Neusa Maria Pereira Bojikian[1]
Jair Bolsonaro, atual presidente Brasil, vexativamente, costuma repetir falas e práticas de Donald Trump. O comportamento mimético tosco de Bolsonaro pode ser conferido em várias situações, como o que tem sido visto diante da atual crise sanitária.
A comitiva de Bolsonaro viajou aos Estados Unidos, já é o segundo março –2019 e 2020– que isso acontece, para observar de perto as orientações políticas de Trump. Pelas evidências, os objetivos dos principais integrantes do séquito não são observar e depois escolher aquelas que melhor se adaptariam às condições da sociedade brasileira. Bolsonaro e sua comitiva parecem mesmo ir receber em mãos scripts, ou seja, série de instruções sobre tarefas a serem executadas aqui conforme o pré-programado lá.
Seria a imitação uma forma de facilitar a tomada de decisão, buscando aprovação social? Pode ser. Diante de seus eleitores desprovidos de reflexão e crítica, isso deveria funcionar. ‘Ora – eles podem pensar– se o presidente da maior potência mundial está fazendo assim, então é o que dever ser feito’. E diante de seus fiéis escudeiros, por exemplo seus filhos e o ministro da Educação, além de dar provas de alinhamento incondicional a Trump, o mimetismo seria um tipo de mecanismo de defesa para afugentar predadores do mundo geopolítico. Para os bolsonaristas do grupo dos fiéis escudeiros, o perigo é oferecido principalmente pela China.
Aonde esse comportamento imitativo levará o Brasil no contexto de uma crise econômica que tende a se agravar brutalmente com o novo surto de infecção? A saber. Por ora, o que está sendo escancarado ao mundo é que: (1) as condutas de Trump e de Bolsonaro são extremamente arriscadas; (2) os sistemas de saúde de lá e de cá não estão preparados para enfrentar o problema.
Trump vinha agindo até há bem pouco tempo com base na suposta convicção de que a Covid 19, causada pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus, não passa de uma gripe sazonal. Windsor Mann, colaborador do USA Today escreveu em suas redes sociais o seguinte: “No mês passado [fevereiro], Trump declarou vitória sobre o coronavírus. Neste mês [março], declarou guerra a isso. Nesta semana, ele se rendeu.”[2] Difícil imaginar que Trump tenha se dado por vencido. Nesse caso, ele pode ter se rendido ao vírus altamente contagioso e que pode ser letal, mas, para compensar seu estado de ânimo negativo, mirou em outros alvos tidos como inimigos, como a China e autoridades políticas de seu próprio país.
Ainda que tenha reduzido o tom nos últimos dias, Trump parece mesmo estar mais interessado em promover respostas de seu governo do que em reconhecer e agir diante das deficiências na infraestrutura para enfrentar a pandemia. A começar pela questão de conhecer de fato a extensão da doença. Enquanto ele afirma que os problemas de suprimento de kits de teste de Covid 19 já foram solucionados e enfatiza, de forma distorcida, que o número de pessoas que foram testadas no país é maior do que o da Coréia do Sul –país referência no combate efetivo à pandemia– membros de seu governo são confrontados e acabam admitindo que “em razão do atraso nos testes, poderia haver focos da doença em todo tipo de cidades…”[3]
Depois, chamam a atenção seus ataques, omissivos ou comissivos, às lideranças estaduais. Os governos republicanos dos estados de Ohio, Maryland e Texas, por exemplo, insistiram para que Trump declarasse situação de emergência em seus respectivos estados. Assim, poderiam contar imediatamente com recursos federais para responder às atuais demandas da área de saúde. Problema maior, entretanto, enfrentam estados sob governos democratas. O estado de Nova York é o caso mais emblemático.
Como o número de contaminações aumentou dramaticamente no estado de Nova York – 31dias após a região registrar seu primeiro caso, em Manhattan, o número de infectados pelo vírus passou dos 100 mil em todo o estado no primeiro dia de abril, sendo que 2% desse número foram a óbito –[4] o sistema de saúde corre sérios riscos de colapsar.
