Resenha de tese de Doutorado em Ciência Política defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) em 2016.
Celly Cook Inatomi
O objetivo da tese foi analisar a atuação do Poder Judiciário nas políticas de erradicação do trabalho escravo rural no Brasil contemporâneo, de forma a verificar seus entendimentos acerca do trabalho escravo, suas formas de argumentação e seus posicionamentos frente à necessidade das políticas de erradicação dessa modalidade de trabalho. Para tanto, a tese empreendeu uma análise em profundidade e em fluxo de três casos que trataram do tema do trabalho escravo rural no Brasil, sempre sob o olhar conjunto de três dimensões de análise: individual ou do jogo político, institucional e estrutural.
Os casos analisados trouxeram cada qual elementos singulares e comuns para a sustentação da tese de que o Poder Judiciário atuou de forma mitigada, apresentando mais limites do que possibilidades de apoio às políticas de erradicação do trabalho escravo rural. Os fatores que ajudaram a identificar essa atuação limitada do Poder Judiciário caracterizaram-se, sobretudo, por uma multidimensionalidade de fatores, que se apresentou em cada caso de uma forma particular. Foi possível reconhecer a presença de fatores de ordem individual, institucional e estrutural de forma combinada em todos casos, mas a expressividade de cada tipo de fator, assim como a interação entre eles, apresentou-se em cada caso de uma forma distinta.
No primeiro caso estudado, o caso do “gato”, os limites da atuação do Poder Judiciário se deram, sobretudo, em função de fatores de ordem institucional, mas que se coadunaram a fatores de ordem individual-estratégica relacionados à capacidade litigatória da defesa do “gato”. O estudo do caso nos mostrou que fatores de ordem institucional marcaram significativamente a atuação dos juízes, dando ensejo para as estratégias individuais da defesa do “gato” pedir sucessivos adiamentos ou repetição de audiências que foram, com frequência, deferidos pelos juízes sob o princípio da ampla defesa, mesmo passados mais de 10 anos das denúncias feitas. O caso do “gato” deixa explícitos os problemas de ordem institucional que podem ser estrategicamente explorados para obter o adiamento até a prescrição dos crimes. Foram cerca de 10 anos de processo discutindo a regra procedimental e processual, adiando assim as discussões de mérito.
No segundo caso estudado, o caso do senador João Ribeiro, as limitações do Poder Judiciário se revelaram, sobretudo, nos posicionamentos individuais conservadores dos juízes acerca do trabalho escravo rural e das próprias políticas relativas à sua erradicação. Tais posicionamentos individuais, no entanto, deixaram explícitos não apenas a falta de uma atuação de fato institucional do Judiciário, além do problema da morosidade judicial, como também a questão da permanência histórica e estrutural de entendimentos conservadores e preconceituosos sobre a realidade do “homem do campo” e do direito do trabalho no setor rural, mesmo com a Lei nº 10.803, de 2003, tendo já reformado o código 149 do Código Penal para consubstanciar em possibilidades concretas a concepção de trabalho escravo.
E no terceiro caso, por fim, o caso Pagrisa, as limitações da atuação do Poder Judiciário se deram especialmente em função de fatores de ordem estrutural, dada a importância econômica e social da empresa e a permeabilidade que o Judiciário mostrou às pressões exercidas. A importância econômica e social da empresa se manifestou de forma significativa no andamento do caso, na medida em que a preocupação dos senadores com o cenário econômico do agronegócio repercutiu na preocupação de até mesmo de lideranças sindicais com a manutenção de empregos na região, que, por sua vez, repercutiu no plano individual da rede de relações da empresa, que obteve apoio de diversos órgãos e associações através dos depoimentos e relatórios utilizados em juízo. Contudo, quando observamos os aspectos institucionais, percebemos suas presenças no caso. Embora a empresa tenha conseguido, assim como o senador João Ribeiro, arrancar mais posicionamentos de mérito dos juízes acerca do tema do trabalho escravo, isso não significou que eles tenham apresentado uma posição harmônica ou institucionalizada sobre o que é trabalho escravo. Um dos poucos pontos de relevante concórdia entre juízes se fez presente ao defender a credibilidade do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), fato que refletiu o forte papel institucional e político do grupo no período em que o caso ocorreu. O Judiciário argumentou em favor da fiscalização, ainda que tenha questionando os elementos descritivos e denunciantes de trabalho escravo.
Essa análise dos casos veio a se somar aos prospectos traçados pelas avaliações críticas dos atores políticos e sociais, bem como à análise das diferentes abordagens analíticas sobre a atuação política do Judiciário. Mais uma vez se evidenciou o papel historicamente mitigado do Poder Judiciário e se mostrou a necessidade de uma estratégia de pesquisa que levasse em conta as três dimensões de análise para explorar as inter-relações sobressalentes em cada caso estudado.
A tese se encontra disponível em:
http://www.repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/305068/1/Inatomi_CellyCook_D.pdf