Jorge Chaloub[1]
Quando certa manhã Rodrigo Maia acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num político de centro[2]. Entre uma xícara de café importado e alguns pães artesanais, ele lia em jornais e sites, não sem surpresa, sobre sua conduta moderada e razoável, típicas dos políticos infensos ao charme dos radicalismos. As críticas dos bolsonaristas e os afagos de certa esquerda davam força à dúvida: seria a direita coisa do seu passado?
A interpretação predominante sobre a atuação de Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados revela aspectos importantes do atual debate público brasileiro. Político de clara trajetória à direita, como sua longa adesão ao DEM bem indica, ele tem sido frequentemente classificado pela grande mídia e por alguns analistas políticos como pertencente ao Centro. O caso tem direta relação com outra escolha, também popular entre os mesmos personagens: o temor de se classificar Jair Bolsonaro como um político de extrema-direita. Mesmo com orelhas, olhos e nariz de extrema-direita, os mais poderosos editores do país, ao lado de alguns notáveis intelectuais, acharam de bom tom localizá-lo em lugar mais ameno e palatável – a direita, despida de qualquer prefixo ou adjetivo – sem o potencial prejuízo que sua localização nas extremidades do debate público poderia sugerir. Desses episódios, surgem várias questões. Listemos algumas, passíveis de serem ao menos esboçadas nesse breve texto. De onde vem essa súbita valorização do centro no debate político brasileiro? Será que as ideologias políticas são apenas relacionais, de modo que em tempos de extremistas de direita no poder, a velha direita torna-se naturalmente centro?
Comecemos pela primeira questão. A hipertrofia do centro passa, em boa medida, por dois fenômenos: o desejo de tradicionais políticos de direita, e mesmo de extrema-direita, de se distinguirem da atual coalizão no poder e o interesse de alguns atores em criar um espaço que conjugue práticas usualmente identificadas à direita no campo da economia e valores afeitos à esquerda no debate dos costumes. No caso do segundo grupo, este entrelugar evitaria a verve antiesquerdista que assola o país – da qual o mesmo poderia ser vítima ao criticar, por exemplo, nossa atual política de drogas – e fugiria dos problemas de se ver identificado com uma direita extremamente radical.
Como exemplo do primeiro tipo, pensemos em João Dória. O governador de São Paulo emergiu no cenário político como representante de uma ala radical de direita no PSDB, partido que, por sua vez, já repelia há boas décadas rótulos que pudessem identificá-lo à esquerda. Os tucanos acrescentaram ao discurso neoliberal dos primeiros anos a adesão a pautas claras do conservadorismo moral, como a absoluta rejeição ao aborto e a defesa da redução da maioridade penal nas eleições de 2010 e 2014 bem demonstram. Neste movimento, o PSDB já estava em terreno distante do neoliberalismo progressista dos Democratas norte-americanos, bem caracterizado por Nancy Fraser. Uma vez vitorioso, Dória buscou romper pela direita com seu antigo padrinho Alckmin, manifesto defensor do catolicismo conservador, de uma brutal repressão policial e da plena vigência da lógica do mercado na gestão pública. Nada, portanto, que chancelasse o ex-governador para uma reunião do “Foro de São Paulo”.
Mesmo com todas essas credenciais, e este evidente radicalismo à direita, o antigo apresentador da Rede TV reivindicou, em recente entrevista ao Valor Econômico, o centro: “a partir de agora o PSDB vai estar sintonizado com a população, e não mais com seu passado. (…) Para isso ele não precisa renegar o seu passado, mas ele vai mudar. E será um partido de posições centrais, de centro.” Questionado pelo entrevistador se o termo mais adequado não seria o de “centro-direita”, ele reafirma seu ponto: “Não. De centro. E terá relações respeitosas com a esquerda e com a direita.”[3]. Trata-se de um curioso centro, que criminaliza, como o atual governador de São Paulo já afirmou algumas vezes, qualquer grupo que se coloque à esquerda. Antes interessado em reforçar suas credenciais de direita, com interesse no sensível crescimento do discurso antipolítico no Brasil após 2013, Dória se mostra agora temeroso das eventuais consequências do fenômeno do qual fora protagonista.