Há uma semana, Andrew Cuomo, atual governador e pertencente ao Partido Democrata, publicou que a disponibilidade de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) não seria suficiente diante do aumento acelerado de casos. Além disso, ele lutava para resolver a escassez de equipamentos médicos. O estado comprara milhares de ventiladores pulmonares da China, mas ainda não haviam sido recebidos. A expectativa era sombria diante da concorrência, não apenas dos demais entes federados, mas também do próprio governo federal, que através da Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA, na sigla em inglês) entrou na competição mercadológica. A fala do governador de Nova York está mais para filme de ficção: “É como estar no eBay [plataforma de compra eletrônica popular nos Estados Unidos], com 50 estados lançando ofertas para comprar um ventilador… E então a FEMA se envolve e começa a licitar… lançando ofertas além dos 50 [estados]… conduzindo à alta dos preços. Que sentido isso faz?[5]
Clamando e apelando para alternativas inimagináveis para um estado que representa o maior centro financeiro e comercial do mundo e cuja capital é domicilio de inúmeros ultra ricos, o governador mostrou ao mundo que o sistema de saúde do estado de Nova York apresenta outras deficiências, como necessidade urgente de materiais de suprimentos – máscara, luvas, aventais e outros utensílios de proteção pessoal–; de espaços; e de pessoal –médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros. Em resposta a Cuomo e a outras autoridades, Trump afirmou, sem fundamentação, que se está pedindo mais máquinas do que o necessário. Para ele, os pedidos dos governadores foram inflados em função do medo de escassez.
Andrew Cuomo está desempenhando um papel que lembra o de seu próprio pai. Mario Cuomo foi governador de Nova York e ganhou popularidade na década de 1980, servindo como contrapeso a Ronald Reagan, então presidente republicano dos Estados Unidos. Agora seu filho atua como ponto de contraste dos democratas ao presidente Trump, que por sua vez tende a buscar referência no perfil de Reagan e seus discursos.
No Brasil, Bolsonaro segue colado na traseira da máquina guiada de modo peculiar por Trump. Assim como este, Bolsonaro já negou inúmeras vezes a gravidade da Covid 19 e ameaça recorrentemente forçar o fim das normas de distanciamento social impostas por governadores. Nas últimas semanas, enquanto várias autoridades do país discutiam medidas emergenciais, Bolsonaro tentava, por todos os meios possíveis, rebater diretrizes mundiais, incitando manifestações de apoio nas ruas e nas redes sociais. Para ele, haveria uma motivação política por detrás de comunicados pretensamente fidedignos à população. “Se a economia afundar, afunda o Brasil. Qual o interesse? Se afundar, acaba o meu governo. É uma luta de poder”.[6]
No dia dois de abril, na entrada do Palácio do Planalto, a prática de citar casos sem embasamento, exatamente como o faz Trump, repetiu-se. Para um grupo de pastores evangélicos, que contam com apoio do presidente para manter seus cultos religiosos com aglomerações, Bolsonaro falou que desconhecia casos de lotação de hospitais. Referindo-se a um hospital municipal do Rio de Janeiro – Hospital Municipal Ronaldo Gazolla – sugeriu que haveria muitos leitos disponíveis e que o problema estava sendo superdimensionado: “se não me engano, tem 200 leitos e só tem 12 ocupados até agora. Então, não é isso tudo que estão pintando, até porque, no Brasil, a temperatura é diferente (da Europa e de outros países), tem muita coisa diferente aqui.”[7]
Assim como Trump, Bolsonaro tem atacado governadores de estados. Seus alvos vão dos governadores de partidos de oposição, como tem sido o caso do governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão, a governadores que já foram seus aliados, como são os casos de Wilson Witzel (PSC) do Rio de Janeiro, e de João Doria (PSDB), de São Paulo. Sua postura errática, vamos dizer assim, indica que esses dois estados terão que enfrentar não só o drama em decorrência da doença, que atingirá o pico em breve, mas também as consequências de disputas políticas que acabarão expondo a deficiência estrutural do país para se lidar com a crise da área da saúde.
A desestruturação da área de saúde pública no Brasil vem ocorrendo há anos, mas somente agora parece ganhar repercussão como uma emergência. Em fevereiro de 2020, um levantamento mostrou que havia 14 leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) para cada 10 mil habitantes. Esse número corresponde a cerca de 74% do número existente em 2005.[8]
O Ministério da Saúde abriu no início de março licitação para contratar 2 mil novos leitos a serem instalados nos estados de acordo com a demanda de cada um.[9] Essa e outras medidas emergenciais estão amparadas por regulamentação de calamidade pública, apresentada pelo Poder Executivo. Isso significa que se trata de medidas de caráter excepcional.
Fora desse contexto, tais gastos não seriam possíveis em função das restrições impostas pela Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos (Emenda Constitucional 95),[10] de 2016, que alterou a Constituição de 1988, instituindo o Novo Regime Fiscal. De acordo com a emenda, as despesas e investimentos públicos devem se limitar ao montante incorrido no ano anterior mais a contabilização da inflação do período. Para as áreas de educação e saúde, a regulamentação passou a valer a partir de 2018 e deve ser respeitada por um período de vinte anos. Com isso, o SUS foi duramente impactado.
