Neusa Maria Bojikian[1]
Tudo que se tem no momento no que diz respeito à orientação de Política Externa Brasileira (PEB) no âmbito do governo sob representação presidencial de Jair Bolsonaro (PSL) e de Ernesto Araújo, como ministro das Relações Exteriores, são incertezas. Nas redes sociais verificam-se inúmeros comentários por parte do governo Bolsonaro, mas tais avaliações não refletem mais do que posições, intentos. Dito isso, a proposta aqui é traçar algumas notas no plano das expectativas.
Tanto o presidente como o ministro são autores de posições polêmicas. Com discursos que guardam certamente muita semelhança com os do presidente Donald Trump – o que já lhe rendeu o apelido de “Trump dos trópicos”–, Bolsonaro inaugurou seu mandato criticando a ONU e muitas de suas agências. Ainda em campanha presidencial, disse que a instituição não serviria para nada e não teria o “menor compromisso com as nações da América do Sul”. Segundo ele, seria “um local para reunião de comunistas”. Diante da repercussão, retificou sua fala sugerindo que se referia ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.[2]
Durante sua campanha, também sugeriu reiteradamente que aliviaria o Brasil dos compromissos assumidos no âmbito do Acordo de Paris, assinado em 2015. Isso influenciou o governo de Michel Temer (PMDB), em novembro de 2017, a retirar a oferta do Brasil de sediar a Conferência do Clima da ONU de 2019.
Em outros posicionamentos extremamente controversos, Bolsonaro prometeu transferir de Tel Aviv para Jerusalém a Embaixada brasileira em Israel e adotou tom beligerante em relação à Venezuela sob o governo Nicolás Maduro. Dois discursos que batem de frente com o universalismo e o pacifismo, que são partes substanciais do enquadramento conceitual da “praxis diplomática brasileira”.[3]
Colado no discurso da administração Trump, o então candidato Bolsonaro enquadrou a China como um país voraz, perseguidor de grandes vantagens com o objetivo de desequilibrar a balança de poder econômico em seu benefício. Criticou a entrada do capital chinês em setores estratégicos, como minas e energia, apontando para a empresa China Molybdenum, que adquiriu uma reserva de nióbio em 2016, por US$ 1,7 bi.
Bolsonaro ainda ensaiou uma aproximação com Taiwan, quebrando o protocolo diplomático. Ao visitar a província na condição de candidato presidencial, afrontou a política de “uma só China”. Segundo este princípio, os países devem manter laços diplomáticos diretamente com Pequim, pois Taiwan está supostamente subordinada ao governo chinês.
O ministro Ernesto Araújo também segue o perfil controverso. Além das incisivas críticas ao multilateralismo e às interpretações predominantes sobre as mudanças climáticas, prometeu “libertar o Itamaraty do marxismo cultural.” O que isso significa? Não se sabe, mas a ideia que predomina nesse governo é que o País deve abandonar o viés ideológico que teria prevalecido durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
Nota-se um paradoxo no discurso do ministro. Enquanto desfere suas críticas à “ordem global” e ao “globalismo” – em sua tese esses conceitos “estão destruindo as nações”[4]–, pregando que o Brasil deve defender os interesses nacionais, rompendo com a “obsessão em seguir os regimes internacionais” ou com o “apego à ordem internacional baseada em regras”;[5] de outro lado, defende que o Brasil se alinhe aos Estados Unidos comandado pelo presidente Donald Trump. Para o ministro, o traço do presidente norte-americano, que abusa de linguagem e ações excludentes, insulta minorias e desfavorecidos, equivale à firmeza moral. “Há sempre perigo em ser o que se é. Mas a alternativa é não ser nada, é reduzir-se a um esquema politicamente correto…”[6] A propósito, para o ministro, os políticos norte-americanos democratas estão, em geral, “à esquerda de Che Guevara.”[7]
Logo que fora indicado para o cargo, o ministro afirmou que o Brasil se desassociaria do pacto da ONU referente à migração – “Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration” (GCM) –, endossado pela larga maioria de países membros da Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 2018. Segundo ele, a questão imigratória não deveria ser tratada como uma questão global. Cada país daria o tratamento adequado a sua realidade e de acordo com o princípio da soberania dos Estados.[8]
O que esperar?
