Alexandre Filordi[1]
Todo racismo é autoritário. A sociedade que trafega normalmente sob o racismo estrutural, dia após dia, não prescinde do hábito de suas estruturas autoritárias. Aceitar um desses aspectos é ser conivente com o outro.
Não precisamos falar do Brasil colônia para entender isso. Tampouco seria preciso recordar que o governo provisório da recente República Brasileira, de 1889, por motivos ostensivamente de ordem econômica, portanto, atinentes à elite de mentalidade escravocrata, emitiu, pelo seu ministro da Fazenda, a circular n° 29, em 13 de março de 1891. Ordenava-se queimar todos os arquivos referentes aos africanos escravizados.
A República nasceu, assim, com a cumplicidade de uma política autoritária e racista de “queima” de memória, de aniquilação de experiências existenciais, de destruição de vínculos ancestrais dos povos africanos aqui escravizados, além de adotar estratégia covarde de apagar a trilha de sua corresponsabilidade com a escravidão.
Desde a tentativa de redemocratização brasileira em meados dos anos 80, a sociedade civil deu passos firmes no sentido de reconhecer o racismo estrutural disseminado e banalizado no Brasil, sobretudo com o intuito de combatê-lo.
A educação, nesse sentido, empenhou-se em produzir campos teóricos e empíricos aí imprescindíveis, e consolidá-los. Tratar-se-ia, face a impossibilidade de reparação histórica, mas com a justificativa do que é justo, ensinar a toda sociedade brasileira a emancipar-se de sua inadjetivável história de opressão com os povos africanos.
Uma dose mínima de consciência era fundamental para que se estabelecessem novas bases éticas com o intuito de nos distanciar de todo e qualquer racismo. Com efeito, experiências cotidianas com a extensão de agressões simbólicas, morais, verbais, físicas, rubricadas pela jocosidade e inconsequência ética latentes de nossa cultura, passaram a ser expostas, analisadas e enfrentadas.
Era preciso saber que “mulata” vinha pejorativamente de mula; que “fazer nas coxas” era/é expressão decorrente das telhas irregulares das casas dos africanos alforriados, produzidas por eles mesmos, já denotando a advertência dos sinais futuros de desigualdade social; que o africano não era/é “macaco”; que “negão” não era/é qualificativo elogioso, já que ninguém diz “brancão”; que dizer a “situação está preta” não condiz com uma população majoritariamente constituída por descendentes de africanos; que ser preto não é sinônimo de bandido, de marginal; que os cultos de matrizes africanas devem ser respeitados e honrados; etc. etc. etc.
Mas dentre aquelas expressões havia outra a ser combatida: tigrada. Tal acepção sempre foi utilizada para o “povão”, essa mistura cujo escrutínio elitista faz recair sobre ele todo tipo de preconceito. É que “povão” é mistura, linhagem espúria longe do idílio dos senhores da casa-grande, reatualizados no empresariado brasileiro, em seus políticos, em seus mandantes, com raríssimas exceções.
Pior ainda. Os “tigres”, na história brasileira, são uma acepção pejorativa para designar todos os africanos escravizados cuja incumbência maior era a de carregar, sobre os ombros e quase sempre em pele nua, os dejetos dos senhorios e das senhorias das casas-grandes e dos sobrados.
Fezes, urina, vômitos, escarros, catarros, enfim, os dejetos humanos, ao serem transportados acabavam por escorrer ou espirrar em suas peles. Queimaduras na pele eram inevitáveis. Surgiu, assim, a “tigrada”: corpos cartografados pelo estigma do poder racial com todos os seus dejetos nojentos.
Eis, porém, que um ministro de Estado, em pleno século XXI, e para piorar, ministro da Educação, associa os críticos ao governo sob o qual ele serve a uma tigrada. O que teme a tigrada, segundo ele? Teme uma sala de aula fazendo “sentido” quando a professora ali entra; teme o discente fazendo continência para a professora; horroriza-se com a ideia de uma educação para a subserviência. Aliás, isso se encontra no sangue “nobre” de nossa história. Aos povos indígenas recalcitrantes, José de Anchieta dizia: “espada e vara de ferro, que é a melhor pregação”. Não foi muito diferente com os povos africanos; não tem sido diferente com os povos da periferia; não tem sido diferente com os que bradam contra a submissão docilizada; não há de ser diferente para as/os educadoras/es comprometidas/os com educar contra a ignorância, o medo e a servidão voluntária.
No Brasil atual, a espada, a vara de ferro, a chibata são a ignorância encarnada no autoritarismo, este levado ao limite com imposições institucionais, tropas-de-choque, milícias – inclusive virtuais –, histrionismos e paranoias. Tal autoritarismo nunca deixou de ser racista; ele se empenha diuturnamente a queimar os arquivos das práticas democráticas de educação; ele semeia o conformismo como currículo de submissão, achincalhando e debochando da mínima fortuna crítica empenhada em reescrever a nossa história sem as mesmas marcas do autoritarismo senhorial da colônia.
O perigoso contágio desse tipo de racismo autoritário pode nos conduzir a um triste eco na história. Em 1933, quando os nazistas chegaram ao poder na Alemanha, o filósofo Martin Heidegger, no afã de combater o comunismo, escreveu ele, “esperava do nacional-socialismo [o nazismo] uma renovação espiritual da vida em toda a sua inteireza, uma reconciliação de antagonismos sociais e o livramento do Dasein [‘presença’, ‘existência] ocidental dos perigos do comunismo.” Ele errou e as consequências são sabidas.
Ao julgar os que não se decalcam à plataforma do atual governo e se opõem ao projeto de uma educação contra a vida, como “tigrada esquerdófila”, podemos pressentir a borda do abismo na qual caminhamos.
Uma coisa é certa, porém: as/os educadoras/es brasileiras/os não farão continência ao racismo autoritário e, muito menos, aceitarão os seus dejetos.
[1] Professor de Filosofia da Educação no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)