clínica, epistêmica, metapsicológica e política.
Como eu já mencionei, não se trata de destituir os psicanalistas que você citou, que abrem caminhos interessantes para pensar a clínica, mas de revisitá-los a partir desse território, fazendo o exercício de repensar conceitos e práticas. O que vemos, muitas vezes, é uma espécie de extrativismo epistêmico, no qual autores negros, mulheres, pessoas trans etc. são tomados para ratificar aquilo que Freud (ou qualquer outro) já havia dito. Assim como não se trata de destituir a experiência analítica no consultório privado, ou mesmo as experiências analíticas em outros espaços, mas de pensar o que essa práxis esconde, quais são suas heranças modernas.
O livro tem, portanto, início, meio e início… além de terminar justamente com a experiência psicanalítica do coletivo Pontes da Psicanálise, do qual Érico participa — experiência que nos incita a pensar a psicanálise a céu aberto, como brinca Jurandir no prefácio. A ideia é que possamos continuar esse exercício em diferentes camadas, sobretudo no que concerne à formação do analista e à dimensão metapsicológica.
4) Boletim Lua Nova-Cedec: Usando o vocabulário da sociologia de Pierre Bourdieu, como está se desenvolvendo sua posição (e também do Érico Andrade) no campo da psicanálise? Quais os habitus, códigos e razões práticas, disposições de comportamento dos pares que têm enfrentado? Quais os debates e proposições que apresentam no âmbito dos departamentos das universidades em que trabalha, nas associações e encontros de área que mais são rechaçadas (se é que são… obviamente…) claramente ou com nossa sempre presente desfaçatez de classe, nosso cinismo?
Thaís Klein: Agradeço a pergunta… Tenho a impressão de que, convenientemente, as pessoas “esquecem” que esse tipo de discussão não se faz apenas nas revistas científicas ou nos discursos públicos. Como sustentamos em um artigo publicado na Folha de S.Paulo, intitulado “Os limites do cancelamento: a força do racismo institucional”, as velhas práticas de discriminação e manutenção do poder estão consolidadas nos próprios processos institucionais.
É preciso lembrar que eu e Érico atravessamos essas questões de formas distintas, não apenas pelas diferentes instituições às quais pertencemos, mas sobretudo devido a outros marcadores, tais como raça, gênero, região do país e faixa etária. Prefiro não falar em nome do Érico sobre, como você disse, habitus, códigos e razões práticas, disposições de comportamento dos pares que ele vem atravessando nos últimos anos.
Da minha parte, enquanto uma mulher branca da região Sudeste, as questões se colocam pela possibilidade que tenho, enquanto pessoa privilegiada, de questionar certas práticas que considero uma forma de perpetuar o pacto da branquitude. Sou professora adjunta da UFF, mas em 2024 fiz um concurso para a UFRJ — fui aluna da UFRJ e também sou professora da pós-graduação na mesma instituição. Interrogar legalmente as práticas não isonômicas que experienciei passou a ser um dever ético da minha posição. Afinal, se eu, mulher branca, concursada, não questionar esse tipo de prática, quem poderá fazê-lo no momento?
O que posso dizer é que não tem sido fácil o enfrentamento desse tipo de questão; o pacto da branquitude se ancora também na falta de disponibilidade e de abertura para o novo, sobretudo quando isso implica perder certos privilégios, tais como escolher os sucessores nos concursos públicos. O que acalenta é lembrar que a luta não é individual, que não estou brigando por mim mesma, mas que estamos juntos tentando construir as instituições — e a psicanálise — que acreditamos ser mais democráticas.
5) Boletim Lua Nova-Cedec: Você acompanha os serviços públicos, CAPS, Hospitais, UBS’s? Qual sua avaliação em geral? E como suas propostas rebeldes de inovação podem contribuir com essa área da intervenção psicanalítica e psicológica dirigida para a população pobre? Em suma, o que significa fazer psicanálise ou ser psicanalista em um país como o Brasil? Em que famílias inteiras passam por traumas, sofrimentos e humilhações como na recente chacina nos complexos do Alemão e Penha ocorrido em 28/10 último? A maioria dos mortos (mais de 100) e dos familiares eram de pretos e pardos; o que isso implica para a psicanálise? Cartas a Um Velho Terapeuta, cumpre qual papel neste debate?