O segundo grupo tem como bons exemplos alguns movimentos declaradamente suprapartidários, como o “Agora!”, o “Acredito”, e o “RenovaBr”. Os três coletivos compartilham um grande número de membros. Em breve análise dos seus integrantes, podemos notar que Eduardo Mufarej e Marcelo Calero são lideranças do “Agora!” e do “RenovaBr”, enquanto Tábata Amaral, Alessandro Vieira e Filipe Rigoni pertencem tanto ao “RenovaBr” quanto ao “Acredito”. A maior similaridade, entretanto, está na narrativa que justifica o surgimento e a atuação dos três grupos. Todos eles se constroem como pertencentes à “sociedade”, espaço que, por sua vez, é construído em clara oposição ao “Estado”. Assim, enquanto o “Agora!” se apresenta como um “movimento de ação política a partir da sociedade”, “sem vinculação partidária” [4], o “RenovaBR” se representa como “iniciativa que nasceu na sociedade civil”[5].
Contra os vícios do Estado, restam as virtudes inerentes de uma sociedade pensada à imagem e semelhança do mercado. O caminho passa pelo gérmen capaz de fazer o país superar a corrupção e a ineficiência rumo a um futuro melhor: o empreendedorismo. Nem todos os membros desses grupos demonizam explicitamente o Estado ou o público – como o faz, por exemplo, o ministro do STF Luís Roberto Barroso ou diversos políticos do Partido Novo filiados a esses coletivos -, mas todos os pensam de modo muito semelhante a uma empresa, em intepretação onde o liberalismo confronta o republicanismo. Se o Estado é uma empresa, nada mais lógico que ele seja submetido a políticos que mais se parecem com empreendedores. Este é um dos traços mais evidente desta manifestação da “nova política”.
Empresas não expressam confrontos profundos da sociedade, aqueles impossíveis de serem reduzidos a divergências de ocasião ou a má compreensão do melhor caminho a ser percorrido. A política, contudo, o faz. Se a divisão schmittiana entre amigo e inimigo carrega consequências frequentemente reacionárias, a crítica a confrontos mais acirrados acaba por naturalizar a ordem social vigente, o que carrega, no caso brasileiro, traços trágicos. Os três movimentos escolhem, todavia, esse caminho, em narrativa onde o conflito é o grande mal a ser evitado. A democracia é frequentemente definida como o avesso da “polarização” e dos “extremismos”. Neste sentido, o “Agora!” lista entre seus quatro principais princípios o “respeito ao diálogo democrático, avesso à polarização e a extremismos” [6] , o “Acredito” clama por uma política que vá “além da polarização radical”[7] e o “RenovaBr” destaca que “Não vamos encontrar soluções para nossos problemas se insistirmos em divisão e intolerância”. Por isso, a frequente recusa à dicotomia entre direita e esquerda, presente em marcante declaração de representantes do Acredito: “Nós não nos caracterizamos em nenhuma dessas nuances porque entendemos que a polarização gera um resultado político extremamente danoso. O ser humano não se limita entre algo tão frio e não representativo quanto a definição de direita e esquerda”[8]. As frequentes manifestações críticas à dicotomia esquerda-direita, tida como excessivamente simplista, de uma das maiores estrelas desse grupo e política das mais progressistas que os integram, Tábata Amaral, também seguem caminho semelhante.
Se o uso do “centro” pelo atual PSDB de Dória desponta como uma simples estratégia para não acabar soterrado pelos escombros da extrema-direita bolsonarista, com a qual comunga não apenas uma agenda, mas um estilo de atuação política, estes novos grupos comportam uma diversidade muito maior e uma adesão inegável a um “mínimo civilizatório”. Há, em graus variados, a defesa de direitos de minorias, posições progressistas em costumes e uma clara crítica à desigualdade social. Os remédios, todavia, estão distantes dos usualmente mobilizados pela esquerda, mais afeita a uma política que não recusa à ideia de confronto. Ainda mais divergente é o discurso econômico, onde se chocam a naturalização de um discurso neoliberal, visto como única forma possível de organizar a relação entre o Estado e a sociedade, e uma crítica, mais ou menos intensa, à expansão das lógicas da mercadoria e da concorrência. A forte influência de lideranças empresariais, como Jorge Paulo Lehmann, responsáveis pela formação de parte dessas lideranças, pelo financiamento de campanhas e pela construção de espaços de debate a eles vinculados, não ocorre em razão de um interesse mesquinho de curto prazo, mas se justifica pela comunhão de perspectivas em relação ao país e o mundo.