Quando o presidente Trump personifica e coisifica os chamados inimigos –especificamente os imigrantes, os mexicanos, os mulçumanos, os empresários chineses, os acordos internacionais – , em contraste com os valores e modos de viver pessoais e de seus partidários, ele o faz, ainda que perigosamente, bem posicionado em termos de poder.
O governo Bolsonaro, por outro lado, parece querer encenar um jogo que não apenas é perigoso, como exige recursos de poder dos quais o Brasil não dispõe. E isso tende a ser uma jogada condenada. Não se pode subestimar o impacto negativo da prioridade dada pelo governo Bolsonaro a determinadas relações bilaterais em detrimento de outras.
O ativo constituído em função de tais relações ao longo de anos representa uma significativa parte do valor integralizado pela PEB. Como afirmou Antonio Lessa: “A diversidade desses contatos, espalhados pelos cinco continentes, expressos em laços mais ou menos efetivos entre sociedades aproximadas por circunstâncias políticas, econômicas e culturais, serviu em diversos momentos à sociedade brasileira para a realização de seu interesse nacional.”
Aproximação com Israel
Alinhar de forma tão estreita o Brasil a Israel, conforme prometeu Bolsonaro, não deve passar sem consequências. A política brasileira vinha seguindo o mesmo curso de muitos outros países, os quais têm mantido suas respectivas embaixadas em Tel Aviv até que haja uma resolução pacífica entre israelenses e palestinos.
Diante de um governo que foi abertamente apoiado por representantes do agronegócio, um passo invertido nessa política pode trazer um custo econômico justamente para parte importante desse setor. Setores campeões da produção agrícola, como açúcar, milho, carnes bovina e avícola correm sérios riscos de sofrerem retaliações de países contrários à política de Israel de incorporar toda a Jerusalém como seu território. Esses países absorvem percentuais expressivos das exportações brasileiras: 70% açúcar; 46% milho; 37% carne de aves; 27% carne bovina.[9]
Além do custo econômico, há também impactos político-diplomáticos. Embora o governo Bolsonaro hoje renegue os foros multilaterais, a diplomacia brasileira sempre contou com o apoio do Oriente Médio, além de outras regiões, na defesa de pautas de interesse nacional. Uma retomada futura desses relacionamentos pode custar muito caro. Por fim, não se pode desconsiderar o risco do país virar alvo de grupos radicais islâmicos em função de uma decisão político-diplomática que indica preferência por um dos lados do conflito.
Relações Brasil-Estados Unidos
O discurso do governo Bolsonaro indica forte convergência com os Estados Unidos. Sua admiração explícita pelas políticas implementadas pelo presidente Trump –especificamente no que diz respeito à imigração, a pautas defendidas na ONU e à Venezuela – pode ser interpretada como um engajamento para um relacionamento sério.
O governo Bolsonaro já avançou para além do discurso contra a ONU e suas agências e deu provas concretas de apoio político à administração Trump. Cumprindo promessas, Presidente Bolsonaro logo expediu instruções para retirada do Brasil do pacto de migração da ONU. Ao negar o voto anterior, o Brasil se posiciona ao lado de outros cinco países que votaram contra. Além dos Estados Unidos, também votaram contra: Hungria, Israel, Polônia, República Checa.
O ponto, conforme muitos analistas já destacaram, é saber em que medida o interesse do Brasil no estreitamento das relações com os Estados Unidos pode ser correspondido, especialmente considerando a pouca importância atribuída pelo presidente Trump à América Latina. Suas ausências na 8ª Cúpula das Américas, ocorrida em Lima, Peru, em 2018, e na cerimônia de posse do presidente Bolsonaro, mandando Mike Pompeo, Secretário de Defesa, para lhe representar, reforçaram essa hipótese.
Existe um interesse muito específico da administração Trump em relação ao Brasil sob o governo Bolsonaro, qual seja: buscar ajuda para desbancar os governos de esquerda na América Latina, como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela – “a troika tirânica”.[10] Isso foi verbalizado. Entretanto, uma relação bilateral estratégica não foi traçada. O ceticismo de Thomas Shannon, ex-embaixador norte-americano no Brasil e entusiasta de acordos comerciais e de cooperação econômica entre os dois países, faz sentido: “Estados Unidos podem apenas tentar fazer com que eles [governo Bolsonaro] nos ajudem na Venezuela ou na Nicarágua e depois ir embora”.[11]
Relações Brasil-China
Os setores econômicos brasileiros potencialmente afetados pelos ataques desferidos contra a China pelo então candidato Bolsonaro e pelo então diplomata Ernesto Araújo, que viria a ser o ministro das Relações Exteriores, pressionaram seus representantes no governo a passar panos na sujeira espalhada.