Thais Klein: Olha, vou fazer uma brincadeira… mas ser psicanalista em um país como o Brasil, atualmente, significa sobretudo ser privilegiado. A psicanálise no Brasil perpetuou uma dimensão elitista, especialmente na formação dos analistas. É preciso lembrar que existem exceções ao longo da história… além das iniciativas de clínicas públicas (a mais conhecida é a liderada por Hélio Pellegrino e Anna Kempfer), temos a atuação de psicanalistas no SUS, no SUAS e sua relevância na reforma psiquiátrica — como Joel Birman e Jurandir Freire Costa, entre outros.
O que discutimos em Cartas a um velho terapeuta é que, embora a psicanálise tenha se aproximado dessas perspectivas, poucas mudanças ocorreram em suas próprias instituições, na formação e na sua episteme. Quando tratamos psicanalistas que trabalham no SUS como praticantes de uma psicanálise “aplicada”, mantemos os consultórios — geralmente situados em bairros nobres — como padrão standard. Assim, a prática se aproxima do assistencialismo, o que é um movimento bem anti-psicanalítico, ao menos no que considero mais interessante na disciplina.
Nessa lógica, analistas poderiam intervir nas favelas onde moravam esses mais de 100 mortos e voltar intactos para seus consultórios, com a sensação de terem cumprido um dever ético — enquanto seguem sustentando instituições nas quais o pacto da branquitude impera. No fim das contas, acabam se aliando, ainda que indiretamente, à lógica que produz esses corpos negros estirados no chão.
O que propomos no livro é que isso não seja apenas um “tema” da psicanálise, mas que a própria práxis e a episteme sejam repensadas a partir dessas questões. A aposta é que “ser psicanalista” no Brasil deixe de ser sinônimo apenas de privilégio e possa estar mais de acordo com o território que habitamos.
6) Boletim Lua Nova-Cedec: Tratando mais especificamente das questões políticas. Sabemos que Lacan foi um personagem nos anos 1960, no maio francês de 1968. A psicanálise é sempre indissociável da política, ou tem seu momento de autonomia como a arte, sobretudo em um país como o Brasil com tantas pessoas com questões de saúde mental (o caso do jovem com esquizofrenia que pulou na jaula de uma leoa na Paraíba e acabou morrendo após o ataque do animal é estarrecedor)? Guardadas as devidas proporções é possível traçar um “paralelo” entre a psicanálise (e o consultório) na rua com a ideia e prática da democracia direta de massas, a democracia das ruas auto-organizada, em momentos de rebeldia popular, ou é exagero delirante? Como a psicanálise pode contribuir para a reconstrução da esquerda radical e revolucionária no Brasil?
Thaís Klein: Respondendo à primeira parte da pergunta, eu diria que é impossível desvincular psicanálise e política. Na própria formulação você menciona o caso recente do rapaz na Paraíba que morreu após entrar na jaula de uma leoa. É evidente que se trata de uma questão de saúde mental, mas uma questão de saúde mental é sempre uma questão social. Procurando mais sobre o caso, encontramos a quantidade de instituições pelas quais ele passou, sobretudo do sistema prisional. Aliás, os primeiros anos de sua vida se dão todos em um abrigo. Acho que é nesse ponto que a psicanálise ainda me parece interessante… sempre me pergunto por que continuo sendo psicanalista. Uma das respostas é que a psicanálise, quando ancorada no território, permite entrar em contato com o entrelaçamento entre essas questões e a singularidade dos corpos no mundo.
Quanto à segunda parte da pergunta, acho complexo fazer um paralelo direto, mas há uma intuição interessante aí. Durante o período da ditadura empresarial-militar no Brasil, as escolas de psicanálise cresceram enormemente; a psicanálise parece ter sido uma aliada na individualização das questões que atravessávamos nas classes mais abastadas. Os coletivos de psicanálise na rua — ou com a rua, como preferimos chamar — surgem em sua maioria durante um governo fascista e marcam uma oposição à individualização das problemáticas de saúde mental.