Por fim, há, por parte desse “novo centro”, uma evidente recusa da “esquerda realmente existente” em terras tupiniquins. Para a maior parte desses personagens, o desejo de se distinguir da esquerda é sensivelmente maior do que o de se distanciar da direita. A presença de um evidente “antipetismo” não esgota essa tendência – tornando inválida a explicação exclusiva em termos do temor à “velha política” – , já que convive com uma crítica mais ampla à esquerda, frequentemente retratada sobre os signos do anacronismo e da ineficiência. Provavelmente estamos diante de um movimento de renovação de grupos identificados com as ideias políticas do velho PSDB, que, ao longo da sua trajetória, conjugou desde adeptos do social liberalismo até neoliberais preocupados apenas com suas planilhas e interesses. A presença de políticos e intelectuais próximos ao partido dentre esses grupos – como Luciano Huck, Marcelo Calero e Ilona Szabó- e o flerte de Fernando Henrique Cardoso com a candidatura Huck 2022 apontam neste sentido. Trata-se de mais uma tentativa de criar um campo, para citar outra vez Fraser, neoliberal progressista no Brasil, à moda do Partido Democrata de Hillary Clinton, mas com ares de novidade e juventude. Em meio a tal esforço, pode-se produzir mais do mesmo, mas também é possível despontar um importante polo de resistência à parte da tragédia bolsonarista.
Já próximos do final do texto, chegamos à nossa segunda pergunta: serão os pertencimentos à direita e esquerda apenas relacionais? Assim os compreende a quase totalidade da grande imprensa nacional e uma boa dose de colegas da Ciência Política, em chave que frequentemente os leva ao que chamei, em outro texto, de “abismo das falsas equivalências”[9]. É fundada nesta perspectiva que nossa mídia evitou classificar o candidato Jair Bolsonaro como de “extrema-direita”, em sentido diverso ao que jornais conservadores, como o Le Figaro, fazem com políticos mais moderados na Europa[10]. Creio que devo ser breve não apenas para liberar o já fatigado leitor, mas também porque a própria forma de exposição do presente texto já contesta tal perspectiva. A crença de que lugares políticos nada mais são do que rótulos aptos a identificar um produto espacialmente em uma prateleira possuem direta afinidade com uma determinada concepção de política, a que retrata o mundo público à imagem e semelhança do mercado. Recorrendo a um clichê discursivo, inevitável nesse momento, tal retrato asséptico da política já representa a escolha por um lugar. Nada impede a adesão a tal caminho, apenas sugiro que, se for o caso, ele seja percorrido com alguma dose de clareza.
[1] Jorge Chaloub é um dos editores da Escuta.
[2] Texto publicado em parceria com a revista Escuta (https://revistaescuta.wordpress.com/)
[3] Disponível em https://www.valor.com.br/politica/6080035/psdb-vai-mudar-e-sera-um-partido-de-centro-afirma-doria
[4] http://www.agoramovimento.com/quem-somos/
[5] https://www.renovabr.org/quem-somos/
[6] http://www.agoramovimento.com/quem-somos/
[7] https://www.movimentoacredito.org/manifesto/
[8] https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/partido-da-mudanca-o-que-querem-e-pensam-os-movimentos-de-renovacao-politica-6n2by66tc2gtqeu42n1iceffb/
[9] https://revistaescuta.wordpress.com/2018/09/15/o-abismo-das-falsas-equivalencias-divagacoes-sobre-a-comparacao-entre-as-esquerdas-e-bolsonaro/
[10] Um exemplo do tratamento do jornal francês sobre Marine Le Pen está em http://www.lefigaro.fr/flash-actu/elections-europeennes-le-pen-et-salvini-en-meeting-commun-a-la-mi-mai-20190405