Será que no pós-crise da Covid 19 os sistemas públicos de saúde vão mudar para melhor? A saber. Mas se o pós-crise do setor financeiro (2007-2008) servir de exemplo, dificilmente o cenário melhorará. A desestruturação da máquina estatal da saúde é mais um dos reflexos da força do movimento de integração das relações econômicas que ocorre no contexto de um sistema político dividido por unidades nacionais. Seguindo uma harmonização de regras impostas de fora, os serviços de saúde de âmbito social perderam escopo, nas últimas décadas, para o âmbito fundamentalmente econômico.
Na disputa paradigmática, os pressupostos das políticas de saúde pública foram cada vez mais sendo confrontados pelos fundamentos da chamada globalização econômica, no caso específico, da economia da saúde. No centro desse confronto encontra-se o SUS brasileiro, cujo princípio nuclear é a universalização da assistência à saúde, que em tese garante à toda a população, e não somente àqueles vinculados ao mercado formal de trabalho, acesso aos serviços. O problema é que a mudança na concepção do sistema de saúde foi sendo colocada à prova à medida que as medidas práticas foram sendo limitadas pela falta de investimentos em infraestrutura de saúde.
E isso não é de hoje. Cerca de dez anos depois da publicação da Carta Magna, que em seu artigo 196 estabelece: “A saúde é um direto do cidadão e dever do Estado”, as autoridades governamentais brasileiras começaram a sustentar argumentos em torno da ideia de que a universalização seria garantida por meio de um Estado promotor da fiscalização sobre os serviços prestados por agentes privados e não de um Estado, ele mesmo, provedor dos serviços de saúde.
A despeito da garantia do direito universal à saúde no Brasil, mediante políticas sociais e econômicas, estar sob ameaça praticamente desde a gênese do SUS, a atual pandemia representa um golpe mais agudo precisamente em um contexto de extremo rigor com os orçamentos do governo federal, dos estados e de municípios.
[1] Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC/SP. Autora do livro “Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros” (2009, Unesp) e Co-organizadora dos livros “Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil” (2011, Unesp); “Trump: Primeiro Tempo. Partidos, políticas, eleições e perspectivas” (2019, Unesp).
[2] Windson Mann. 25 de março de 2020. Disponível em: < https://twitter.com/WindsorMann/status/1242990502313672706> Acessado em 27 de março de 2020.
[3] The Washington Post. Trump´s clueless comment about coronavirus testing problems. Disponível em: < https://www.washingtonpost.com/politics/2020/03/31/trumps-clueless-comment-about-coronavirus-testing-problems/> Acessado em 31 de março de 2020.
[4] The New York Times. Cuomo Warns U.S. as Virus Deaths in N.Y Region Pass 2,300… Disponível em: < https://www.nytimes.com/2020/04/01/nyregion/coronavirus-new-york-update.html> Acessado em 1 de abril de 2020.
[5] The New York Times. New York Gov. Cuomo Implements ‘Stay at Home’ Order. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2020/03/31/nyregion/coronavirus-new-york-update.html> Acessado em 1 de abril de 2020.
[6] El País. Na luta contra o coronavírus, Bolsonaro se perde em guerra política e resiste a pacto nacional com governadores. 22 de março de 2020. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-22/na-luta-contra-o-coronavirus-bolsonaro-se-perde-em-guerra-politica-e-resiste-a-pacto-nacional-com-governadores.html> Acessado em 26 de março de 2020.
[7] Correio Brasiliense. Bolsonaro diz que coronavírus “não é isso tudo que estão pintando”. 2 de abril de 2020. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/02/interna_politica,841999/bolsonaro-diz-que-coronavirus-nao-e-isso-tudo-que-estao-pintando.shtml> Acessado em 2 de abril de 2020.
[8] Nexo. Qual é o número e a distribuição dos leitos de internação pelo Brasil. 30 de março de 2020. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/grafico/2020/03/30/Qual-é-o-número-e-a-distribuição-dos-leitos-de-internação-pelo-Brasil?posicao=2> Acessado em 1 de abril de 2020.
[9] Senado Federal. SUS precisa ser fortalecido, dizem senadores em meio à pandemia. 23 de março de 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/23/sus-precisa-ser-fortalecido-dizem-senadores-em-meio-a-pandemia Acessado em 2 de abril de 2020.
[10] Presidência da República. Emenda Constitucional No 95, de 15 de dezembro de 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm Acessado em 2 de abril de 2020.
Referência imagética:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-03/trump-diz-que-atuara-para-incluir-brasil-na-ocde (Acesso em 13 de abr.2020)