Em relação à última parte da pergunta, no que concerne à contribuição da psicanálise para uma esquerda radical, diria que o caminho ainda é muito longo… É curioso lembrar que as clínicas públicas criadas na Europa no entre-guerras se inspiravam em um modelo de governabilidade que ficou conhecido como Viena Vermelha. O papel do psicanalista nas cidades, nessa perspectiva, estaria longe de se restringir aos consultórios. Mas o caminho ainda é longo e depende muito da disponibilidade de mudança dos próprios psicanalistas e de suas instituições.
7) Boletim Lua Nova-Cedec: A psicanálise e a psicologia nos debates acadêmicos e públicos tiveram seus momentos e ondas. Lembro que quando fiz ciências sociais na PUC-SP era o momento de ler Freud, com as pesquisas e trabalhos do filósofo Vladimir Safatle vivemos o momento Lacan; qual momento estamos atravessando agora? E como Cartas a Um Velho Terapeuta impacta nisso?
Thais Klein: Olha, tendo a pensar que o pensamento intelectual tem ondas mesmo… questões que estão mais em voga, autores que estão na crista da onda. Por outro lado, como a psicanálise é para mim desde sempre uma práxis e não se restringe ao campo da intelectualidade, acho que o debate acadêmico (e a consolidação das instituições de psicanálise ao redor de um autor) vão na contramão de uma psicanálise viva. O que se vê é o respeito a um autor, a uma escola, a um léxico conceitual e não a possibilidade de fazer dos conceitos ferramentas potentes que se ancoram na experiência analítica. Preferem salvar a figura à repensar os conceitos.
O que trazemos no livro como colaboração para esse debate é a ideia de que a centralidade de um psicanalista (geralmente homens brancos europeus) ou escola não é apenas uma questão de escolha, mas tem consequências importantes que vão desde o epistemicídio até um suicídio da própria vitalidade da psicanálise, como mencionei anteriormente.
8) Boletim Lua Nova-Cedec: O que uma psicanálise orientada para os problemas dos mais necessitados, mas não só, ainda precisa estudar, se debruçar sobre? O que na sua observação falta?
Thaís Klein: Seria pretensão minha querer dar uma resposta definitiva para essa pergunta… o caminho é muito amplo, e torço para que questões que eu, enquanto mulher branca privilegiada, nem imagino ainda entrem no cerne do debate. Nessa direção, é preciso lembrar mais uma vez que a psicanálise não é um estudo teórico; ela se refaz no seu tempo e no seu território. Para que essas questões apareçam, é necessário manter um movimento que não está sendo feito por boa vontade dos psicanalistas, mas pelos movimentos sociais, pelas políticas públicas… e, para isso, é fundamental que as instituições e as práticas instituídas continuem sendo interrogadas, ainda que isso incomode os pactos conservadores.
9) Boletim Lua Nova-Cedec: Qual seu próximo projeto, agenda de pesquisa? Pretende escrever outro livro a quatro mãos?
Thais Klein É uma pergunta bastante oportuna para este final de ano. Em 2026, estarei de licença da UFF para realizar um pós-doutorado na USP sob a supervisão do professor Gabriel Binkowski. Coordenador, junto com a professora Miriam Debieux, do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL), escolhi fazer essa parceria porque acredito que o laboratório será um lugar interessante de trocas e de desenvolvimento de um projeto que já vinha construindo na UFF.
Trata-se de um dispositivo de pesquisa clínica em torno de mulheres afetadas pela violência — a ideia é desenvolver um projeto de extensão ligado à pós-graduação, articulando a Pós-Graduação em Psicologia Clínica da USP e a Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, reunindo ensino, pesquisa e clínica ampliada no contexto da violência de gênero, uma questão urgente no nosso país.
Quanto a escrever outro livro a quatro mãos, é curioso: após essa empreitada com Érico, já propus a um colega uma troca de cartas sobre nossas experiências clínicas, no formato de um livro. Escrever, para mim, é da ordem da sobrevivência; se for para falar de futuro, certamente estarei escrevendo.
Boletim Lua Nova-Cedec: Muito obrigado, Thais Klein!