Porém, nem bem a ‘operação panos quentes’ acabara, os seguidores de Olavo de Carvalho – o guru da família Bolsonaro e de outros políticos de direita – atacaram a comitiva de parlamentares em visita recente à China. Os parlamentares do PSL, partido do presidente, foram à China com o propósito de conhecer tecnologias de segurança desenvolvidas no país que possam eventualmente ser importadas pelo Brasil.
O problema é que a confiança dos chineses foi abalada e com isso pode-se esperar um esfriamento das relações bilaterais. Se os chineses não possuem fornecedores alternativos para lhes atenderem no curto e médio prazos, obrigando-os a permanecer nos contratos comerciais de commodities, por outro lado, não têm motivos para investir em iniciativas de cooperação mais amplas. A relação que vinha sendo desenvolvida com a China no âmbito do BRICS, do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), do Banco de Desenvolvimento do BRICS era estratégica. Participar dessas organizações significa ter acesso a uma via adicional na promoção da cooperação em diversas áreas, como: economia, agricultura, tecnologia, segurança, ciência, educação. Como disse Oliver Stuenkel, especialista em BRICS, “independente da orientação ideológica de seu governo, qualquer país no mundo hoje deve construir o conhecimento necessário para se envolver significativamente com a Ásia (e especialmente a China), que será em breve o centro econômico do mundo.” [12]
[1] Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC/SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Co-organizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).
[2]IG.Bolsonaro volta atrás e diz que não tiraria Brasil da ONU: “Foi ato falho meu”. 21 Ago 2018. Disponível em:< https://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2018-08-21/jair-bolsonaro-volta-atras-onu.html>Acesso em: 12 dez 2018.
[3]LESSA, Antonio C. A diplomacia universalista do Brasil: a construção do sistema contemporâneo de relações bilaterais. Rev. Bras. Polít. Int., v. 41, 1998
[4]AGÊNCIA BRASIL. Ernesto Araújo critica globalismo na política externa do Brasil. Jan 2, 2019. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/ernesto-araujo-critica-globalismo-na-politica-externa-do-brasil>Acesso em: 8 jan 2019.
[5]ARAÚJO, Ernesto. Querer Grandeza. 3 nov. 2018. Disponível em: < https://www.metapoliticabrasil.com/blog/querer-grandeza> Acesso em: 7 fev 2019
[6]ARAÚJO, Ernesto. Contra o Globalismo. 2 dez 2018. Disponível em: < https://www.metapoliticabrasil.com/blog/o-brasil-no-barco-de-ulisses> Acesso em: 20 dez 2018.
[7]ARAÚJO, Ernesto. A Elbereth Gilthoniel. 13 out. 2018. Disponível em: <https://www.metapoliticabrasil.com/blog/a-elbereth-gilthoniel> Acesso em: 7 fev 2019
[8]BBC NEWS BRASIL. Em comunicado a diplomatas, governo Bolsonaro confirma saída de pacto de migração da ONU. 8 jan 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46802258> Acesso em: 9 jan 2019.
[9]BBC NEWS BRASIL. Embaixada em Jerusalém: o que o Brasil pode ganhar e perder se aproximando de Israel. 11 jan 2019. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46815018> Acesso em: 9 fev 2019
[10]The Guardian.Bolton praises Bolsonaro while declaring ´troika of tyranny’ in latin American. 1 nov 2018. Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2018/nov/01/trump-admin-bolsonaro-praise-john-bolton-troika-tyranny-latin-america> Acesso em: 10 fev 2019.
[11]The New York Times.U.S. and Brazil Chose Similar Leaders. It May Lead to Smoother Relations. 20 nov 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/11/20/world/americas/bolsonaro-brazil-trump.html?emc=edit_th_181121&nl=todaysheadlines&nlid=539338431121> Acesso em: 10 fev 2019.
[12]El País. BRICS ainda é prioridade estratégica para o Brasil. 30 jun 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/30/opinion/1467310216_174955.html> Acesso em: 10 fev 2019.
Fonte da imagem: Wikicommons.